top of page

PROCURE POR TAGS: 

POSTS RECENTES: 

SIGA

  • Facebook Clean Grey

Diplomacia e literatura. Debate nas Arcadas.


In memoriam de Rosa Pereira de Alencar * 23.10.1920 - + 31.10.2018

O lançamento na Livraria Martins Fontes em São Paulo foi precedido de um debate sobre Diplomacia e Literatura na sala São Leopoldo do Prédio Histórico da bela Faculdade de Direito da USP, organizado pelo Excelentíssimo Professor de Direito Internacional Dr. Wagner Menezes e Dra. Fernanda Bergman, coordenadores do Círculo de Diálogos do Barão de Rio Branco. Aproveitei para realizar uma doação à Biblioteca da Faculdade, recebida por D. Maria Lúcia e para contemplar a maravilhosa apresentação da OSESP na ocasião.

A seguir, publico as fotos e as minhas anotações de nossa conversa sobre Diplomacia e Literatura nas Arcadas. Desejo aos interessados uma boa leitura.

Agradeço pelas excelentes conversas e pelos abraços afetuosos. Beijos e até à próxima!






Diplomacia e literatura

Ana Paula Arendt

Sala São Leopoldo, Faculdade de Direito da USP.

Largo do São Francisco, 6 de novembro de 2018.

Obrigada ao Excelentíssimo Professor Wagner Menezes, à querida aluna e colega Fernanda Bergman pelo convite que muito me honra. Agradeço pela presença do notável poeta e diplomata Davino Sena e da editora e poeta Thais Matarazzo, os quais, creio, sao muito mais habilitados do que eu para falar sobre diplomacia e sobre literatura, e agradeço pelo incentivo e pela boa intervenção deles sempre que puderem nesta conversa. É para mim um verdadeiro privilégio estar nesta Faculdade, conhecer os grandes juristas que virão a nortear os rumos do Estado de Direito brasileiro, que serão as referências do Brasil no contexto do Direito Internacional, possivelmente autores de clássicos e da jurisprudência que virão a conformar e renovar as nossas práticas constitucionais e de justiça. Eu me refiro a vocês como colegas, porque sou também aluna de Direito. Tranquei o curso dessa segunda graduação, é verdade, em Brasília, no Instituto de Direito Público, para assumir funções no exterior, mas é uma condição, digamos, apenas congelada, que pretendo retomar quando estiver de volta ao País. Eu sou formada em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia, em uma época na qual apenas aquela universidade oferecia esse curso. Posteriormente vim para São Paulo, onde fui orientada no mestrado pelo Fernando Limongi, no Departamento de Ciências Políticas e estabeleci aqui domicílio eleitoral. São Paulo é a cidade em que nasceu minha filha, que hoje já está com 16 anos e por isso me importo muito com a cidade dela.

Apesar de conhecer o mundo de vocês tangencialmente, é com muito gosto que observo e aprendo com os grandes diálogos jurídicos, que leio na condição de leiga, nos processos e informações que vêm à tona na sociedade e nos meios especializados. Gosto muito de ler as novidades e os clássicos, meu livro favorito é o Antitrust Paradox, do Robert Bork. Minha revista nacional favorita é a Revista de Ciências do Estado, da UFMG, com a qual contribuo ocasionalmente na qualidade de parecerista em minha área acadêmica, mas muito me encantaria também conhecer o trabalho de vocês, aqui no Largo, sobretudo pela longa tradição com que vocês vêm contribuindo para o interesse nacional. As expressões em latim guardam, eu bem sei, tesouros arcanos. Vários de meus colegas são egressos desta faculdade notável e deles tive a melhor impressão possível de humanidade, de independência intelectual e de correição.

Mas eu venho aqui por ocasião do lançamento de meu livro mais recente, o epitalâmio “As veneráveis virtudes do homem” e a convite do Professor Wagner e de Fernanda para falar sobre diplomacia e literatura. Em primeiro lugar eu muito agradeço pela correta escolha da ordem desses substantivos: para mim de fato a diplomacia vem em primeiro lugar. Eu jamais na vida publiquei poesia ou literatura antes de ser cobrada a fazer isso. De fato aprendi a ler muito cedo, irmãos Grimm, Monteiro Lobato, Cecília Meireles, Júlio Verne, como estudei em Colégio Militar li desde cedo Olavo Bilac, e escrevia livros infantis quando criança, uma professora, incentivada por minha mãe, chegou a buscar uma editora em Sao Paulo, para publicar, na década de 1990… Meu pai me deu toda a coleçao de filósofos clássicos por volta de 1987, quando me falava de Platão e de Aristóteles, e eu achava aquilo intransponível, incompreensível… E também aprendi um pouco dos hieróglifos egípicios, com uma coleção de livros belíssima que eram lançadas em banca, e tentava encontrar mensagens dos escribas… Era a década de 1980, das grandes aventuras no cinema, aprendi código Morse, eu cheguei a aprender braile, o que posteriormente me ajudou a efetivamente a ler e corrigir provas em braile, quando tive um colega cego e fui sua monitora na Universidade, na disciplina de Formação Econômica do Brasil. Todo conhecimento que me chegava eu queria aprender, e todas as minhas tardes passava na Biblioteca Municipal de Porto Velho relendo Espinoza, Rousseau, Thomas Morus, Santo Agostinho, reli muitas vezes A Cidade do Sol, de Campanella, embora hoje já não me lembre muito bem de todas essas leituras… Mas elas imprimiam uma certa presença de espírito, uma ambição de descoberta. Assim é que adentrei no mundo da literatura. Não era uma biblioteca muito grande, era o que tinha para ler. A Universidade de Oxford na década de 1990 vendeu para a editora Globo uma série de fascículos que ensinava inglês a autodidatas, e nesse material havia seçoes especialmente dedicadas a explorar as obras de Shakespeare e de Nabokov, que escrevia em inglês, mas foi assim que virei atração na pequena sociedade da minha amada capital, Porto Velho, quando um médico que, raridade, sabia inglês, me trazia textos para eu traduzir. A minha família e os meus primos sempre liam e festejavam tudo que eu preparava, até mesmo as histórias com quadrinhos, inspirada no traço humorístico do Ziraldo. E tenho um tio poeta reconhecido, o Celso de Alencar, fundador do movimento da “poesia perversa” e ativo poeta de rua em São Paulo, o qual sempre levou muito a sério tudo que eu escrevia. Uma das minhas memórias favoritas era quando tio Celso ia declamar seus poemas com toda a seriedade nos nossos almoços em família, pois meus tios colocavam a mão no rosto de vergonha e desatavam a rir desmesuradamente. De modo que a poesia e a literatura para mim sempre foi sair da rotina, algo espetacular e divertido, e sempre tive muito incentivo da família e dos amigos.

Mas eu não planejava nem esperava me enveredar por essa área. Se eu tivesse de escolher entre os dois, entre diplomacia e literatura, sem dúvida eu optaria pela primeira seara, porque penso que para o Brasil a paz, sobretudo a paz com os nossos vizinhos, sempre veio antes de tudo. Mas a literatura, a poesia não é de todo uma atividade estranha à diplomacia e acredito que dificilmente possa haver uma incompatibilidade entre uma e outra. Vamos nos lembrar que Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto dizia que a poesia é um ato de paz. E que a Lucila de María del Perpetuo Socorro Godoy Alcayaga era, além de poeta, também diplomata. Aliás, quem aqui sabe que Pablo Neruda se chamava Ricardo Basoalto? E que a primeira hispano-americana a receber o Prêmio Nobel de Literatura, Gabriela Mistral, se chamava Lucila Alcayaga? Não sei se procede, mas ouvi dizer que ela recebeu a notícia em Petrópolis. Mistral por homenagem a Frédéric Mistral, um poeta que conheci apenas recentemente, escreveu lindo livro sobre a vida pulsante no vale do Rhone. E Pablo Neruda foi um pseudônimo que ela teria sugerido ao seu amigo, Ricardo Basoalto… Ele também exerceu certa funçao diplomática, quando cônsul na Birmânia, embora posteriormente tenha adentrado na carreira política.

Há outros nomes também da diplomacia e literatura no mundo igualmente relevantes. Saint-John Perse, poeta e diplomata francês, recebeu o Nobel de Literatura em 1960. Esse era um de seus pseudônimos, também. Dizem, aliás, que os franceses foram os inventores dessa categoria de “poeta-diplomata”. Ele se chamava Marie-René Auguste Alexis Leger e será homenageado da seção sobre poetas e diplomatas na próxima edição da Revista Itapuan. Peço paciência de vocês para aguardar a publicação do artigo a seu respeito, pois a entrega dos livros que trazem sua biografia tarda um pouquinho para chegar no Posto em que estou a serviço na África. Mas prossigo com a informação de que dispomos: Hitler se referia a ele como “o martinicanozinho saltitante” e era criticado no Quai d’Orsay por sua “pactomania”, ao abordar os diferendos entre a Alemanha e a França. Ele nasceu em Guadalupe, uma pequena ilha e território francês no Caribe e foi exonerado por ser visto como um diplomata que buscava contemporizar e dialogar com o Reich, anteriormente à guerra. Por ter sido muito diplomático, foi exonerado da função de diplomata. De modo que tendo iniciado uma imersão em estudos sobre radicalismo e violência política, tenho me interessado em pesquisar e conhecer um pouco mais da história desse poeta, que conforme alguns analistas se encontra entre a poesia e a ciência.

A Revista Itapuan, transmito a vocês, pode ser encontrada gratuitamente em minha página literária, uma publicação semestral e bilíngue de poesia, em português e francês, que preparei nas horas de lazer com a contribuição de poetas e diplomatas brasileiros e de outras nacionalidades. Recebo contribuições de todos, inclusive poetas iniciantes. Não há naturalmente recursos públicos para isso. Um diplomata francês me perguntou qual a finalidade dessa revista. Como diplomata encarregada do setor cultural de uma Embaixada brasileira, foi fácil elaborar uma resposta: uma ponte entre a poesia lusófona e francófona, para que possamos encontrar novas inspirações, sugerir afinidades e estabelecer diálogos entre nossas culturas. Eu li Yves Bonnefoy, e como não ver nele o equivalente francês ao Carlos Drummond de Andrade? Como poeta, contudo, qual seria a finalidade de fazer uma revista de poesia? A poesia encontra a sua finalidade nela mesma, pois ela é um alimento da alma, um alívio do espírito. Faço poesia porque o instante existe, dizia a Cecília Meireles. A Revista se chama Itapuan, aliás, em homenagem à música de Vinicius e de Toquinho, para passarmos uma tarde falando de amor em Itapuan… A finalidade de falar de amor é falar de amor.

Há também os nomes da literatura que se tornaram diplomatas consagrados: lembro o caso do autor do livro “Rouge Brésil”, Jean-Christophe Rufin, ganhador do Prêmio Goncourt, o qual aliás se tornou um filme, baseado num fato real e histórico, a criação da França Antártica, uma tentativa frustrada dos franceses em estabelecer uma colônia na região da atual cidade do Rio de Janeiro, que mais tarde é ocupada pelos portugueses, quando são expulsos do Brasil. O Rufin, ainda vivo, pelo que entendo é o membro mais jovem da Academia Francesa e colaborou como formulador da diplomacia humanitária em diversas regiões estratégicas para a França. Foi adido cultural na Embaixada da França no Brasil e Embaixador francês em Dacar. Em homenagem a um amigo, recordo também do nome de Graham Greene. Ele não era diplomata, mas serviu em muitos países em uma atividade afim, a carreira de inteligência. Autor de muitos livros memoráveis, a sua obra literária composta de thrillers inesquecíveis foi o que permaneceu.

De modo que se é verdade que a carreira diplomática oferece a oportunidade de viajar e conhecer novas pessoas e perspectivas, a literatura por sua vez também parece abrir portas para a diplomacia, sobretudo porque oferece a possibilidade de comunicar vozes e diálogos, sem os quais não é possível conduzir satisfatoriamente assuntos diplomáticos.

No Brasil nós conhecemos bem nossos poetas e diplomatas, porque são muito celebrados nas escolas: João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes talvez sejam os mais famosos. Guimarães Rosa, na vertente de narrativas, também apresenta uma certa verve poética, assim como a Clarice Lispector - a qual não foi diplomata, mas exerceu função diplomática, pois no Brasil o cônjuge de diplomata desempenha função com a existência, apesar de não ser remunerada. O Pio Correa, dizem, lia religiosamente seus livros e recomendava a todos sua visao aguçada das coisas, comprava-os logo quando lançados. A sua biografia, do Pio Correa, leitor também salvo engano de Beckett, a meu ver, é uma das mais importantes para entender a força do Brasil que temos hoje, a Brigitte Bardot no Copacabana Palace, por que razão somos a oitava economia do mundo e um juiz de primeira instância está em uma matéria do Times. Afonso Arinos de Melo Franco, chanceler por duas vezes e grande jurista, também escrevia consideravelmente. Dele eu conheço o “Amor a Roma”, um palíndromo de memória. Eu quis homenageá-lo quando escrevi a peça “O Constituinte”, em 2014, um enredo o qual fui escrevendo enquanto lia os arquivos dos Diários da Constituinte na página da Câmara dos Deputados, na qual eu quis transmitir um pouco daquele sentimento otimista e solene que vivi quando criança, aos meus filhos. Há uma resenha do Professor de Teatro Fernando Marques sobre a sua relação com o tempo presente, caso alguém venha a se interessar em dar uma olhada. Os grandes romancistas hoje que são diplomatas? Já li o Telles Ribeiro, o João Inácio, o Porto Vidal, e não me arrependi.

Contamos aqui com a presença do notável Davino Sena, espero possamos também ouvir seu relato, pois para mim é como estar em uma sala na presença de Vinicius de Moraes, fosse ele vivo, embora o Davino não seja ainda tão conhecido, pois seus poemas não foram musicados. Ele me recorda ainda de dois grandes diplomatas que se dedicaram à literatura: o Embaixador João Almino, um romancista de mão cheia em descrever grandes eventos e trazer à tona os relacionamentos com grande naturalidade; e o Embaixador Costa e Silva, um africanista, cuja contribuição literária em que compila as histórias que ouviu naquele continente dificilmente será superada no futuro. Ambos ocupam uma cadeira na Academia Brasileira de Letras e souberam coadunar com êxito as carreiras diplomática e literária.

Entendo, contudo, que tendo lido um pouco da obra de cada um desses poetas e diplomatas, declarações deles aqui e acolá, uma ou outra folha do maço pessoal, pude deduzir que desse êxito que notamos nos resultados por eles produzidos não necessariamente significa que teria sido fácil para eles conciliar a diplomacia e a literatura, apesar da teoria e da prática sinalizarem que ambas as atividades são complementares. Vinicius ganhou um Oscar de melhor filme estrangeiro ao rodar seu original Orfeu Negro. Compôs com Tom Jobim a cançao brasileira mais conhecida do planeta, a Garota de Ipanema. Sua promoção a Embaixador foi justíssima, apesar de mesmo após sua morte ter causado ciúmes! E em seu tempo, nada disso foi suficiente, diante de um Estado insaciável que não de hoje gosta de deglutir pessoas que não se encaixam em um molde muito específico. Tenho dificuldade em enxergar que algum diplomata dedicado à área cultural conseguirá porventura fazer mais pela cultura brasileira do que Vinicius. Fato é que quem veio depois dele contou com um caminho por ele aberto, face à injustiça de ter sido exonerado da sua função, a despeito de sua contribuição inestimável à diplomacia cultural.

Em parte, disso veio a minha ideia de publicar sob um pseudônimo em que homenageio a Hannah Arendt. É verdade que não vivermos em um estado totalitário, em que pese haver um autoritarismo muito forte na alma das pessoas, no modo como as pessoas se relacionam e na necessidade que têm de triunfar sobre o outro para obter o sentimento de êxito, ainda que seja por meio de um formulário banal ou de uma infâmia medíocre, ou pela maneira aparentemente mais inofensiva de classificar e rotular pessoas. Nem tudo é libelo, sobretudo quando se ocasiona o dano sobre a vida de uma pessoa. Vinicius sofreu efetivamente, quando ele em suas apresentações se descrevia como ex-diplomata. Talvez na teoria política se encontre uma resposta? Hannah Arendt foi uma teórica inimitável. Eu a homenageei e nela me socorri.

Também é verdade que talvez o Brasil seja o lugar mais inócuo para que qualquer tipo de totalitarismo prospere: nós somos malandros, irônicos e sarcásticos por natureza, Machado de Assis, nosso fundador da Academia Brasileira de Letras, nos ensinou sendo o rei de todas as ironias. Se bem, notem, muitos dizem que Machado teria ignorado a sua condição e eventualmente dificuldades impostas pela cor de sua pele, eu recordo que muitas vezes a ironia e o sarcasmo são formas de defesa pessoal. O que fazer quando o defensor de direitos humanos espanca? O que fazer quando a mulher que defende a sororidade difama? E quando os sacerdotes que defendem a família se tornam indiferentes à relação entre mãe e filhos? No Brasil, nós reagimos com ironia. E talvez, aliás, essa seja uma maneira muito sui generis do brasileiro em evitar a violência do conflito aberto.

Não obstante a nossa falta de propensão natural a levar tudo a sério, me preocupou sim, otema do autoritarismo cristalizado na forma de se relacionar das pessoas, notar que as pessoas estivessem levando tudo a ferro e a fogo, tomando excertos da vida como provas de uma realidade obscura. De modo que decidi inaugurar essa iniciativa modesta de uma pessoa só, e em 22 de abril de 2015, sob o pseudônimo de Ana Paula Arendt, e comecei a publicar alguns versos nessa aventura anti-ódio. Eu me sinto muito realizada quando as pessoas publicam corações, agradecimentos, palavras de amor e carinho nos posts. Me dão a ilusão de que isso não chega a ser um experimento, observar o que tem produzido melhores reações em acalmar e pacificar o ânimo no pequeno espaço que venho ocupando na rede. Aqui e acolá vieram saudações de apoio dos amigos e colegas, e acabaram me incentivando a produzir mais. Eu cheguei a apresentar meu ponto eletrônico quando necessário, em um memorando ao Gabinete, que passou a exigir o tema, e para minha surpresa observei que cheguei a trabalhar 12 horas diárias e também nos finais de semana e feriados, sem ter percebido. Porque é algo extremamente prazeiroso: fato é que a diplomacia e a literatura me são uma paixão.

Mas retorno ao tema do abuso pelos que contam com o poder temporário: ocorre que as verdades não se estabelecem pelo triunfo, pelo domínio. O poder, dizem, deve ser exercido por meio de imposições: essa é a lógica do poder que se ensina, na prática, na escola da vida, a lógica com a qual o poder se anima. Sempre o detestei. Odeio o poder, pois eu amo a política. O Embaixador Fernando Reis, meu diretor à época do Instituto Rio Branco, dizia, enquanto bocejávamos e protestávamos de que ele nada soubesse, como bons e arrogantes recém-admitidos: a diplomacia é uma profissão política. Ele dizia em sílabas pausadas para ser mais didático. É uma profissão po-lí-ti-ca. E eis que, tendo vivido um pouco, constatamos o aprendizado valioso que nos insistiu muito firmemente um mestre. A política não é o mesmo que o poder, a política é praticamente a antítese do poder. A política se move por meio do diálogo, o poder se move por meio da bajulação. A política se move pela cautela em não ferir, o poder pelo receio de retaliações. Para mim nada existe de mais digno existe que estudar e se dedicar a engendrar novas ideias políticas, arejar sabedorias antigas, conceber com imaginação o que o poder não é capaz de fazer.

Conto a vocês que tive frustrações amorosas a despeito de muito empenho em tentar fazer o que era certo e esperado de uma mulher. Hoje eu vivo em função apenas dos filhos. Quando me sentia levada aos meus limites, eu buscava escrever e encontrar respostas no que escrevia. Para eles também sempre criei histórias e algumas delas escrevi. Ano que vem estou preparando o lançamento do livro “Fábulas botânicas”, as quais eles sempre pediam para que eu contasse na hora de dormir. A poesia e a literatura virou para mim um espaço pessoal no qual eu posso me dar ao luxo da liberdade de conviver e me relacionar com eles, de defender meus valores e ideias sem o peso dos formatos, um espaço cuja defesa me trouxe até aqui, a vocês.

De modo que nos relacionamentos interpessoais me incomodava o autoritarismo em seus diversos níveis que, seja em fábulas ou em versos, tentei escapar ou me curar de seus efeitos. A sociedade brasileira o tolera lamentavelmente muitíssimo, a ponto de raras vezes discernir que o autoritarismo não é uma pessoa, mas um comportamento ao qual as pessoas se habituaram. Quando eu estava vindo para cá, no lançamento em Brasília, um avô conduzia sua netinha pela livraria e gritava com ela: “você não me obedece; não vou mais passear com você”. E nessa discussão, pela inércia de uma situação, deixavam de aproveitar os poucos instantes valiosos que ainda têm juntos. Sem dúvida que isso não é suficiente para julgar o relacionamento entre os dois, que desconheço, eram transeuntes, e sem dúvida que já passei pela terrível situação de ver uma criança sair por aí sem pedir permissão, e pelo constrangimento de ter de correr atrás dela e dar um sermão, mas será que uma questão de seguranca nos habilita a reduzir um instante tão mágico, entre avô e neta, a um problema de obediência? Tenho certeza que logo depois voltaram a curtir um ao outro. Mas há pessoas que se esquecem disso.

Como escritora mulher, muitas vezes também me vi reduzida em minha autonomia, porque sabemos que os homens que se importam conosco tendem a nos monitorar e nos proteger muitas vezes em excesso, o que confere uma certa margem de invasão de privacidade e legitima certos comportamentos que violam estatutos básicos. Eu não reclamo, naturalmente, porque faço e faria o mesmo. Não sei exatamente quem teria dado a ordem de internação de T. S. Eliot, quando seus escritos e citações de rodapé em grego produziram estranhamento, pois não estudei sua biografia, mas fato é que me parece mais seguro pecar pelo excesso de zelo, para depois retornar à normalidade, do que pela falta dele.

Eu busquei contornar essas restrições e constrangimentos com o direito me valer de um pseudônimo. É visto como uma iniciativa jocosa por muitos e já me partiram muitas vezes o coração. Há de se reconstruir e remendar um coração muitas vezes. Há pessoas que lidam com a existência de outros seres humanos como se fossem objetos ao seu redor, os quais devem ter uma utilidade específica, e isso por vezes me machuca muitíssimo. Certa vez uma cidadã me abordou dizendo que eu estaria “vazando” informações de trabalho por meio de poemas sem nomes ou referências… Felizmente, ainda que intempestivamente, veio um escritor e diplomata em minha defesa, afirmando publicamente que não há outro modo de escrever poesia, senão o de escrever sobre uma realidade que se vive… Ora essas! E que tipo de informação eu estaria transmitindo, falando bem e declarando amor a Pindorama? Raciocínio paranoico que me escapa. Outro colega, também incomodado que eu escrevesse, suponho, insistiu que eu deveria me identificar apenas pelo meu nome de registro civil e ridicularizou minhas postagens em mídia social sob um “pseudônimo judaico”, no que vi algum antissemitismo.

O Professor Wagner Menezes provavelmente não sabe, mas esteve envolvido em um desses episódios que testam o nosso caráter. Não seria tampouco algo conveniente que uma diplomata da área econômica inventasse histórias durante o tempo ocioso, então me enviaram à criptografia. Detesto criptografia! Eu queria escrever como uma cratilista. Deveria ter reagido, invocado o diálogo de Crátilo, em que Sócrates desafia haver uma relação motivada entre as coisas e os seus termos, que existe uma denominação que é a apelação natural de cada coisa e me recusado a ser transferida. Mas fato é que se o Itamaraty me disser para derrubar esta parede, eu possivelmente farei alguns planos de como realizar esse intuito. Vejamos: a filosofia nos momentos críticos se recolhe, não é possìvel pensar meio a fogos e contrafogos, argumentar é um exercício inútil frente ao juízo de um valor prévio. De todo modo eu suponho que jamais fui a primeira nem a última poeta a ser gozada no seu intuito e silenciar pensativa; talvez por ser mulher as pessoas se deem maior intimidade para cobrar avanços e melhor seja evitar o confronto. Eu certamente não fui a única. Mas desse amor incondicional que tenho pelo Itamaraty e aceitação da disciplina que me impuseram me fizeram hoje vir parar na área cultural e para mim é um privilégio contar com a companhia de um chefe que gosta de poesia e de literatura. De modo que sigo insistindo em escrever, e não há outra maneira de escrever senão livremente.

Entendo que escrever poderia ser algo mais agradável, sem dúvida seria mais prazeiroso assumindo formatos mais plausíveis e já experimentados, mas não estou atrás de agrados. É lógico que quem acumula as funções de poetas e diplomatas enviam-se poemas, mas entendo que se o fazem, é mais para se deleitar com isso do que efetivamente ter algum resultado editorial. Custa tempo e dinheiro investir em um contexto, em um molde e em formatos para garantir uma boa receptividade, um esforço que poderia ser canalizado e melhor aproveitado na experimentação e na criação. Até o momento publiquei sete livros, mas escrevi alguns outros. Há autoridades no assunto, quando o assunto é poesia? A poesia é algo que não combina com sentimento de algo estabelecido e de valores incontestáveis. Sim, entendo que é necessário pensar comercialmente, pois o ânimo do poeta também se alimenta dos sentimentos que seus versos produzem nas pessoas… Mas eu entendo que talvez venha com o tempo, o apoio de grandes nomes em uma obra. Conto a vocês que recebi uma mensagem alvissareira de Renata Pallottini, aluna destas Arcadas, uma das poetas vivas que mais admiro. Eu tive muita sorte em encontrar um ou outro autor que admiro antes de que se tornassem inacessíveis: respeito a obra do poeta e diplomata indiano Abhay K., e é esfuziante o entusiasmo do poeta e diplomata togolês Steve Bodjona, que publicou livros no Japão e organizou a primeira Feira Internacional do Livro em Lomé, tendo atraído mais de 8 mil pessoas daquela região da África Ocidental que amam a leitura. E quem sabe se torne grande quem hoje me concede o privilégio da amizade? Ao menos o tempo concedesse aos meus queridos amigos o tamanho que eles ocupam em meu coração! Eu considero Abhay e Kangni Alem, um sherpa cultural da francofonia, gigantes.

Eu neste momento partilho do sofrimento daqueles que encontram o prazer em escrever, mas que têm de dedicar extenso esforço a sobrepujar as barreiras de se ver publicado. Mas importante para quem ama verdadeiramente a poesia é mesmo o luxo de escrever um pensamento próprio. Vejam que um romance do francês Claude Simon, ganhador do Nobel de Literatura há 32 anos, foi recusado por 19 editoras, em um teste cego. Virou notícia no Globo, a iniciativa de um fã dele, para demonstrar que nem sempre um bom livro será aclamado: pelo contrário, ele foi considerado inapropriado para publicação, por apresentar “frases intermináveis”… E vejam Jorge Luis Borges, ou Fernando Pessoa. Eles sequer ganharam o Nobel! Alguns não se encaixam no espírito da Academia, mas a sua engenhosidade não é menor nem menos inesquecível por causa disso. São para mim e creio que para todos os autores iniciantes um exemplo de determinação em não se diminuir nem desistir pela falta de apreço e de reconhecimento em seu tempo. Logicamente os prêmios sao importantes, eles nos dão um sabor de êxito, um impulso de alcance. E é como ganhar um presente no aniversário. Mas sigo entretida apenas com a poesia e com os encontros, talvez algum dia eu consiga publicar, como os meus colegas diplomatas, algo digno do Jabuti. Constatar que os meus colegas, que certamente seriam mais qualificados para falar sobre diplomacia e literatura do que eu, ganharam prêmios nacionais relevantes após muito esforço e empenho me anima a seguir nesse caminho aberto por eles.

É para mim um grande mistério, a poesia, quanto mais a estudo, mais ela me impressiona. Eu comecei estudando este ano para não ser uma poeta analfabeta nem insípida. E também para tentar produzir algo melhor. No livro A herança de Apolo, do acadêmico e Embaixador Geraldo Holanda Cavalcanti, ele esgrima que não existe nada mais constrangedor que um poeta analfabeto, por isso me esforço em aprender, mas é perfeitamente factível afundar em um autor, sobretudo quando a sua obra é vasta, e tenho evitado me aprofundar muito em cada um deles, aproveitando um ou outro aspecto e sugestão que me parecem ser inspiradoras. Acredito que isso possa ser feito por quem deseja se dedicar a diplomacia e literatura mais cedo, vocês podem dar início a esses estudos e promover encontros enquanto se encontram na faculdade. Mallarmé considerava uma pedra filosofal, encontrar e produzir uma Grande Obra, com letras maiúsculas. Ele reuniu grandes nomes que debatiam naquela Paris da belle époque, como Oscar Wilde e André Gide. Essa aventura é presunçosa? Será presunçoso se inspirar em quem fez história? É uma tamanha ousadia existir, e seguir existindo, e não parar de existir! Eu tenciono prosseguir nesse magnífico esforço contínuo de continuar existindo! Espero que vocês também. Por quanto tempo existiremos? Só D’us sabe.

Eu estou portanto em busca de dar uma verdadeira contribuição, de deixar algo para meus filhos do qual eles possam se recordar com carinho e compreensão, com o que possam rir e se deleitar, uma prova de que o entusiasmo é um ímpeto emocional indispensável para atuar na vida com inteligência e elegância, sem o qual nós nos tornaremos robôs da burocracia e presas facilmente manipuláveis de quem produz a informação, ou controla redes de prestígio. Eu quero deixar a eles um sentimento de pertencer à humanidade de se orgulhar dela. Eu não acho que sejam necessárias credenciais, diplomas, prêmios, cargos, estigmas para se ter entusiasmo, para se levantar novamente a cada queda, a cada dia. E para isto é necessário um certo espaço. Novas linguagens? Eu não sei. Octavio Paz, elogiava a riqueza da nossa literatura, pouco traduzida e pouco conhecida nas demais culturas, mas também dizia, ao traduzir a poesia concretista brasileira, que essa linguagem era praticamente ditatorial. Penso que a nossa língua portuguesa tem fronteiras que nos são ainda muito desconhecidas. Houaiss tentou explorar essas fronteiras, e para mim está claro que ao expandir o nosso conhecimento linguístico, nós podemos expandir também a diversidade e complexidade dos sentimentos que comunicamos e percebemos, das informações e conhecimento que transmitimos. O Embaixador Antonio Houaiss é o nosso Diderot, e onde estão os seus efeitos? Nós somos seres humanos, produtores de cultura, de pensamento, temos o dever de conhecer e visitar o seu trabalho. Fernando Pessoa dizia que nossa P É lógico que quem acumula as funções de poetas e diplomatas enviam-se poemas, mas entendo que se o fazem, é mais para se deleitar com isso do que efetivamente ter algum resultado editorial. átria é nossa língua. Outras línguas têm também excelentes comandos e nos conduzem a sentimentos e ideias que podem alimentar o nosso espírito de diversidade de perspectivas.

Dizem que não se pode reclamar de falta de espaço no Itamaraty para escrever boa literatura, e ai de mim se eu duvidar disso: já recebi puxões de orelhas. Talvez não conhecessem os grandes poetas e diplomatas que fizeram história sob pseudônimos? Nem todo diplomata gosta de literatura, nem todos amam a poesia ou consideram indispensável o afeto nas relaçoes diplomáticas, se bem os fatos demonstram que maior resultado se alcança quando se cultivam os sentimentos reais por trás das formalidades. O Dr. Wagner pediu desculpas pelas formalidades: mas há formalidades que aproximam e informalidades que afastam, não é verdade? E houve um tempo na história em que apenas era digno de ser registrado o que pudesse ser expressado em linhas poéticas. Aos que consideram que minha poesia seja muito ruim, qual escritor começou publicando apenas excelentes linhas desde o começo?

Felizmente apareceram ao longo destes primeiros anos em que engatinho também outros poetas e diplomatas cuja existência e brilhantismo eu ignorava, um deles aqui presente, o Ministro-conselheiro Davino Sena. O Raul de Taunay foi quem me chamou pela primeira vez de “poeta”. Eu me lembro do momento exato em que ele pronunciou esse pronome de tratamento, porque ele falou como uma bendição solene, num encontro com grandes Embaixadores em sua residência e com sua nobilíssima esposa, e não como se eu fosse uma maldita engrenagem que começou a dar problemas. Foi assim que literalmente se referiu, num relato a meu respeito, um burocrata da Esplanada do qual já não me recordo. Eu era uma pessoa normal que havia começado a dar problemas… Fiquei triste. Depois que eu assumi ser poeta, sim, sou poeta, repeti para mim mesma, criei um portal de poesia! E me perguntei muitas vezes aos amigos que me leem, aos capitães dedicados à poesia, como o Davino Sena… Sou poeta? Não, não sou poeta, sou cientista de rimas… Sou uma mulher extravazando, tendo uma catarse, um colapso solitário um após o outro, na ausência dos meus filhos? Sou uma diplomata dilacerada pelo ofício que encontrou na poesia e na literatura um consolo para ser feliz? Uma vadia errante em busca de seduzir um homem com versos, que não percebe o quão bizarro pode soar o galanteio na voz de uma mulher? Autora de rimas infantis e escolares alternadas com buscas infindáveis no dicionário? Talvez tudo isso, mas não apenas isso. Nenhum ser humano será apenas a opinião de alguém que a deseje impor como uma realidade definitiva. Felizmente creio que jamais estive envolvida em alguma iniciativa diplomática que não tenha produzido bons frutos, e foi com esse mesmo entusiasmo que aceitei ser rotulada como poeta, definição daquele ser vivente que se recusa a ser classificado, embora eu ainda não esteja muito acostumada a esse prestígio.

O que seria uma verdadeira contribuição a meu ver? Eu não sei, já joguei e rasguei muitas centenas de páginas. Já queimei um livro inteiro. Não sei se eu me arrependo, a despeito das consequências nefastas. Eu perdia tudo que escrevia antes de 2012, o que acredito terem sido meus melhores textos e reflexões, lamentavelmente era muito hostilizada se escrevia e tinha medo do ridículo. Sim, na década de 2000, escrever sobre o amor, ainda que ficcional, pode ser fonte de muitas hostilidades, porque suscita o clandestino: quem você ama? Para quem escreve? E dar de ombros, valer-se de um pseudônimo para inventar, escrever e desenhar tiradas de humor pode ser pretexto subliminar para quem busca adversários. Escrevi alguns textos os quais eu espero jamais sejam publicados. Afinal, quem eu descrevi tão bem, qual autoridade eu tentei inocentemente divertir? Por que as pessoas ficaram tão incomodadas com algo que uma autora tão desconhecida e irrelevante escreveu?! Eu não havia então publicado nenhum livro. Isso me surpreendeu e fiquei ponderando muito a respeito do poder da palavra e da arte e me levou a levar a arte de ministrar as palavras mais a sério. Contou-me um Embaixador muito louvado, sobretudo por mim, cujo pai era grande amigo de Vinicius de Moraes, que certa vez, há muitos anos, foi chamado a julgar um colega, ainda estudante do Instituto Rio Branco, por ter feito supostamente uma caricatura do então diretor. O seu parecer, muito sagaz, foi o seguinte: não era possível identificar no desenho de quem era a caricatura, apesar do diretor se ver inequivocamente retratado nela… O Dr. Wagner me contou que ele também pretende lançar um livro de poesia ano que vem, mas está receoso, porque as pessoas costumam de fato estranhar que alguém em posição de muita formalidade venha a publicar poemas. Eu rio com vocês, mas entendo perfeitamente esse sentimento frente a uma patrulha social que muitas vezes nos impõe restrições criativas. Dou meu testemunho de que o apóio integralmente, porque muito me comoveu um poema seu, publicado à época de um acidente em Mariana, no qual ele preferiu abordar uma questão desse nível de dificuldade com a graça e profundidade do sentimento de um jurista.

Fato é que talvez todo escritor que se dedique com muito afinco a se expressar por meio da palavra escrita encontre resistência e obstáculos no ambiente ao seu redor. Num ambiente muito sensível, talvez esses obstáculos sejam mais complexos. Apenas recentemente eu considero ter ganhado algum espaço e a disciplina de registrar tudo o que escrevo, para depois corrigir e revisar. Para quem deseja seguir na carreira diplomática e insistir em se dedicar à literatura como sujeito ativo e produtivo, eu partilho com vocês a recomendação de depositar tudo em mais de um registro público, porque já não contamos com a mesma segurança de antigamente; algo que você envia a um e-mail hoje amanhã pode se perder com a mudança de um provedor. E notem que até o Museu Nacional tristemente já pegou fogo. Mesmo após ter melhorado meus registros, cheguei a perder algumas estrofes deste livro que apresento a vocês, a partir da estrofe 16, porque esqueci de fazer um backup, estrofes que me ocorriam meio aos sonhos, palavras que eu garimpava no Houaiss… Eu me lembro de haver encontrado uma palavra para libação com água. Sim, porque libação creio que seja com vinho, mas eu havia encontrado um verbo mágico, libar com água, algo cujo significado se aproximava a um batismo de um evento em um banquete… Eu não me recordo. Geralmente anoto em minhas cadernetas. Mas perdi essa palavra em 2015, porque infelizmente me mudaram de seção e me retiraram meu computador antes de que eu pudesse salvar o arquivo. Eu retornei à minha estação de trabalho alguns meses depois, chamei um técnico em informática, busquei a palavra no registro do histórico de navegação, mas ele não conseguiu recuperar o arquivo anterior nem os registros. Então refiz os versos com o que restou em minha memória e tive de me conformar de tê-los escrito depois do momento da inspiração, que foi se preenchendo e retornando proporcionalmente à minha dedicação a esse esforço. Quem gosta de escrever sabe o quanto perder um verso que surge inteiro do nada é um sentimento frustrante. Por outro lado, a essa frustração se segue sempre um novo fôlego, um anseio para preencher o vazio do verso que foi perdido, embora nao seja tão bom quanto o verso anterior. Mas aqui estamos, quem sabe, algum de vocês um dia encontre essa palavra perdida? Eu terei prazer então de incluir mais versos no livro em uma nova versão.

O que há de diplomacia neste livro de poesia que lançarei hoje em São Paulo, que escrevi às vésperas das Olimpíadas no Brasil? Eu conjuro a vocês o Príncipe de Talleyrand, cuja obra venho traduzindo, para recordar que casamentos, embora sejam algo sério demais para serem confundidos com o amor, abrigaram por vezes esse sentimento, e que muitos arranjos diplomáticos eram pensados considerando não apenas elementos objetivos do cenário político, mas também as alianças e teias sociais que se compunham por meio desses vínculos de relacionamentos conjugais. No Brasil, o José de Alencar, filho de Martiniano, meu tio ascendente e patrono do Dia Nacional da Literatura, foi casado com uma Cochrane, se não estou enganada, após Lord Cochrane ser enviado com sua esquadra pelo Imperador, para lidar com Tristão de Alencar, filho de Bárbara, o qual declarou a Confederação do Equador até o que o Imperador cumprisse a Constituição de 1824. Esse conhecimento primitivo e ancestral de resolução de conflitos, muitíssimo humano, que era celebrado pelos poetas romanos na antiguidade com poesia nos vários momentos das bodas, me pareceu uma fonte muito rica de se beber e prazeirosa de se pensar a respeito durante momentos de turbulência. O casamento era visto como um espaço de estabilidade sagrado, quando profanado deu origem à República romana, e me pareceu que o prazer do sexo legítimo e o prestígio da monogamia jamais saiu de moda, embora seja pouco aclamado nestes últimos tempos. No livro “Diplomacia suja”, um livro do Craig Murray, um diplomata britânico que conta sobre as engrenagens questionáveis em certas fronteiras, talvez o tema do casamento seja ainda algo atual e relevante, sobretudo se nós consideramos que a geopolítica não se aplica apenas a um território geográfico: são vários os territórios temáticos nos quais as potências buscam estender prestígio e poder de veto, de influência e de decisão.

Além do que esse formato é uma forma também de aliviar a pressão ao falar sobre o assunto, pois ainda há muito preconceito contra as mulheres que falam abertamente de sexo, se não o fazem em um discurso científico. O tema é sério, mas tentei ser por vezes lúdica. Num epitalâmio, o assunto é o sexo que não pode ser criticado pela sociedade, o sexo lícito. Eu não tenho conhecimento de nenhuma mulher do gênero feminino, até o momento, que tenha escrito antes deste momento um epitalâmio. Li o de Spenser, de 1594, numa excelente coletânea inglesa, e o do Fernando Pessoa, de 1913, acho. Sei da existência de um epitalâmio de Safo. Eles naturalmente trazem uma perspectiva a meu ver muito masculina. Tentei colocar um pouco da visão feminina de soberania que o casamento, o tálamo legal, outorga.

Como vocês podem notar, o tema também vai um pouco na contracorrente da tendência de colocar a mulher no centro dos acontecimentos e discussões. Eu devo falar sobre isso, sobre o protagonismo do homem e inversibilidade dos papeis no evento em Lisboa dia 8 que será divulgado, espero possam acompanhar e contar com a crítica de vocês.

Pessoalmente para mim foi também um exercício para tentar preservar a minha feminilidade e esperança, porque depois de uma experiência ruim de violência, que espero vocês não venham jamais a viver, a gente tende a se blindar contra o sexo oposto. Escrever é pensar a respeito.

Espero que não esteja de todo um resultado insatisfatório, estas estrofes líricas que bebem de formatos antigos, de alguma ritualística clássica romana, do arrebique das palavras novas, como instituiu Cecília Meireles sobre a alegria da poética. A expressão é dela, no prefácio. Mas falei bastante sobre as dificuldades, azares e estranhamentos de toda sorte que se enfrentam ao escrever, as quais apenas os autores conhecem. Sobre os prazeres e volúpia de ler algo que nos agrada a nós mesmos, deixo a avaliaçao a cargo de vocês, convidando-os para o lançamento do livro na livraria Martins Fontes, no final desta tarde. O que chega aqui até vocês nesta obra e nas que serão brevemente publicadas é o que resta, o que sobreviveu, viajando pelas estradas no interior de Minas, pela fronteira ao sul do Brasil de ônibus, transitando entre diferentes mundos, observando os relacionamentos entre os casais modernos, os impedimentos morais e o que me pareceu ter grande valor.

Eu publiquei outros livros, também, dois um pouco confessionais, alguma literatura infantil, um ou outro roteiro em que registro e resumo fatos que me pareceram ensinar raciocínios dos quais eu deveria me recordar. Os meus favoritos são os Sonetos de Verdadeiro Afeto, que saem publicados, espero, ano que vem; e os Salmos para meus Filhos, que estou escrevendo ainda. Vocês podem encontrar algumas amostras na minha página. Em breve também pretendo lançar meu primeiro livro escrito em espanhol. Será uma surpresa aos meus leitores favoritos, meus filhos, pois pensei em algo bem diferente das narrativas que temos hoje, eu gosto de arriscar novidades. Os meus amigos uruguaios não cessam de cobrar que eu termine, já planejaram até o lançamento. Suspeito que gostaram do começo, quando publiquei na página literária. Não sei se escrever ajuda a manter os fatos e sentimentos na memória, dizem que sim e as minhas memórias de um tempo com meus filhos são com certeza mais lindas do que eu possa vir a escrever. Nas releituras dizem que há sinestesias. Sempre é possível revisitar, vez ou outra, esse líquido prateado do passado, por vezes dourado dos sentimentos eternos. Frequentes vezes choro quando me lembro das circunstâncias em que eu escrevi. Meu pai chorou muito quando leu a Casa da Mamãe Macaquinho, mas dificilmente suponho que alguém venha a conhecer profundamente a razão de um sentimento. Ler a poesia é um exercício de sensibilidade.

Em suma. O que posso dizer a vocês sobre a minha experiência pessoal e este caminho de ser mãe, diplomata e poeta é uma loucura. Ontem eu acordei de manhã, um pouco perdida por causa do fuso horário. Antes de abrir os olhos eu me perguntei onde estava. Eu não sabia dizer. Pensei bastante antes de abrir os olhos. Não me lembrava. Abri os olhos. Eu estava na casa dos meus pais, em Brasília. Cadê meus filhos? Eu estou com eles, mexo meus braços mas os meus braços nao encontram o corpo deles. Ah, estão em Montevidéu. Eu estava com eles anteontem ontem. E hoje estou aqui, não acordei em São Paulo, porque eu tive de partir durante a madrugada, tenho voado pela noite. É difícil não acordar em São Paulo, eu tento localizar o Pateo do Colégio, para me localizar onde estou no espaço. E amanhã sigo para Lisboa, penso no teto da Catedral da Sé, que ainda precisa de uma pintura, e então retorno para Lomé, onde eu tenho de voltar a assumir uma forma social e oficiosa, ser muito polida, falar do tempo com os colegas e Embaixadores, e dos eventos relevantes para os telegramas, uma pequena faixa onde circulam os eventos do mundo e onde se diz existirem os propósitos. Ali eu tento me disciplinar, acompanhar meus filhos e corrigir tarefas e ler histórias e verificar o que comeram pelo tablet do qual eles não desgrudam, enquanto não nos vemos.

Esse trânsito de afetos corre sobre um oceano violento e indomável, o Atlântico, sugere algumas imposições massivas do espaço, incorpora dúvidas sobre o magnetismo submarino da Terra, a injustiça de que a um homem tenha sido concedido o privilégio de escrever sobre os ventos apaixonados do Pacífico, a outro homem os bons humores das canções do Mediterrâneo, e eu tenha ficado com essa parte selvagem, esse oceano que não tenciono domar, nem quero muito saber, talvez algum dia eu olhe para as notáveis proporções do Atlântico, mas sobreviverei a isso? Nesse entretempo eu olho para o céu, para o espaço. Como os planetas se mantêm em órbita? Como o mar sobe com a força da lua, e por que a lua não tem essa força sempre? Os cientistas ainda não explicaram a origem da força gravitacional do sol. Eu não consigo dormir direito quando penso nisso, eu penso nisso há muitos anos, desde quando estava conversando com a minha prima na hora do recreio em 1995, e agora ela está perto de Barcelona casada ocupada com a filhinha dela, então eu vou ter de seguir perguntando isso para outra pessoa, mas a pessoa que deveria me oferecer respostas teve um acidente, preciso visitá-lo em Lisboa e não quero incomodá-lo, então eu partilho algumas dúvidas com vocês. É preciso haver uma explicação para essas dúvidas. E se tudo o que pensamos e experimentamos não for o que pensamos e experimentamos? E se houver vontade em corpos celestes, e se formos apenas uma parte pensante disso, a matéria que pensa, conforme o Sagan, o holograma de David Bohm, os medos de Oppenheimer? E há tantas coisas por descobrir ainda que não sabemos, mas que talvez Shakespeare saiba, que os poetas se aventuraram a descobrir e arriscaram dizer saber.

Nesse ínterim, enquanto as perguntas sobre o universo e sobre o mistério da vida permanecem sem respostas permanentes, eu convido vocês a vir no lançamento este fim de tarde, abrir o livro, beber uma taça de vinho, e com isso re-escrevo poemas sobre Baco e seus parentescos num cântico antigo em rimas com que Santa Rita Durão fundou o Brasil em Caramuru, enquanto vocês estiverem lendo e lembrando do teor desta conversa, e se perguntando qual o sentido de estar falando a vocês, de tentar encontrar algum sentido nisso tudo.

O Chanceler Antonio Francisco Azeredo da Silveira dizia que o importante é ser feliz. Eu digo a vocês que sou muito feliz, porque nada disso interferiu negativamente no amor que tenho pelas pessoas que sigo amando; porque muito me honra muito servir ao Itamaraty, ainda que dentro das minhas limitações; e porque faço o que eu amo, escrever para os meus filhos, encontrar melodias com palavras, escrever para as pessoas em geral, ainda que venham a ler apenas depois e ocasionalmente. Será que uma história tão específica e pessoal pode oferecer algum caminho plausível para quem deseja experimentar essa interseção delirante entre algo racional e emotivo, esse dever de intercessão permanente do poeta no mundo? Eu rezo para que busquemos a felicidade naquilo que fazemos e no que a vida nos apresenta, amparados numa fé madura de que teremos mais dias e dias melhores, que é possível trabalharmos para isso, para refletir sobre o valor das coisas simples, dos encontros não formulados, dos eventos que aguardam nossa formulação e disso extrair sentimentos verdadeiros, verdades sentimentais, palavras que dizem. Um País habitável e confortável que sonhamos para viver saciados. Eu não tenho nenhuma recomendação a quem deseje seguir esse caminho, senão a de ter uma firme esperança de que o caminho em algum momento terá sido trilhado, se mais pessoas vierem por ele. Talvez o sacrifício que é imenso hoje se torne menor com o tempo. Posso dizer que a vista é belíssima de onde eu me encontro e constantemente me comove, a ponto de ser impossível não escrever. Obrigada a todos e estou à disposição de vocês para comentários, encontros e perguntas.

Agradeço pela paciência e interesse em ouvir esta longa reflexão. Obrigada a todos pela presença!

bottom of page