Esta semana tive uma de minhas experiências mais gratificantes ao longo desta vida literária: participei da Oficina de Saberes Poéticos, a convite de D. Mario Antonio da Silva, bispo da Diocese de Roraima. O convite me foi encaminhado por Gabriel de Souza Alencar, servidor do IBAMA e coordenador do projeto Saberes Poéticos, e por irmã Telma Cristina Lage, coordenadora do Centro de Migração e Direitos Humanos da Diocese. A oficina foi viabilizada por meio de Padre Ronilson Braga, s.j., missionário português encarregado da Pastoral Universitária. Eles organizaram três encontros de atividades literárias com crianças indígenas da etnia Warau, com o apoio da Universidade de Roraima, dos quais participaram mais de 100 crianças venezuelanas refugiadas, em Boa Vista.
Fotos: Alcir Pereira (instagram: @baudesonhosfotografia)
VISITA AO ABRIGO de refugiados
O encontro começou com uma visita ao abrigo a refugiados indígenas no ginásio poliesportivo Ottomar de Souza Pinto, mantido pela Defesa Civil do Governo do Estado de Roraima e pela ONG Fraternidade, com o apoio da ACNUR, de missionários internacionais e de outros órgãos governamentais. Nesse espaço, as crianças recebem visitas da Pastoral da Criança e da Pastoral Universitária, sob as quais se congregam voluntários provenientes de várias religiões.
Um dos maiores riscos a meu ver para as populações que se encontram em situação vulnerável é se tornarem um objeto de políticas públicas, ao invés de sujeitos de direitos, em cima do qual se formam burocracias que absorvem recursos e ensejam mais impostos. Uma estimativa do Banco Mundial de alguns anos atrás era a de que apenas 5 a 10% dos valores de cada projeto de organização internacional chega efetivamente ao público-alvo. O restante não se perde necessariamente em corrupção, mas em salários e gastos com atividades-meio.
Felizmente não foi essa a realidade que constatei nesse abrigo provisório, mesmo porque não há recursos para tanto. Não havia ninguém fazendo discurso para sobrevivência de organizações ou para faturar em cima do sofrimento e das condições de precariedade daquela população. Os religiosos também são muito bem capacitados; a solidariedade transparecia e não havia ninguém perdendo tempo com proselitismo.
Ao mesmo tempo, pudemos encontrar o bispo do Vicariato de Santa Elena de Uairén, fluente em Warau, Monseñor Felipe González, com sua comitiva. Notei que é muito querido pelos índios. Dele recebi a manifestação de que é preciso ensinar aquela população indígena a ler e a escrever, bem como capacitá-los para utilizar computadores e internet, a fim de viabilizar o seu contato com o mundo e organizar suas atividades de artesanato.
Monseñor Felipe González, Peggy Vivas e sua equipe.
A situação de refúgio dos venezuelanos era irregular, até há alguns meses, pois para solicitá-lo ao Governo brasileiro é necessário preencher um formulário de 26 páginas e fornecer fotos 3x4 ao protocolar o pedido. Na situação em que se encontram, os refugiados não têm recursos sequer para alimentos. Graças aos préstimos de irmã Letícia, funcionária da Nunciatura da Santa Sé em Brasília, e a doações de equipamento pela Universidade de Bolonha, na Itália, foi possível imprimir cópias desses formulários e importar máquinas de impressão de fotos 3x4, desembaraçadas recentemente pela aduana brasileira.
Pe. Ronilson, s. j.
Naquele ginásio poliesportivo as organizações religiosas e internacionais desenvolvem um trabalho de entretenimento, saúde e alimentação, dentro das suas possibilidades. Por força de liminar e graças da atuação conjunta com o Ministério Público, foi incluída a presença permanente de viatura policial, após suspeita de atuação de traficantes no local. A ACNUR providenciou 70 barracas provisórias, dentro das quais se abrigam uma média de 10 refugiados, em sua maior parte, crianças. Estima-se, portanto, que estão instalados naquele abrigo cerca de 700 refugiados.
As condições são bastante melhores do que a situação anterior, na qual os refugiados se encontravam na rua e em total situação de abandono. Desde há alguns meses, as crianças e suas famílias têm acesso a água potável, a lanches e a segurança.
Uma visita da Pastoral da Criança, com pesagem e medição dos pequenos.
Destaca-se ali o trabalho de artesanato dos índios Warau: eles fabricam redes com o material de "muriti", o buriti, no Brasil. Desfiam cuidadosamente a árvore, produzindo linhas coloridas com que trançam as redes muito bem trabalhadas, as quais levam de um a dois meses para serem tecidas por cada pessoa. O resultado final é uma verdadeira obra de arte indígena. Mulheres e homens indistintamente também tecem outros adornos: colares e pulseiras de contas. Fiz uma doação de apenas R$ 50,00 e fui agraciada com um lindíssimo colar. Guardarei com muito carinho este presente.
Nem sempre a população indígena refugiada recebe materiais para fazer esses trabalhos. Às vezes passam semanas sem ter o que tecer, porque o material depende de doações. Também é possível observar que as instalações de higiene ainda precisam receber benfeitorias, especialmente para prevenir doenças parasitárias. Embora na cultura indígena se esteja habituado a um padrão de vida diferente do urbano, nas aldeias existem espaços maiores e os rios permitem uma melhor higiene do que a existente hoje, nesse local provisório. Durante minha visita, não pude observar a presença de nenhum médico no local, nem ações de atualização das carteiras de vacinação das crianças, o que pode configurar também um risco de saúde pública para a população infantil roraimense.
Lábios rachados. :(
Os aidamos, os chefes indígenas locais, também manifestaram desejo de que pudessem festejar seus rituais como originalmente faziam em suas tribos. Aidamo Marcelino me ensinou uma belíssima canção do ritual de iniciação Warau:
Wirinokoida (Rio Pai, Rio Orinoko)
Wirinokoida, wirinokoida
Arabokari, arabokari
Sikarinaine, sikarinaine
Bonosaanuka, awabakata.
Naquele espaço ainda não conseguiram celebrar o rito de iniciação das crianças, o que ameaça a transmissão de seus costumes, sua língua e sua música às gerações futuras.
Sr. Marcelino, aidamo.
A despeito dessas limitações, as crianças têm acompanhado suas mães e seus pais nas sessões de artesanato, e contam com uma motricidade fina e criatividade muito desenvolvidas, em relação a crianças não-indígenas.
As crianças também têm encontrado oportunidades de se entreter no espaço provisório, Têm aprendido canções em espanhol, tiram sonecas com tranquilidade e também aprendem a andar de bicicleta.
Um dos chefes aidamos relatou uma situação muito triste: quatro redes, o trabalho de quatro índios durante dois meses, foram subtraídas pelas autoridades da Prefeitura. Os fiscais, ao cumprirem sua função, apreenderam as obras de arte, por estarem sendo vendidas em um semáforo. Mesmo tendo obtido da Prefeitura a promessa de que as redes serão devolvidas, eles manifestaram muita tristeza. A subtração de um trabalho artístico que levou oito meses para ser elaborado é desanimador e diminui a auto-estima indígena, sobretudo pelo fato de que outros venezuelanos refugiados vendem seus produtos sem serem importunados pelo Estado brasileiro, porquanto é seu ganha-pão. Falta a essa tribo um contato comercial que possa fornecer material e vender seu artesanato com dignidade, em aeroportos e em lojas de prestígio.
Aos indígenas, juntam-se alguns venezuelanos que têm melhor domínio do espanhol, mestiços. São os chamados "criollos". O aidamo mais velho, Sr. Misa, me apresentou a seus companheiros, e me presenteou palavras muito poéticas, ao explicar que por vezes os filhos dos índios com venezuelanos retornam à tribo:
"acá está a mi lado este criollo, la semilla que el indio plantó, que cresció alrededor del indio, y que volvió a él en cosecha"...
A OFICINA DE POESIA
Gabriel de Souza Alencar.
O Encontro de Saberes Poéticos foi um projeto concebido por Gabriel de Souza Alencar, cronista roraimense premiado e voluntário da Pastoral Universitária, uma iniciativa ecumênica. Ele recebeu apoio do Chefe de Gabinete de Segurança Institucional, o Comandante Ricardo Ibsen Pennaforte. No terceiro encontro, organizado na Paróquia N. Sra. Consolata, tive a oportunidade de prestigiá-lo, juntamente com os excelentes artistas locais, dentre eles o cordelista Sr. Lindomar e sua filha cartunista. Participaram da terceira sessão do projeto uma amostra de 60 crianças, das quais cerca de 50 eram indígenas.
A eles distribuí exemplares do livro "A Casa da Mamãe Macaquinho", publicado pela Só Livro Bom Editora, em co-autoria com minha Filha, Catarina Alencar, a qual não pôde estar presente. Não podia imaginar que as crianças fossem gostar tanto do livrinho com macaquinhos. O organizador me alertou: a etnia Warau tem uma cultura de tradições orais, e via de regra considera o papel algo descartável: vão esquecer dos livros e dos desenhos. Não tem problema. As crianças brasileiras também são assim. Afinal, nós descendemos dos índios, lembra?
As crianças indígenas warau são muito espertas, comunicativas e abertas a estabelecer contato. Pediram-me que lessem para elas. Aos maiores, distribuí exemplares do livro "A Brisa e o Vento", também publicado pela Editora Só Livro Bom.
Um jovem criollo.
Algumas dessas crianças jamais haviam tido contato com um livro, nem sabiam do que se tratava um pincel e tinta guache. Foi preciso ensinar a elas como usar o pincel pela primeira vez. Ficaram muito entusiasmadas, especialmente ao saber que a melhor pintura ou desenho ganharia como prêmio um estojo de guache, pincéis e aquarela. Agradeço à Livraria Bon Pasteur, em Lomé, no Togo, pelo desconto oferecido na compra desse material escolar para as crianças refugiadas venezuelanas, que trouxe da África: pude distribuir um caderno de desenho, giz de cera, lápis de cor e apontadores para todas as crianças.
Na ocasião, após a apresentação do cordelista e desenhista Sr. Lindomar, pedi em espanhol que as crianças se distribuíssem em 9 grupos, e que desenhassem e pintassem esponteamente. Quando perguntei o que sentiam em uma palavra, cada criança se alternou respondendo apenas bons sentimentos: "paz", "felicidad" , "tranquilidad", "esperanza". Perguntei a elas o que esses sentimentos significam. E me disseram: "um pájaro que vuela", "un árbol florido", "la nieve de colores". Pedi que desenhassem esses sentimentos para que todas as pessoas compreendam o que significam. Foi então quando produziram lindas flores, casas, cidades, escolas e arco-íris.
(Este participante mais novinho optou por uma abordagem Jackson Pollock, e abanava sua obra de arte para que secasse mais rápido.)
Surpreendeu-me que as crianças indígenas mais jovens que haviam pela primeira vez desenhado com tinta tivessem produzido desenhos com detalhes visivelmente associados às contas e miçangas: pontinhos brancos sobre os contornos de borboletas, linhas de cores paralelas... As crianças refugiadas venezuelanas não-indígenas apresentaram, por sua vez, um padrão de desenho infantil mais parecido com as crianças brasileiras. O aspecto favorito deste grupo foi misturar cores para obter cores secundárias.
Eu perguntei a eles, onde está a poesia? E me responderam: em toda parte!
A ganhadora do concurso de desenhos foi uma jovem mocinha venezuelana, Victoria Nazaret Ozabarrio Sanchez. Desenhou um lindíssimo "araguaney", a sua árvore venezuelana favorita. Para nós, é a árvore oficial do Brasil, o ipê-amarelo. Para arrematar, ela incluiu três pontinhos com as cores da bandeira venezuelana.
Araguaney, por Victoria Nazaret Ozabarrio Sanchez.
Victoria perguntou se poderia ler para todos um poema que escreveu com sua mãe. Estava acompanhada de ambos os pais.
Todos os adultos ficaram em silêncio, pois ela arrancou arrepios com os seus versos prodigiosos.
"India apacuana
Hermosa india de gran corazón
de espiritu fuerte y luchador
su entrañable esencia es un caudal
donde nadan su descendencia
tras los años pasar
Venezuela tierra indómita
de mujeres hermosas
donde siempre han de brotar
semillas de coraje y libertad."
Victoria Nazaret Ozabarrio Sanchez.
Fiquei muito satisfeita e honrada em ter conhecido a Excelentíssima Srta. Victoria Nazaret Ozabarrio Sanchez em idade tão jovem.
Ao final, encerramos a atividade, com o jantar oferecido pela paróquia às crianças em suas dependências.
Sr. Lindomar, o rei da festa.
RORAIMA
Por fim, um passeio por Boa Vista, que compartilho com os leitores.
Não havia no momento da visita tantos refugiados venezuelanos neste momento em Roraima. Cerca de três a cinco refugiados podem ser observados a cada semáforo, e eles geralmente carregam placas dizendo qual serviço buscam. Algumas autoridades locais informalmente contam que a pior fase já teria passado: consideram que não haveria mais que 7 mil refugiados venezuelanos em Roraima, dos mais de 30 mil contabilizados anteriormente. Os demais teriam se dispersado pelo Brasil em busca de oportunidades.
A ponte dos Macuxis sobre o Rio Branco, na BR 401, a qual segue até a República Cooperativa da Guiana.
Por essa razão a capital de Roraima se chama "Boa Vista".
Monumento ao indígena.
Um barco típico ancorado no Porto, sobre o Rio Branco.
Tacacá de D. Ana Lúcia, na minha opinião o melhor tacacá do Brasil. Vale a viagem.
Paçoca, a farofa de farinha d'água e de carne-de-sol, é o prato mais típico de Roraima, servido com uma banana prata.
O sorriso de Irmã Telma Cristina Lage, primeira à esquerda, com seus colaboradores.
Contato para doações aos índios Warau
Vicariato Apostólico del Caroni
Sra. Peggy Vivas
+ 58 424 972 61 04
Centro de Migrações e Direitos Humanos
Irmã Telma Cristina Lage
Rua Floriano Peixoto, 302, Centro
Boa Vista-RR CEP 69.301-320
+ 55 95 3623 5990