Cenotáfio
Declamação do poema "Cenotáfio".

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Declamação do poema Cenotáfio
Ana Paula Arendt
Agora me perguntas se
foste um idiota.
Talvez tenhas sido:
Que mal te faria
saber do que eu encontrei
depois de atender
a tudo que me pediam?
Mas te consternaste com
a minha entrega por ti
e pelos que me feriram.
E me feriste, também.
Me acusaste de algo indevido:
te aborreceu minha dedicação
em oferecer a ti
muito mais do que me ofereces…
O que eu faço
por te achar maior do que eu.
Não te julgas maior do que eu?
Te assustaste, ao ver o teu retrato?
Eu vi que te causou medo.
Ser um grande homem
digno de um retrato
te causa medo…?
Tens medo da obrigação
de ser como os homens grandes
que constróem algo além de si mesmos?
Que constróem as leis, as gentes, sonhos, futuro?
Mas já te obrigaste a isto.
E então de repente me acusas
por te lembrar
dessa tua missão.
Eu já pedi muitos retratos.
Alguns para curar a lástima;
outros, para fazer visível
o que antes tentava se esconder:
para redimir o pecado oculto.
Os melhores: para guardar nosso amor
e todos os que se amam.
E pedi o teu também.
O humilde retrato de um grande homem.
Na lástima do cinismo
que te fizeram aprender
duvidaste de mim
porque duvidas de ti mesmo
e de todos que possam
acreditar que és um grande homem.
Caminhas dizendo e desdizendo,
como os perdidos que te precederam.
Eu vi o destino deles:
de poderosos ostentando a Pátria
a párias despejados de funcionais
enquanto se ocupavam de prostitutas.
Desacreditaram o valor do que fizeram:
passaram a vida trabalhando em
dúvidas e acusações que lançavam.
É essa a vida que queres para ti?
É contra esse escárnio degradante
feito de diminuir e desprezar os outros
que eu não cesso de trabalhar:
para que creias, sim,
podes ser um grande homem.
Não porque te concederam importância:
És e serás importante porque
tens a importante missão de se dar.
E eu te quero: ontem, hoje e sempre.
Tu és para mim
mais importante que o voo de um pássaro
mais importante que a alvura da cidadela
mais importante que o fim da tempestade
mais importante que a estrela da alvorada
se erguendo sobre a estrada em que eu dirijo.
És a memória dos nossos desejos mais fecundos,
do primado do Direito, da erudição e da poesia
do pensamento bem ordenado
do triunfo da equidade (te lembras?),
do valor registrado nas pausas;
da tranquilidade de nossas fronteiras
da certeza do valor de nós mesmos…
Do espelho da arte
refletindo o que não sabemos ainda
sobre a dor e a beleza.
Da bem-aventurança deste lugar
onde eu nasci e cresci.
És como a paz na Terra e em todos os planetas:
és como um sonho de criança que não pode acabar.
És quem eu escolhi para ser um Amor eterno.
Amor:
Neste mundo em que se ergue o confronto
e o lucro aumenta com a incongruência,
da volúpia de fazer crescer os hiatos…
Tu te tornaste a última fronteira
entre a barbárie e a civilização.
Tu, a memória de nossos tempos felizes.
A certeza que tínhamos
sem saber da nossa juventude.
Lembra-te, ainda, Amor
daqueles tempos de certeza
em que fomos felizes?
Quando não havia muros intransponíveis
ao bom senso, ao diálogo, nem à maturação.
O futuro prosseguia e era sempre bem-vindo.
O futuro que havia sido escrito pelo Amor.
Mas então passou aquele tempo.
Eu fiquei para trás.
Por que eu quis?
Te expliquei que não.
Eu não fui superior
como eles demandaram.
Eu não os imitei.
Eu fiquei para trás
acidentada
mas
perto ainda
de onde se encontra
o Cidadão comum que nos paga:
sem códigos e sem ordens.
Satisfeita
de ver crescer
apenas o meu serviço.
E esquecendo-te do meu serviço
reclamaste como um menino a
uma instância superior a ti
que eu violava códigos e ordens
que eu não tenho…
Acaso poetas tem regras, Amor?
Para amar?
Para acusar quem te abençoava
– presumiste eu seria maior do que tu,
mas menor do que outrem?
Não sabias que esta é a mais alta instância?
O amor sincero do coração doído de poeta…
E agora, sendo grande, ponderas:
se foste um idiota ao reclamar disto.
És mais um que deferes e mendigas
o teu valor a terceiros?
Não és capaz de defender a tua dignidade
diretamente, diante de mim?
Não és capaz tu mesmo
de me inspirar respeito?
Ora.
Ninguém te respeita mais do que eu.
Amaste a justiça e odiaste a iniquidade:
por isso eu te cobri com óleo de festa
mais do que aos teus companheiros*.
Sendo um homem grande
e te recordando disto
agora tu ponderas
se foste um idiota.
Achas mesmo que eu seria capaz
de amar um idiota?
Terias de ter uma fé em mim
muito grande
para supor essa capacidade
sobre-humana…
Amar um idiota…
Não, apenas Deus
é capaz de amar também os idiotas.
Eu sou uma mulher comum:
que ama os homens grandes
de ser maior do que si mesmos.
De criar as respostas
de que tanto precisarão
as nossas gerações futuras.
Não foste um idiota:
diante do amor sem fim
do amor sublime
do amor gratuito
te transtornaste.
Momentaneamente.
Sim, te transtornaste,
de não aguentar contemplar
um amor tão grande,
que presume e exige
que sejas imenso e intenso
como o meu amor…
Te transtornaste em ver
diante do teu alcance
uma noite tão dileta:
toda voltada para ti.
Te transtornaste
por contemplar o Amor
e não o ter em tuas mãos.
Em não poder subjugá-lo.
Te transtornaste
porque me pus em um lugar
e em um propósito
que não alcanças ainda,
mas ao teu alcance:
quando escolhas ter fé.
Quando possamos
nos abrir de novo um ao outro
como se desembrulha um presente
interminável…
Ocorre que
estamos sempre cercados desses
demônios que nos desanimam e impedem,
que crescem desconfiança e intercalam
os dias crescendo feridas, angústias.
Eles nos distanciam.
Tive medo que viesses a te extraviar
e tomasse o caminho em que tombam
os homens orgulhosos,
os construtores de vaidade.
Os que agem como
se não existisse Deus.
Os homens cujas vidas
não significaram nada:
os homens para os quais
a tua vida não vale nada.
Os homens que sentem
prazer em mentir…
Que veem nisso
uma vantagem sobre os outros.
Autoridades de barro que
diante da minha maior pobreza
não têm moral nenhuma.
És digno!
E tem autoridade muito maior
o Homem que me disse isto.
Tem autoridade muito maior
Quem me mandou te amar.
Ainda que viessem a me punir
com os instrumentos mais vis de
insídias dos estertores
e a praticar a discórdia
e pregar o sofrimento
eu os perdoaria de novo.
Mas tu, para mim
vales mais do que todos que já perdoei
Tu, para mim
vales mais do que a minha vida.
Amor:
Tu és o meu cenotáfio.
O lugar onde eu desperto
para a vida eterna
O lugar onde eu encontro
o melhor de mim mesma.
Em ti, Amor, eu guardei
a felicidade que eu havia me olvidado.
O lugar onde eu desperto
para uma vida mais eterna.
Esfera intangível que abre às sensações cósmicas
dentro do espaço de imensidão do universo,
o interior iluminado pelas estrelas,
a base de terra encarnada, fresca,
com água pura escorrida dos morros
repousados de arbustos,
flores, frutos e ciprestes.
Lugar feito de azul e verde.
* Salmo 44(45).
A. P. Arendt. Amor sem Fim.
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