José Viegas, Embaixador aposentado, ex-Ministro da Defesa, escritor e conselheiro político nas horas vagas. Embaixador do Brasil em Copenhague, Lima, Moscou, Madri e Roma. Negociador da Reforma do Tratado de Tlatelolco. Pai da atriz Inez Viegas (Por toda a minha vida, Desabafo).
A Crisálida
Nunca haverá uma porta. Estás dentro
e o castelo abarca o universo
e não tem anverso nem reverso
nem externo muro nem secreto centro.
Não esperes que o rigor de teu caminho,
que teimosamente se bifurca em outro,
que teimosamente se bifurca em outro,
tenha fim. É de ferro teu destino,
como teu juiz. Não aguardes a investida
do touro que é um homem e cuja estranha
forma plural causa horror à maranha
de interminável pedra entretecida.
Não existe. Nada esperes. Nem sequer
no negro crepúsculo a fera.
Jorge Luis Borges, "Elogio da sombra"
Arendt. Embaixador, querido amigo, obrigada por aceitar o convite para esta entrevista. V. Ex. é único. Foi Ministro da Defesa, ocupou grandes cargos e conseguiu preservar dentro de si a disponibilidade, delicadeza e sensatez de que prescinde o mundo. Escapou da ilusão do poder com perspicácia e sensibilidade. Conte-nos um pouco sobre o que tem escrito. Poesia? Ficção científica?
Viegas. Não é ficção e não é científico. É uma reflexão, uma especulação metafísica sobre a interação entre máquinas cada vez mais inteligentes e pessoas que, na melhor das hipóteses, não perderão demasiado do seu potencial cognitivo. Tento explorar as fronteiras e encontrar continuidades. Chama-se "A crisálida".
"160327 Iluminação (domingo de Páscoa)
Saí de casa às sete da manhã quando o mundo estava apenas começando a quebrar, todos saíram ao mesmo tempo, sem rumo, como se cada um de nós fosse um quantum de vida, pequenos demais para entender o que estava acontecendo.
Estavam todos reunidos na praça onde convergem as ruas do labirinto, olhando, buscando, fugindo. Muitos questionavam em silêncio. Muitos aturdiam-se e com seus gritos aumentavam a desconexão flagrante que havia entre as pessoas.
Formavam turbilhões, a exemplo dos ventos cor de chumbo que dos céus baixavam em ciclones imprevisíveis, gritavam por Deus, outros diziam “Agora clamais!”. Chegavam em números enormes, tropeçando e sendo atropelados.
Em silêncio estava, em silêncio fiquei. Deixa-me entrar em tua casa. A minha... Um rio de água suja passava pelo meio da praça de pedra. Um grupo se abraçava e eram todos os iguais, sem diversidade. Outros grupos também se reuniam, cada um sobre si mesmo, seriam as seitas do futuro? Futuro?
Aquilo só podia ser o fim do mundo, pessoas nuas sendo linchadas. Havia também os que se uniam na diversidade, indiferentes às diferenças, apoiando-se uns nos outros, pobres marginados, outros mais, ajoelhados, não conseguiam rezar. Os tambores, os roncos, de onde vem tudo isso?
Não apareceram dragões nem soaram clarins. Dois bandos se formaram, um culpando o outro. Líricos enlouquecidos cantavam madrigais. Homens subiam para falar e eram apedrejados. De repente o desespero reuniu a todos, todos os gritos, todas as loucuras, toda a selvageria que não pergunta, não pensa, não sabe o que faz, violentos.
Não houve dia seguinte. Ninguém viu o sangue pisado, as tripas desforradas, os cabelos arrancados. Não havia mais gritos. Liberdade? Punição e morte. O que é progresso? Já ninguém pensa mais. Sentirão as almas? Remorsos? Culpas terríveis? O fracasso? Afinal, há sentido? Existe sentido? O mundo cabe na minha cabeça?
Eu não quero a morte. Nada espero dela. Que faço então?"
Trecho de "A Crisálida", manuscrito de José Viegas.
Arendt. O que V. Ex. acha que é indispensável como novelista, em um roteiro de ficção?
Viegas. Começar com uma boa ideia. Bater a massa para que ela tenha começo, meio e fim. Trabalhar os personagens. Buscar convergências e contrastes entre eles. Manter o enredo plausível. E ir por aí, navegando às vezes, às vezes voando...
"Translúcido
Agora, quando ninguém mais faz uso público da palavra translúcido, podemos resgatar o seu sentido puro. Todos conhecemos o sentido do prefixo trans, através, e do adjetivo lúcido, qualidade do que deixa passar a luz.
Ao contrário do que é transparente, o que é translúcido deixa passar a luz, mas não o objeto: As janelas de vidro corrugado, o vidro fosco que esconde a luz direta da lâmpada, o olhar puro da mulher, o que faz chegar a luz ao cérebro, o pensamento que daí decorre.
Lúcido, no entanto, ganhou um sentido adicional: Aquele que diz as coisas com clareza, que tem um cérebro iluminado, que expõe de maneira límpida as ideias. Ainda mais, o lúcido também sabe interpretar os acontecimentos, o sentido do Tao, a brisa permanente.
É lúcido ocultar e mostrar?
170704 "
Trecho de "A Crisálida", manuscrito de José Viegas.
Arendt. Qual seu escritor e livro favorito? Por quê?
Viegas. Rosa!. Corpo de Baile. Meu tio Jaguaretê. As pérolas que ele distribui. O som, o ritmo. O Rosa é bom de ler em voz alta.
Arendt. E falando um pouco de fronteiras. Entendo que o Embaixador Guimarães Rosa foi durante muito tempo especialista nesse tópico. Ao estudar e administrar as questões fronteiriças, como diplomata e Ministro da Defesa, V. Ex. se deparou com a herança dele? Viegas. As fronteiras são mesmo coisas interessantes. O Forte Príncipe da Beira chega a ser poético. Há rios que separam, há rios que penetram, há rios de bandidos. A Marinha e o Exército não têm hidro-aviões. Veja que o Rosa chefiou as fronteiras, mas, sábio, escreveu sobre os interiores, os segredos de dentro do corpo do nosso espaço. Não a pele, mas as entranhas.
Arendt. E quanto à morte? Acredita no dom da imortalidade de S. João e de Enoque? V. Ex. acha que isso faz parte da religiosidade, do misticismo, são dogmas de fé judaica e cristã, ou existe uma parte da realidade que decorre da Vontade, seja divina, seja humana, que é inexplicável? Viegas. Terreno complicado. São lendas. Podemos reconhecer como lendas e mesmo assim apreciá-las. As coisas do passado, abstratas, são evocações. Eu pratico a liberdade de escolher as lendas que me povoam a cabeça. Cada um tem as suas. Os gregos criaram ótimos arquétipos. Somos gregos até hoje, mas não sei por quanto tempo mais.
"Ruídos
Os tambores batem à minha porta - oito dançarinos
os amigos pedem uma poesia
três tambores e cinco Mulheres livres
Mas ando parindo criança morta
A cabeça lenta, quase vazia. - coreografia assincrônica
Os tambores batem com fúria ardente - sufocadas pelos tambores
Querem que eu lhes diga o que há de vir - mãos na testa, rodopiando aflitas
Mas não sei dizer, já não tenho mente - desordenadas
Não quero falar, não quero ouvir. - agonia
Só ouço barulhos, gritos, clamor - gritam; os tambores
Eu quero sair, voar pelo espaço também gritam
Para isolar-me com meu rancor. - Embolam-se, abrem os braços
Eu quero fugir, não sei o que faço - rodopio extremo
Não tenho esperança e não tenho amor - gritos agônicos
E não sei por que não me despedaço. - Still de poses dramáticas"
José Viegas.
Arendt. Embaixador, parece existir uma área limítrofe e cinzenta entre religião, ciência e arte. Quem ou o quê deve definir o equilíbrio, as áreas limítrofes entre essas esferas? Os fatos políticos hoje apontam, a seu ver, para uma resultante de intersecção entre essas formas de ver o mundo? Ou estamos fora dos três círculos, dando vazão ao caos e à entropia, em nome de egos inflados? Viegas. Egos inflados sempre existiram. Platão devia ser muito vaidoso. Agora eles são simplesmente muito mais numerosos. Essa roubalheira dos nossos dias, essa ausência de limites, o ato de seguir o caminho da compulsão de alimentar o ego sempre insatisfeito, cada vez mais insatisfeito. Doença. Por enquanto, a interseção das formas, neste mundo tão bizarro, toma a forma da confusão. Ela também se propaga e vai presidindo as coisas do mundo. De que serve o princípio da causalidade se não temos como evitar todas as confusões que ele traz? A confusão é maior que o esforço de organizar. É a velha entropia reinando eterna. Não sou contra a maioria do Supremo. Acho que há mais interesse público lá do que no Legislativo e no Executivo. Mas o Supremo não detém poder real. Ele é um sopro. Invejo os chineses. Eles seguem o sopro do Tao em vez de brigar.
Arendt. Eu agradeço muito pela sua contribuição à coletânea dos Poemas para Mariana. O seu foi o poema mais contundente, mais forte da coletânea, a ser publicada em momento futuro. Perdeu-se o momentum? Viegas. Respondendo de maneira irresponsável: A época da confusão ainda não passou. Nem sequer culminou. As cabeças, mesmo as pensantes, não estão conseguindo produzir ideias. O ritmo do caos, uma das entidades gregas de maior dimensão, é hoje bem superior ao pensamento criativo. É como tentar segurar uma represa rachada com gritos. Ai!
Arendt. O que é o ser humano, para V. Ex., e por que fazer literatura, teatro, cinema, poesia? Há alguma relação com a diplomacia, digna de nota, ou é puro pensamento mágico nosso achar que a arte esclarece algo na vida? Viegas. Sísifo, Prometeu, Ícaro, heróis de catástrofes, milhões de soldados inúteis em guerras tecnológicas. Pouca relação com a diplomacia, que não costuma vicejar no báratro. Vá falar em diplomacia no entorno da Avenida Brasil. Não há dinheiro para a segurança pública, mas não se taxam os lucros dos bancos. Que arte?
Arendt. O que V. Ex. diria a si mesmo, hoje, quando pela primeira vez pisou no Itamaraty na função de diplomata brasileiro? Viegas. Acho, se é que bem entendi a pergunta, que faria tudo igual, se igual seguisse sendo o mundo. A vida de quem hoje tem mais de setenta anos, como eu, foi um constante coquetel de deslumbramentos e incertezas, a ciência bombando, inutilmente, a pobreza aumentando, a razão se fragmentando. Talvez o melhor tenha sido a liberdade, embora não se saiba bem o que fazer com ela.
Arendt. O que faz a vida valer a pena, a seu ver? Pretende escrever memórias?
Viegas. Eu precisaria ter sete vidas para fazer tudo o que gostaria de fazer. Hoje, na maturidade avançada, gosto de pensar. Não escreverei memórias, não farei política, não praticarei o ódio, não me corromperei. Mais fácil assim, dizendo os nãos. Sábio, disse Fernando Pessoa, é o que se contenta com o espetáculo do mundo.
Arendt. Uma pergunta. Viegas. Será que vai continuar fazendo tanto frio? Arendt. Risos. Se sim, oxalá tenhamos um estoque de Porto, uma lareira e um cachorro. Obrigada, Embaixador, pelo seu tempo valiosíssimo. No aguardo do seu belo manuscrito. <3<3<3 Viegas. Obrigado a você.