Diversão e o problema da liderança
- Ana Paula Arendt
- 28 de jun.
- 10 min de leitura
Diversão e o problema da liderança
Ana Paula Arendt*

Penso que todos tivemos o coração partido ao ver o resgate mal-sucedido da brasileira Juliana Marins, na Indonésia. Um sofrimento sem igual que partilhamos com a família que a perdeu. Acaba que vemos nela também os nossos filhos - ou a realidade em que eles poderiam estar, nela a felicidade que desejamos nossos filhos tivessem. Férias com diversão, num mochilão pela Ásia, desbravar limites, encontrar paisagens inesquecíveis, fazer amigos que compartilham desse gosto em explorar o mundo… Amigos da minha filha disseram ter feito a mesma trilha no dia anterior. Então podem imaginar a angústia que se abateu sobre o peito materno.
Mas a morte dela nos leva necessariamente a uma reflexão mais madura, uma revisão do que estamos incentivando e aceitando como um padrão normal de vida. A vida não vale a pena sem diversão? Será que é isto, mesmo, que devemos esperar da vida, viagens inesquecíveis em lugares exóticos, a superação do próprio limite para vencer perigos? Por que a diversão está em fazer atividades de alto risco?
O leitor poderia me dizer que o problema não é este: que o problema é já não ver mais o risco. Apesar de quase uma dezena de escaladores experientes haver antes morrido ali, iniciantes não hesitaram em percorrer a mesma trilha. Por que não teria tanta graça, escalar um lugar mais fácil, sem risco, com cordas de segurança, equipes de resgate de prontidão?
Certamente que Juliana não viu o risco concreto de morrer ali. Uma conjuntura de circusntâncias fez parecer que a atividade prometia ser mágica e segura, porque muitas pessoas, mesmo iniciantes, haviam feito o mesmo… O grupo poderia salvá-la: tinham mantimentos e cordas de resgate, havia uma empresa com seguradora e contato com equipes especializadas… Tantas promessas que provavelmente fizeram parecer a aventura inofensiva. Mas as promessas não se cumpriram, e o passeio terminou com um desfecho triste, sofrido e macabro. Filmaram Juliana; e o que aconteceu depois disso? Gritaram para ela? Lançaram água e comida para ela, um kit de primeiros socorros, cancelaram o passeio e buscaram sinal para chamar o resgate? É complicado aceitar que os jornalistas não façam essas perguntas: o que fez o grupo dela, qual era a empresa responsável pelo passeio…
Isto para não falar dos amigos que mal conhecemos, mas também nos fazem sofrer, indo passear em países que estão em guerra. Ah, não vai acontecer nada. De repente fecha o espaço aéreo, e como sair dali? Os prefeitos e autoridades saíram sem delongas. Mas e os cidadãos brasileiros que estavam ali, e não tinham nenhum cargo de autoridade? De novo, nenhum jornalista faz a pergunta crucial. Por que essas pessoas que nos lideram, numa emergência ou imprevisto, não empenham esforços em também estender a solução que encontraram para os demais, em salvar e garantir a segurança dos demais que estão na mesma situação que eles? Graças a Deus, nesse caso, nenhum brasileiro morreu. Foram abençoados e acharam uma saída. Mas o que fazer nesse imprevisto? E se alguém tivesse ficado para trás, sem recursos, sem instruções? Não teria sido uma falha de liderança das autoridades em fazer com que observassem as instruções de não visitar um país em guerra? Não deveria haver um plano de contingência, alguma instrução formal, para proteger a vida dos cidadãos que por qualquer razão pudesse ir parar por ali?
E lemos ainda sobre a morte terrível daqueles brasileiros em um acidente de balão. De novo temos uma falha de autoridade e liderança. O responsável pelo voo deveria ter ordenado contundentemente que todos saltassem ao mesmo tempo. Alguns não saltaram, tiveram medo. É normal ter medo. As coisas saem errado. Ninguém controla tudo. Mas deveria haver um plano de instruções antes do voo, como há sempre instruções nos voos de aviões, sobre a necessidade de obedecer ao comando do instrutor, e sobre o que deve ser feito em uma situação imprevista. E num torneio de balões, não deveria haver uma equipe de segurança, em solo, num trajeto fixo a ser percorrido pelos balonistas, com as redes de segurança que têm os bombeiros, para aparar quedas?
Temos de aceitar essas notícias tristes como parte da vida? Porque não faríamos nada, se fôssemos ver risco de tragédia em tudo…? Por que há acidentes nas estradas, não iríamos viajar, porque há acidentes de avião, não iríamos visitar outro continente? Ora. Mas as estradas são supervisionadas por equipes de segurança. E os aviões também estão sempre melhorando os sistemas de segurança. Por que não aceitar que temos de melhorar a segurança em outras atividades, e alertar com maior clareza, para que as pessoas possam evitar atividades de alto risco?
Eu não sei. Não sei se devemos aceitar que a vida é assim, nem sei se devemos nos consolar com esse pensamento, de que é normal buscar diversão em atividades de maior risco. Assimilar a morte dessas pessoas é algo complicado, para mim.
Penso que deveríamos sim, fazer perguntas. Por que não nos divertimos em um lugar mais seguro? Por que não encontramos mais paz e delícia no coração, ao contemplar Deus?
E devemos olhar, sim, para as falhas. Houve uma falha de liderança nesses grupos, ao avaliar o risco. Houve falhas sobre o que fazer em uma situação imprevista: os líderes não pareciam preparados. O pai que achou divertido ter uma arma, deixou a arma ao alcance do filho: foi um mau líder em sua família. Temos nestes casos líderes de grupos que acharam não poderia acontecer nada; não ponderaram o risco. Deveriam liderar, mas fizeram-se como os demais integrantes do grupo.
Destes eventos tudo isto me parece chocante. Que a nova geração de jovens não esteja tão preocupada com o risco, e que tenha uma vida pautada pela diversão, antes do que pela segurança de si mesmo e dos demais. A segurança de si mesmo é a segurança do coração dos pais, do coração das pessoas que se importam com eles, ainda que não os conheçam. Será que podemos dizer que é uma grande diversão que vale a pena, esse grande sofrimento que estamos passando, com essas famílias?
Não, não é divertido arriscar a própria vida. Temos de reformular esse conceito de diversão. Por que é necessário ver o sol nascer em um vulcão perigoso na Indonésia? Por que não encontramos o mesmo ou maior prazer em ver o sol nascer na nossa cidade, ou em um lugar mais simples, no campo? Ou em aprender a tocar um instrumento, no desafio de ler um livro difícil, em aprender uma língua nova, em fazer uma receita com os nossos avós, na companhia dos nossos pais? Temos que fazer estas perguntas, porque temos filhos, e temos a responsabilidade de educá-los. Não somos os líderes dos grupos de amigos com que eles convivem. Mas temos uma responsabilidade com os mais jovens.
Temos de trazer esta pergunta a eles: por que não estão se divertindo com atividades menos perigosas?
A verdade é que há um vazio interior que precisa ser preenchido. Muitas vezes com viagens – as pessoas viajam para encontrar a si mesmas. Mas acaso não temos de trabalhar para que este vazio venha a estar mais cheio? Promover encontros e diálogos em família com menos polêmicas e juízos, colocar o jovem em contato com a satisfação de aprender algo novo, apreciar música, ler um livro, ganhar novas perspectivas, aprender um instrumento musical, conhecer pessoas novas próximas ao local onde se mora… Fazer o bem e a caridade aos que necessitam, voluntariado na Igreja…
Nada disso parece tão divertido à nova geração que está em busca de constantes desafios e paisagens cinematográficas. Mas é onde a felicidade, a paz e a tranquilidade, geralmente moram. Por que não seria divertido, então, servir na Marinha, ou nas Forças Armadas, para conhecer lugares novos como engenheiro cartográfico, médico, para salvar pessoas em lugares inacessíveis? Então não seria diversão. Seria um dever… Não é divertido, ajudar o próximo? Nem explorar lugares ermos com disciplina militar de acordar cedo, com segurança de fazer muitos planos e análise de mapas, antes de se lançar ao desconhecido? Nada contra os montanhistas que fizeram dessa atividade o seu ganha-pão: mas neste caso, a fatalidade vem acompanhada de um senso de que estão trabalhando, e aperfeiçoando as habilidades com vistas a ter maior segurança, como crescem e se desenvolvem ali, não se arriscam mais do que o necessário: e quando erram, não pesa o sentimento de uma morte gratuita.
A sede por diversão baseada em atividades arriscadas parece ter a ver também com um comportamento de grupo. O colega quer mostrar para outro colega que foi a um lugar mais ousado e mais incrível do que ele; ou então quer ir ao mesmo lugar que o colega foi antes e disse que é tranquilo. Essa competição entre amigos também é muito ruim, mas o fundo dessa competição é ainda pior. Para postar no Instagram? Não, nem tudo é vaidade – se bem o rei Salomão dizia o contrário. Penso que sim, existem almas que não buscam explorar novos lugares por vaidade. Querem mostrar onde estão porque estão felizes em descobrir lugares novos: querem compartilhar felicidade conosco. A Juliana era linda e quis partilhar felicidade conosco, e por isso veio o nosso sofrimento sem igual, a comoção pública.
Mas a questão sobre o que querem mostrar, sobre o que traz felicidade a partilhar conosco, de novo se coloca. Afinal, se isso nos fazia felizes, vê-la explorando lugares inóspitos, paisagens incríveis… Nós somos responsáveis também por esses jovens que se arriscaram. Quiseram o prazer da descoberta, mas também suscitar no público deles, de seguidores, de amigos, colegas, familiares, a alegria. Somos co-responsáveis.
Porque termos alegria em jovens que venham a fazer uma das trilhas mais perigosas? Era mesmo necessário, ela estar ali, se arriscando?
Não era necessário. Somos nós que estamos construindo um senso de diversão arriscado para os jovens, normalizando algo que não deveria ser normalizado. Temos de refomular isto.
O pai da Juliana Marins disse assim, para nos consolar, para consolar a si mesmo e sua família: que ao menos ela morreu fazendo o que amava. Para ele o sofrimento certamente é infinitamente maior que o meu. Deu uma colher de chá para todo mundo que falhou em resgatá-la a tempo. Mas está errado dizer isto! Não quero me consolar com isso: prefiro continuar sofrendo, porque, neste caso, o sofrimento não é apenas menor, é também mais tolerável, quando se guarda um bem moral. Ela não deveria estar ali: e eu prefiro não aceitar a morte dela.
Penso que consolaria melhor saber que a Juliana terá salvado muitos jovens, no futuro, de não se arriscarem em passeios cuja segurança é frágil e duvidosa.
Não digo apenas contra aventuras de jovens em lugares exóticos e perigosos na Ásia, ou em países em guerra, ou em cenários que desconhecemos. Há também outros perigos que estamos admitindo como se fosse diversão autorizada, pelo gozo. Vimos dois acidentes com armas, crianças que não sabiam o que estavam fazendo. Um pegou a arma do pai e matou a mãe. Outro pegou a arma do pai e matou a família inteira, porque não podia ir se divertir com a melhor amiga. Não devemos misturar as coisas? Mas é o mesmo problema de fundo!
O pai provavelmente achou divertido ter uma arma. Ora: se não era divertido, se a arma era algo vista como algo perigoso, por que deixou uma criança ter acesso à arma? Muitos aderiram à campanha que “fazia arminha”, com crianças no colo, e pregaram isso como um sinal de masculinidade; uma irresponsabilidade. Muitos acharam e ainda acham que ter uma arma não ofereceria perigo nem risco nenhum a si mesmo. Acharam que seria ser um bom pai, ensinar o filho deveria também partilhar dessa visão, ter livre acesso a arma. Posto que é para isto que uma arma hoje em dia serve, infelizmente: para afirmar a masculinidade, quando a masculinidade é frágil. Eu sou contra armas? Não. Quando apenas cogitei a necessidade de ter uma, para proteção pessoal, antes tive um cofre com a minha digital.
Há também um número infindável de jovens que estão nas redes insultando mulheres, postando comentário misóginos e desrespeitosos. Esses jovens também estão assumindo como diversão algo muito perigoso. Afinal: toda mulher tem honra, e boa parte das mulheres têm pai, marido, irmãos. Colocam-se em uma postura de receber maldições pela vulgaridade que acham divertido; não veem risco em ser amaldiçoados, nem em se tornarem a escória da humanidade. O comportamento de arrogância e agressão é autodestrutivo: “tome cuidado para não fazer chorar uma mulher, porque Deus conta as lágrimas das mulheres”, reza o Talmud. Quem não teme a Deus, não teme tampouco aos homens, nem receiam o mal que impingem às mulheres, com insultos. Agir como se Deus não existisse é a atividade de maior risco possível para a vida desses jovens. Pois Deus, a história e a vida nos mostram, que as maldições que se lançam sobre as mulheres recaem como a desgraça de si próprios. Querem fazer seguidores com apelação. O que acham diversão é arriscado: e sim, resulta também muitas vezes na tragédia.
É um problema, sim, achar que a vida não vale a pena sem diversão; ou achar divertido fazer atividades perigosas, para as quais a segurança é precária; achar divertido ter uma arma; atacar mulheres gratuitamente. É uma vida irresponsável, achar que a diversão é a finalidade da vida. Precisamos pensar coletivamente, voltar a valorizar que os jovens se tornem adultos, recordando que o sentido da vida não é ter diversão. Precisamos mudar de atitude, valorizar e curtir mais o que é a diversão saudável: a diversão que não coloca em risco a vida de si mesmo, nem a de ninguém.
Fico pensativa também sobre o que esperamos de nossos líderes. Esperamos que eles sejam responsáveis, e coloquem-se acima de nós, para averiguar perigos, riscos, e que contemplem diversos cenários imprevistos, para estar preparados e saber o que fazer, para nos instruir sobre o que fazer, quando se abate sobre nós o perigo.
No entanto, não estamos votando em líderes responsáveis. Estamos votando em líderes que prometem maior status e diversão. Mesmo dos líderes religiosos estamos esperando que justifiquem em nós o comodismo.
Ninguém é infalível, é verdade. Mas as sociedades humanas, os grupos humanos, precisam daqueles que sabem ficar sóbrios, para dirigir; ter reservas, para amparar; ter cautela, para advertir. Estamos caminhando para o abismo, se começamos a achar que as pessoas mais responsáveis são chatas ou inconvenientes; se passamos a escolher pessoas irresponsáveis e imaturas para cuidar da segurança do grupo, ou para os cargos públicos.
Quantas vezes eu fui salva pelos mais velhos, sendo advertida por eles? Muitas vezes, incontáveis. Por vezes não deixaram que eu fizesse o que eu achava divertido fazer. Eu os achei chatos, é verdade. Mas me salvaram muitas vezes. Agora que a idade começa a chegar, penso que é preciso também começar a ter coragem de advertir, e não apenas conveniência de justificar.
O que traz maior sabor à vida não é a diversão, é estar na presença de Deus, cuidar da família e zelar pela segurança de si e dos demais, manter distância dos perigos. Nossa vida deveria ser guiada por encarar nossos deveres, com algum alívio e conforto, de vez em quando, para restaurar energias, em segurança; e não enfocando sempre a maior e maior diversão.
* Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata.
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