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Poesia e Análise






Poesia e análise

Ana Paula Arendt*


Muito se tem debatido sobre a zona cinzenta que existem entre os gêneros literários: a prosa muitas vezes é apreciada pela dosagem de passagens poéticas. E a poesia, hoje, preterida pela narrativa prosaica. Essa preferência da prosa sobre a poesia ocorre sobretudo na cultura anglo-saxônica. Há nichos muito delimitados onde a poesia é bem recebida, e a forma surge como uma exigência excludente.


T. S. Eliot aproveitou esse flanco fazendo poesia prosaica; mas de resto, mesmo os modernistas preferem as estruturas que estabelecem um hiato entre o narrador, que dispõe do conhecimento sobre o enredo e a história narrada, e o leitor, que vai sendo conduzido a descobrir os acontecimentos explicações por quem escreve.


A poesia, por outro lado, a poesia precisa ser sentida, é uma experiência, e não um problema a ser trabalhado, conforme Keats sugere, no que foi recolhido de sua poesia pelo filme de Jane Campion. “Mergulha-se num lago não para nadar até sua borda, mas para experimentar a delícia luxuriante do contato entre a nossa pele e a água”. No debate sobre Narrativas poéticas deliberamos sobre o consenso de que existem uma realidade comum experimentada entre o poeta e o leitor. Além de se transcorrer por meio de uma subjetividade compartilhada, a poesia faz justiça: ela torna iguais, em titularidades, o poeta e o leitor. Comunica-se de maneira direta em direções todas.


Nos domínios greco-latinos, essa antigamente era a forma literária preferida, mais nobre e mais cara. O material sagrado que elevava o leitor aos domínios das terras eternas. Os temas mais caros de um povo, que contavam sobre História e identidade, tinham de ser apresentados e preservados em verso; e os versos nasciam do coração do poeta para ser entregues diretamente ao coração de quem os ouvia, à medida que iam sendo elaborados. A poesia colhe de quem ouve, num movimento simultâneo. Assim se chegavam às revelações transmitidas pelos deuses aos homens.

Se eram transmitidas pelos deuses, o poeta era o portador da verdade, do bem a ser distribuído, proveniente de um lugar inefável, ao lugar deteriorado. O desnível entre o ideal e o real produzia um fluxo de sentimentos inefáveis para o coração dos homens, a água pura em movimento. “Todos os rios correm para o mar, e o mar não se enche”, dizia Eclesiastes. “Quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede”, dizia o poeta em Cristo.


Sabemos que a psicanálise, por sua vez, busca compreender os sentidos implícitos e busca a interpretação do que está além do objeto, assim como a hermenêutica. A estrutura e o funcionamento da vida ocultam significados, eventos e realidade. A presunção como dado da experiência que se transcorre na vida do indivíduo guarda significados nem sempre visíveis, repercutindo na vida do sujeito. Freud fundou um método analítico baseado na investigação das associações livres do sujeito, como garantia da validade da interpretação; e parece particularmente interessante cogitar se essa liberdade existe sobretudo na poesia.


Buscando nos versos deste ou daquele poeta o que resulta de discorrer livremente sobre a sua experiência de vida e os seus sentimentos, a poesia poderia ser, então, instrumento útil do método psicanalítico? O escrito permite observar o que o poeta livremente transcreve nas instâncias interiores? O poema seria a forma cristalizada do que estava oculto? Mas a psicanálise, analisando a poesia, poderia se invalidar neste feito, se não fosse também livre.

Isso porque a interpretação do observador, do psicanalista, sobre o que escreve o poeta, jamais poderia escapar da subjetividade compartilhada, para acessar o conteúdo da leitura dos versos. Como ocorre em toda arte, na leitura ou interpretação que se faz do verso, se encontra também na leitura a experiência de vida do observador e de uma humanidade que ali se concentra, não só do sujeito, o poeta.


O poeta pode se colocar em distintos lugares e relatar diferentes pessoas, ainda, sendo o outro.


Qual o iniciador do achado que dá interpretação ao objeto, ao verso, nesse movimento analítico? Quem tem a liberdade para validar o que dali se retira? Afinal, o poeta registra livremente a realidade que lhe acorre, e tanto melhor o poeta, quanto mais súdito ele se faz do sentimento que libera e comunica. Não é o próprio sentimento e coisa oculta, então que se comunica e dá a conhecer por meio do verso?

Borges sugeria:


“A tarefa de ser poeta não é uma tarefa que cumpre com um determinado horário. Ninguém é poeta, digamos, de 8h às 12h, ou de 2h às 6h. Quem é poeta é poeta continuamente, e se vê assaltado pela poesia continuamente. De igual modo que um pintor, suponho eu, sente que as formas e as cores o estão assediando, o que um músico sente, que o mundo estranho dos sons e o mundo mais estranho da arte o estão buscando sempre que há melodias – e por que não? Discórdias também que o buscam. Pois bem, para essa tarefa, para a tarefa da arte, a cegueira não é uma desgraça. Pode ser um instrumento. Desde logo creio que um escritor e todo homem deve pensar que tudo que lhe ocorre é um instrumento. Todas as coisas lhe foram dadas para um fim, e isto é ainda mais forte no caso do artista. Tudo o que se passa, inclusive as humilhações, os sufocos, as desventuras,  tudo isso lhe foi dado como argila, como material para sua arte, e se tem de aproveitar tudo isso. Por isso falei em um poema sobre o antigo alimento dos heróis. A humilhação, a desgraça, a discórdia... Tudo isso nos foi dado para que o transmutemos para que façamos das miseráveis circunstâncias de nossas vidas as coisas eternas que querem ser eternas”.


O poeta, sendo escravo dessas coisas eternas, está continuamente sendo alimentado e dando alimento. Trazendo à tona o que demanda ser conhecido, para uns, como Borges, encontra nisso uma finalidade. Para outros, como Winnicott, no comentário à poesia de Tagore, o poeta não espera que a poesia possa ter sentido. “Quando, enfim, o sentido desponta no horizonte interminável, o sujeito da experiência poética e o sujeito da teoria dessa experiência coincidem. (...) O poema faz sentido, mas não tem sentido, isto é, não tem significados relativamente estáveis, contextualizados sem grande ambigüidade.” (LUZ, “Winnicott: a poesia e a realidade” Natureza humana, v.8 n.2 São Paulo dez. 2006).


Na poesia então tudo subsiste: o amor, mas também o esquecimento, a presença, mas também a ausência, a saudade e todas as coisas que não podem ser individualizadas ou divididas em dicotomias.


O psicanalista poderá dizer que um poema de um poeta que se aferra ao seu ofício, de livremente liberar o que lhe assalta, nunca será uma evidência suficiente de tudo que ele contém e que, sendo um objeto, guardará muitos significados e imagens possíveis de seu autor. Mas ao adentrar e buscar explicar esses significados e imagens do domínio inconsciente, por meio da poesia, o psicanalista estará adentrando em si mesmo, como a personagem de Keats sugeriu. Pode-se analisar e buscar explicar o que é a água, mas para explicar o que é água na poesia, é necessário experimentar a água. E então se terá como resultado da análise a própria experiência... Na livre vontade da experiência, para validação, poesia e psicanálise coincidem.  Mas analisar a poesia demandaria o desenvolvimento de um método psicanalítico próprio. Imprevisível? Não pela chave das palavras.


Compartilho com os queridos leitores um convite, experimentar algo para saber sobre ele,. Um poema que me trouxe grande satisfação, pois considero o poema que eu buscava, feito de espelhos infinitos. É um passo que vem de outros passos. Contém minha visão de horizonte ilimitado da poesia. Contém um sentimento de amor que perdura graças ao que é humano. Contém o que surge de fluir livremente do que é mais sagrado. Transpõe a barreira das circunstâncias. Não é pretensioso, mas sonha com as máximas possibilidades. As palavras são simples e as ideias se encaixam, sendo realistas, fincadas na realidade. A estrutura não tombou sobre si mesma, como nos sonetos que escrevi para meus Filhos. É um soneto que não pede emprestado nada dos outros sonetos e que duvida deles. Não tem a morte da pessoa amada a ser evitada, como no soneto de Shakespeare. Não tem consumação completa, como no soneto de Camões, quando ao final restam as nossas cinzas. É de cristal, e não de madeira trabalhada, como suspirava Neruda, tem o luxo do som da rima, do par formado. Não tem a progressividade dos sonetos de Petrarca.


O leitor neste ponto questionará se eu enlouqueci, ao comparar um poema tão simplérrimo com os melhores sonetos de Shakespeare, Camões e Neruda. O apetite dos alienistas e alienados surgindo nos beiços. Quanta falta de modéstia e de juízo numa poeta desconhecida… Mas quando nos encontrarmos no céu, onde ninguém precisa se chamar de poeta, Shakespeare, Camões e Neruda, Petrarca, onde não há vaidade, os meus velhos amigos que se fazem presentes enquanto escrevo entenderão um soneto em que falta o que neles sobra. Eles me darão a sentença de glória: sim. Amaste! E eu responderei, satisfeita: sim. Amei demais.


No plano oculto, regam os rios de que nos fala Salomão, na estrutura sintática que conecta os versos; brocante em três planos de passado, presente e futuro, um listel com lacinho francês de ouro – o amigo predileto, alguém que eu não posso possuir. Tem iniciador e destinatário alterno. Tem água salgada em cada verso, não apenas nos primeiros, como de costume, e maior intensidade na última estrofe. Tem voo de pássaro sobre a paisagem simbólica do lugar antigo onde se escavam e são polidos os sentimentos preciosos. E é o único poema em que o último verso me veio primeiro. É o soneto mais simples e razoável que eu tanto queria escrever. Tão simplezinho, e nele eu pus todo o meu sentimento! Anoto isto porque meu contentamento excede e preciso transbordá-lo, partilhá-lo.




Soneto CCCLVI


Eu gostaria de escrever o mais belo soneto

que fosse lido por todos casais apaixonados…

E o amor que tenho pelo meu amigo predileto

pulsaria infinito, mesmo ele lá e eu deste lado.


Um dia, o meu peito não estará mais doendo

E os seus olhos brilhantes, terei esquecido

Mas no corpo dos amantes retorcidos

o meu amor por ele continuaria ardendo.


E ainda evanescesse, me tornaria escrito

como foi ver nos seus olhos o que eu buscava.

Alguém se fazendo do que achava em mim:


as coisas que eu gostaria de ter lhe dito,

as memórias de tudo que eu mais amava,

as terras que são nossa origem e fim .


A. P. Arendt. Sonetos para viver de Amor.

  

* Cientista política, poeta e diplomata brasileira.


Imagem: Loran Zutic, Cisne em Belgrado, Danúbio.

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