O pintor Cassiano Araújo expôs, no Theatro São Pedro, retratos inspirados de personalidades paulistas, dentre elas a poeta A. P. Arendt, cuja oficina literária é sediada na capital. A tela de Cassiano comporá a obra "O Poema Vivo", poema que busca sintetizar elementos em comum entre obras alquímicas e o espírito católico.
Cassiano Araújo, e Katie Sant'Anna, editora da Revista SP Metrópole Turismo & Negócios, em homenagem rendida à poeta Ana Paula Arendt no Theatro São Pedro, onde expôs tela magnífica com que presenteou a autora.
Alguns trechos de O Poema Vivo:
"Súplica
Escrínio da tua alma se abre
Nesse catre, se mostra o universo
Nos teus olhos eu rememoro
Tudo o que um dia eu já fiz certo.
Mas e se a vida for, e sendo será?
E se tudo que ontem foi plano
Com o passar dos anos, se recurvar?
E se existir bastasse,
E tu me amasses,
Seríamos livres?
E se o vendaval cessasse,
Desfaria disfarces,
Rasgaria os alvitres?
Mas viver é querer
Algo a mais por dentro
E nos leva adiante,
A novas terras, o vento.
Poema Vivo,
Naquele dia tão lindo em que te criei
Falou-me o destino muitas cousas,
Muitas lousas que ainda serei.
Quietas as coisas e seres crescem,
E na noite estrelada, adormecidos
Sonham promessas e vestem
O mundo de um tempo perdido...
E tudo brota mais raro,
Cada grão que morre é caro,
E dele nasce mais forte a seiva
Que corre qual luz do céu claro,
Alimentado na insensatez que há.
(...)
Quintessência
Bem longe das querelas,
Um contorno de querência
A noite é bela
E me faz lembrar da quintessência.
Nas correntes de ar suave,
Há arabescos em teus abraços de ternura
Os volumes de nuvens invisíveis
Consubstanciam na tua alma forte e pura;
Pavio primordial cintilante
Que molha celeste a minha noite escura...
E quem disse que tudo invisível
Perdura?
Foi Deus.
Foi essa parte bonita
E perfeita
Do eu.
Então detrás do fogo, da terra, da água e do arvoredo
Poema Vivo, surge do céu o espagírico segredo...
Por isso te digo que muito maiores
São os éteres imolados
No tempo vazio,
No descer do rio fatigado,
Quando ouvi ao meu lado
Esse teu canto do bem-te-vi
De Poema vivo, dizendo-me fada,
Que ainda ontem viu-me estar por aqui...
Extraído, refinado, quinhoado de antemão,
De fato me fizeste contrair contrariada satisfação
Surpreendida naquela dor prolongada, infante...
Aquela mecha de vela torcida que canta o instante.
Sim. Assim me disseste muito mais!
Do que se em outro tempo, outrossim
Eu estivesse saciada demais.
Poema, há tantas coisas que te digo,
Que há pouco eu nem refletia
Apenas para que tu me saibas, e ria...
Quem sabe, nunca se sabe se algum dia
As nossas brincadeiras,
Que ocupam da gente apenas as beiras,
Terão resumido tudo o que há para saber.
Pois nesse espelho em que te vejo,
Eu pergunto antes de lhe dizer.
E na quina do desejo em que te beijo,
Desponta a estrela em você.
O que vem depois do teu beijo, Poema,
Aurora rosada de prazer profundo?
Alvoroçamos? Recriamos? Só o lazer do mundo?
Poema Vivo,
Um querigma continua a me dizer, no fundo
Que de mistérios o mundo já está bem cheio;
Mas se bem me recordo, Poema,
Para os santos não há fins, há apenas meios...
(...)
Hierósgamo
És esposo, ou és itifálico?
És de carne, ou és metálico?
Amor, sagrado é o teu lápis, teu lírio
E a dor do tártaro dilui em doce alívio.
Escreverei até as palavras acabarem:
A escrivaninha ainda empilha a mesma imagem.
Não irás colher aquilo que tu plantaste?
Não irás beber o pranto que de mim roubaste?
A mim vieram sábios, magos e hieróglifos
Queriam nos meus lábios o vinho do filósofo.
A conjunção foi dita, e bendita nossa mesa de óbolo.
Poema, pra quê gritar, se eu anteontem ri?
E a linda sóbole guardou-me invisível em si
Pois as palavras guardam o efeito se eu construí.
Mas Poema, também ouves minhas palavras, uma a uma?
Sentiste o aroma incombustível que nos perfuma?
O corpo saído em espírito, a celidônia idônea e suma.
Poema, ah! A nossa melodia apaga a noite e acende o dia
Poema vivo, eu te digo ao extremo e és supremo, quem diria!
Poema, feche os olhos e ouça a minha suave canção
A ave, que perdurando, dedilha as cordas de teu coração.
Poema, entrelaça minhas mãos nas tuas
Afinal, já me quebraste, vingaste e deixaste nua
Poema, reivindica-me! No céu, no mar, na rua...
Porque sou fêmea, é bem verdade
Preciso da tua dura, crua realidade
Para recriar o dia que vives, para sempre igual
Inserir-me, encerrar-me nele com a perfeição do cristal
Transparente, preciosa, úmida e pura
Cheia de som, verso, lágrima e vida em fúria.
(...)
Retrato de A. P. Arendt em permanente construção.
Nume
O homem nega a dor, e tem doença
Rejeita a mulher, anula a nascença
E o homem que dispensa o amor,
Tem necessidade de mestres
Escraviza-se com tanto ardor!
Tem necessidade de mestres.
Partido, Governo, mulher
Esposo, legislação, poder
Discurso, recurso, best-seller...
Ser escravo não é dever, ofício ou laço,
Nem muito menos direito
Ou pior ainda, compasso.
Muito melhor ver o mundo de um jeito perfeito
O rumo da Terra que orando, eu perfaço.
Direi sim apenas ao que me parecerá ser nume
Ao ser sensato, que cede soluto ao vão do lume.
E em muitos volumes, as palavras vividas celebrarão
Meu corpo, o gesto, o perfume, a númena interpretação.
Não há necessidade de assentir sem pôr fé
Poema, se eu não creio, melhor ser só o que se é.
E qual sentido, Poema Vivo, de para sempre admitir
Numa regra fixa, alguém que no fundo se tentará reduzir
E após tantas provas, tantas preces, tantos testes
Buscar outro, outro e mais outro que te adestre...?
Selvagem.
Poema, não deixe que ninguém idolatre tua imagem.
Jamais ser mestre.
Só alunos, que talvez algo logrem a cada semestre.
Só humanos, que erram na devida esfera terrestre.
Poema Vivo, deixei entrar teu amor de novo
Meu amigo, meu amor e poema vivo,
Te riste de novo de meu verso estorvo
E felizmente, Poema, poupaste-me da escravidão
Ah, poesia, teu amor gratuito, o toque suave de tua mão...
A arte de buscar respostas
Poema, buscar respostas é uma arte
Arte menor do que fazer a pergunta
Eu bem sei que tu, sensível, dizes:
Melhor seria não achar respostas nunca.
E assim cada proposta, tímida, incompleta
Alimentaria a alma sedenta do poeta
Que, irrequieta, indaga o porquê do teu dia vazio
Assim fluindo o raio, o céu, o mar e em nós o rio.
Amanhã, seremos o passado
Teremos anotado a realidade das nossas almas
As forças íntegras que nos moveram,
Os sentimentos íntimos que não arrefeceram,
Os espinhos mesquinhos que nos tiraram a calma
E que assim procriaram sendeiros para caminhar na paz...
O ego da esfinge, lágrimas que fingem, o riso de estirpe, tanto faz.
O voo retilíneo do pássaro, a queda da chuva no solo áspero,
O homem sôfrego que não se contenta com mais...
Amanhã, alguém encontrará em nossos manifestos as chaves
E o que não nos serviu, talvez desate entraves
Será o tempo em que este obsoleto obséquio nos valerá
E o verso relido, talvez, desencrave
A voz estanque que a vida nos imporá.
E quem sabe a tempestade leve então os restos,
E o inferno da solidão terá fim, quem pode supor?
Quem sabe, Poema, tu de tal modo me desposes
Que mesmo ferida, ressone em mim amor.
E que ânimo terá a vida no passado, verso querido?
Bom, ao menos terás sido vivo, e dito terás sentido.
Terás vivido neste, naquela, no tempo e em estante de mofo
Terás ouvido os olhos de quem lendo, te fez sofrer de novo
As mesmas dúvidas, as mesmas portas, o mesmo teto...
Olharás para cima, e verás então alguma cor mais de perto
Será mais branco o cal da parede com pobre reboco
Verás, quem sabe, a cor do cisne...
Que terás sido amado um pouco.
E não precisarás mais te convencer que o sentimento da tua mãe
Não é por obrigação genética, nem por tua conduta
Que a dor latindo em teu peito não foi feita por tua culpa
Saberás que o amigo perdoou, a mão escreveu, o mal se lavou
Quem sabe poderás, no futuro, Poema,
Responder a mim o que eu sou
Pelo que escrevi em meus dedos e de ti saiu
Os teus ritmos que o meu pensamento por dentro viu
Pois alguma regra magnética, cósmica, universal quand-même
Repõe tudo que nasce, dói, contorna e geme
Poema, voz da vida, se não há pergunta, só poeme..."
De: A. P. Arendt, O Poema Vivo, no prelo.
O jovem pintor Cassiano Araújo, natural de Garibaldi-RS, na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, onde expôs suas obras no Seminário sobre Refugiados e por ocasião do VIII Festival Sul-Americano de Cultura Árabe e Africana.