a vida é um evento feliz
Lançamento do livro Hinário do Mundo, no KC Dorcol, com os alunos do IGR.
Noite de Vatapá, pão de queiro e brigadeiro no KC Dorcol, durante o debate literário "Homo viator: poetas e viajantes", ocasião de lançamento do meu primeiro livro em sérvio, Hinário do Mundo, Livro de Viagens, volume I. Agradeço à Prof. Dra. Ana Kuzmanovic, catedrática da Faculdade de Filologia da Universidade de Belgrado, à Professora Marijana Jelisavcic, ao Professor Mladen e aos alunos do IGR pela presença, os quais compareceram a despeito da tempestade de neve! Um especial agradecimento também a Nego Zamba, grande amigo que embalou a noite com as tradicionais canções brasileiras de samba ao final do debate.
O comentário sobre o livro preparado pela Professora Marijana, "A vida é um evento feliz", será publicado na primeira edição deste ano da Revista Matica Srpska, periódico sobre literatura mais antigo do mundo, em circulação ininterrupta. Transcrevo a tradução do texto, pelo qual muito agradeço. É um grande prazer escrever a um público tão ilustrado como os leitores sérvios!
Transcrevo, ainda, o prefácio do livro em sérvio, Himne Sveta preparado pela Professora Ana Kuzmanovic. Boa leitura!









Resenha do livro "Hinário do Mundo: Um Livro de Viagens" de Ana Paula Arendt
O livro de Ana Paula Arendt "Hinos do Mundo: Um Livro de Viagens" é um exemplo interessante de prosa poética que abre a porta para os leitores a reflexões profundas sobre lugares, viagens e espaços interiores. A autora descreve a conexão entre espaço e identidade, levantando questões que nos convidam a reconsiderar o nosso lugar no mundo. Como ela mesma diz: “viajamos para nos encontrarmos”, e cada viagem se torna uma metáfora para o processo interior de autodescoberta.
Cada lugar sobre o qual Arendt escreve se torna uma imagem vívida que nos convida a vivenciá-lo. Nós o experimentamos com todos os nossos sentidos. Suas reflexões sobre Oxford, São Paulo, Rio, África e – especialmente interessante para os nossos leitores – a Sérvia, assim como muitos outros lugares, fornece aos leitores a sensação de fazer parte desses momentos. Por meio de suas frases, os leitores podem sentir os aromas, os sons e ritmos dessas cidades.
Outra dimensão importante deste livro é o entrelaçamento de temas pessoais e universais. A autora não cessa de explorar como as experiências individuais moldam nosso relacionamento com o mundo. Seus pensamentos sobre lugares que nos tocaram, bem como aqueles que deixaram uma marca indelével, nos fazem lembrar de nossas próprias viagens e descobertas.
“Hinário do Mundo” não é apenas um livro sobre lugares geográficos; é viagem no tempo,
emoções e identidades. Em cada página, Ana Paula Arendt nos encoraja a nos perguntar: onde realmente pertencemos? Esta obra é mais do que simples prosa; é um convite para introspecção e exploração, que permanecerão com os leitores mesmo depois de fecharem a última página.
Prof. Dra. Ana Kuzmanovic Jovanovic
Belgrado, 23.09.2024.
A VIDA É UM EVENTO FELIZ
Marijana Jelisavčić Karanović*
Depois da minha primeira conversa com Ana Paula, ficou claro para mim que eu tinha conhecido uma pessoa que sabe muito sobre o mundo e que é um verdadeiro homo viator. Fiquei impressionada com o que ela sabia sobre a pequena cidade com a casa no meio do rio – o lugar onde nasci, na Bósnia Hezergovina. Trocamos histórias sobre os costumes de nossas terras e percebemos como pessoas a milhares de quilômetros de distância baseiam seus medos e esperanças nos mesmos fenômenos ou em fenômenos semelhantes que elas (na maioria das vezes) não conseguem explicar. Quando me deparei com a primeira versão do livro Hinário do Mundo, percebi que tinha diante de mim uma versão resumida e poetizada das viagens de Ana, e fiquei feliz em dar uma olhada em seu itinerário até então.
Hinário do Mundo é uma pequena coleção de notas poetizadas sobre lugares que a autora visitou (com maior ou menor moderação) e que de alguma forma a conectaram consigo mesma. Após a introdução, que é uma espécie de discussão sobre o propósito e o significado da viagem, o conteúdo é apresentado com uma lista de pontos do mapa íntimo da autora, organizados em quatro partes. “Lugares onde nasci”, “Lugares para caminhar”, “Lugares antigos” e “Lugar de compreensão” são o resultado de intersecções dos caminhos da autora e de inúmeros destinos aparentemente distantes, mas mesmo esta divisão pode ser vista como condicional, dado que certos espaços se revelam como portadores de múltiplos significados para quem os narra.
Henri Lefebvre chama a cidade de obra de arte, porque "o espaço não é apenas organizado e estabelecido, ele também é moldado, apropriado por um certo grupo de acordo com certas exigências, éticas, estéticas, ou seja, “sua ideologia”, que é refletida nas palavras de Lalić de que os lugares que amamos existem dentro de nós, independentemente de ser uma metrópole, uma vila ou apenas um pedaço de terra inundado por torrentes de rios. Este livro é uma ode a cada pedaço de terra que inspira esperança, oferece uma solução, dá origem a um significado ou estimula a imaginação, e é escrito por um poeta que não hesita em mergulhar nos reinos mais íntimos para encontrar a emoção correta e articular o que é visto de acordo com o que é vivenciado. Após a autora admitir que havia moldado seu diário de viagem como um registro poético, transformando-o posteriormente em prosa, podemos supor que a mudança contribuiu para que os leitores escolhessem a dinâmica de sua passagem pelo texto de acordo com suas próprias sensibilidades.
Certos segmentos deste grande relato de viagem são densos e carregados de camadas míticas, líricas, culturais e outras que complicam o texto e enriquecem a leitura. Também é importante mencionar como Ana Paula Arendt proporciona um espetáculo a qualquer um que queira embarcar com ela em suas jornadas recapituladas, na medida em que as palavras podem transmitir. Esses textos são sobre cheiros, sabores, encontros com espécies animais e vegetais autênticas, a composição do solo, o congestionamento das ruas e as expressões nos rostos dos transeuntes. Ela apresenta aos seus leitores lugares extraordinários espalhados pelo mundo, mas também conta com a força do que foi escrito até então, por isso incorpora em suas linhas o pensamento de santos e grandes escritores como Emily Dickinson, Hesse, Shakespeare, Gibran, mas também de seus amigos, que conheceu em um ambiente informal. Trouxe os comentários feitos na conversa como pensamentos enobrecedores, importantes para entender o mundo, e especialmente as pessoas que nele transitam.
Se ser poeta é estar em vários lugares ao mesmo tempo, ser diplomata é “viver em trânsito, onde os sinais de afeição e de percepção devem ser postos em ordem”, então qual é a tarefa do homo viator, que une o poeta e o o diplomata dentro de si? Os locais de nascimento não estão relacionados apenas aos aspectos físicos, mas também a todos os momentos do renascimento e, portanto, podemos encontrá-los ao longo de nossas vidas e completar esse capítulo. Para Ana Paula, são Rondônia, Oxford, São Paulo, Montevidéu e a “Mátria Lusa” - Portugal. Não importa se o ar que se respira naquele lugar tem sempre o mesmo cheiro, se é uma cidade “que não tem fim” e é “esquisita nas suas constantes transformações”, ou se é “toda pintada na cor do mel”, a vista merece a primeira página de um livro sobre um reino distante incrustado de ouro – os lugares do primeiro capítulo são apresentados em um choque entre a natureza e o moderno, com características importantes de seus habitantes, especialmente enfatizadas pelas qualidades de “homens honestos e mulheres determinadas”.
O pássaro que é transmitido como leitmotiv das primeiras às últimas páginas do livro é cantado no capítulo sobre seu berço, a outrora insondável Amazônia – mas isso é apenas o começo de seu voo, pois o vemos voando sobre outros topônimos que ganham vida em Hinário do Mundo. Por exemplo, ele também se eleva acima de Novi Sad, e os rios sérvios são comparados aos brasileiros, não pelo contraste de seus volumes ou aparência, mas pela comparação de sua força e grandiosidade em termos de similaridade.
Ana Paula Arendt é uma observadora brilhante, cuja atenção nunca deixa de perceber nada: até mesmo o lugar mais isolado do mundo consegue distinguir de todos os outros. É por isso que a complexidade do segundo capítulo – que lista e descreve "lugares de andar por aí" – é muito importante! Com a intenção bem sublinhada da autora, que escreve para “mostrar que no mundo, além de lamentar, há muito a ser dito e encontrado”, o leitor mergulha num novo emaranhado de sons, cheiros e linguagens que anseiam por ser tocado por um poema tão abrangente. Do “lugar onde toda guitarra quer nascer” cria a impressão de caminhar verticalmente, passando pelo “berço do ódio sorridente”, depois “a cidade sobre a qual até Deus chora” onde “a terra do mundo é pisoteada pelos "passos incansáveis de seus peregrinos", para áreas remotas que só podem ser alcançadas olhando para a distância, você chega rapidamente ao fascinante Crni Kraljević. Em um encontro africano, a autora respira fundo, olha fixada em um ser incrível, observando como esses encontros com o coração pesado são esquecidos, mesmo quando ela é escrava de suas obrigações.
Certos lugares são entrelaçados por lembranças de circunstâncias históricas, pela presença de milagres ou lendas na construção de um conjunto de dados geralmente aceitos, que são dados que Ana Paula percebe como impulsionadores estimulantes para o diálogo. O mais interessante são os contrastes que dão vida a cada lugar, como Buenos Aires com suas “capelas que se estendem até as mesas do bar” ou as inúmeras imagens que cruzam a beleza natural com o cotidiano, como os sapatos novos com sola aberta ou o cheiro de revistas recém-impressas.
Embora já tenham sido citados vários gêneros literários para descrever o livro, o que só fala a favor de chamar Hinário do Mundo de uma obra híbrida que cruza os mais diversos elementos dos gêneros consagrados, não podemos deixar de acrescentar um conto de fadas, pois certos capítulos (como o da Cidade Azul) invocam os postulados sobre os quais esta forma literária é construída. As metáforas com as quais a autora decora os seus relatos de viagem poéticos são por vezes lidas de forma bidimensional, mais frequentemente em momentos em que a linha entre dirigir-se à cidade e dirigir-se a um homem se torna mais tênue, ou quando um furacão é usado como uma imagem poderosa de turbulência interior, sem uma distinção clara entre se é um desastre natural ou íntimo.
Nas imagens que são resultados das caminhadas, conhecemos garçons cujo “bom humor é uma ideia de vida ambiciosa”. Juntos com Ana Paula buscamos a pedra perfeita e um poço com relâmpagos, mas acima de tudo, a cidade que ela percorria de bicicleta, descobrimos que "há lugares onde “Podemos dizer que este mundo é grande e antigo.”
Os leitores sérvios acharão interessante como o autor via Novi Sad e Belgrado, entrando em diálogo com Miloš Crnjanski: “Neste lugar não há lamentação diante da multidão de coisas que nos afetam”, especialmente problematizando o motivo de nossa poltrona como um motivo errante nas histórias sobre Prosefest e a linguista Ileana Chura. No capítulo sobre os “lugares antigos”, criados pelo Sol e pela Lua, lemos devaneios e passagens contemplativas sobre lugares que, embora indicados pelo nome, poderiam também ser todos os recantos previamente descritos ou mesmo deixados por dizer – porque neles se ama, lamenta, esquece e sofre. No entanto, um lugar é uma pedra azul e verde para se viver – Itaoby, “um espaço criado entre aspiração e inspiração”, “uma terra feita de muitas terras”.
Era preciso partir do Brasil para que o retorno pudesse terminar ali, traçar um círculo completo e incluir todos os pontos que eram objeto de reflexão, enquanto, como resultado, imagens fortes e coloridas da paisagem do mapa íntimo da autora eram organizados em um grande álbum. Como o subtítulo desta obra que se trata do primeiro volume, podemos expressar nosso sincero desejo de que o próximo chegue em nossas mãos o mais breve possível e complemente esta imensa história sobre o grande homo viator que, por meio de sua sensibilidade e percepções, traça um roteiro significativo para todos aqueles que decidem, guiados por essas impressões, criar suas próprias memórias e vivenciar novas paisagens de uma forma antes inimaginável. Este livro irá ajudá-los muito nisso.
* Resenha publicada pela Professora Marijana Jelisavčić Karanović, PhD em Literatura, na Revista Matica Srpska, revista literária mais antiga do mundo, em circulação ininterrupta.
Comentários