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Qual é o lugar da mulher?

  • Foto do escritor: Ana Paula Arendt
    Ana Paula Arendt
  • 22 de jun.
  • 42 min de leitura

Atualizado: 24 de jun.



Qual é o lugar da mulher?

Ana Paula Arendt*


 


Não existe ideologia mais vazia e nefasta que o machismo. O machismo: um conjunto desordenado de asserções repetidas ad nauseum, que busca usar a diferença entre os sexos para afirmar uma relação de superioridade entre seres interdependentes. A ação coordenada entre homens e mulheres para obter a subjugação pela força de um sexo sobre outro. Sempre termina na insatisfação de ambos: em um tempo perdido.  


2. Foi por causa disso que se revelou do alto a Verdade bíblica. Sério! Digo isto abrindo os braços sobre vós, como o profeta no deserto. Para nos libertar desse problema é que foi dito: “homem, macho e fêmea”, foram feitos ambos “à imagem e semelhança de Deus”. Consta no livro do Gênesis, anotado por Moisés, irmão de Miriam (grata por ler o texto, mas é no Êxodo que Miriam toca o tambor e lidera a fuga do povo hebreu). E essa é a base que depois o messias do Cristianismo, Jesus Cristo, veio afirmar novamente em sua breve vinda à Terra, cercado de mulheres, nas suas pregações. São diferentes biologicamente, homens e mulheres; mas iguais em filiação divina. Santa Maria Madalena não deve deixar de ouvir os ensinamentos do Mestre para ir ajudar Santa Marta a lavar os pratos: Santa Marta é que deve deixar de se preocupar demais com atividades domésticas, e vir também ouvir os ensinamentos do Mestre. 


3. Certamente que a verdade bíblica nunca foi muito observada nas sociedades cristãs. Como resposta à contínua imposição e restrições aos direitos da mulher, surgiu o feminismo, uma outra ideologia, diferente do machismo, de característica muito mais anárquica. Mary Wollstonecraft (1759-1797), mãe de Mary Shelley, a autora de Frankenstein, havia inaugurado na Europa uma nova maneira de pensar as titularidades da mulher como um sujeito de direitos, no plano político. 


4. “O feminismo está misturado com a ideia absurda de que a mulher é livre se serve o seu chefe e escrava se ajuda o marido”, disse J. K. Chesterton, um romancista do século XIX. Provavelmente o escritor fazia parte do contra-movimento ao feminismo: tentava frenar o avanço da ideia de que a mulher não é inferior ao homem, e os seus desdobramentos.


5. Chesterton não conseguiria, entretanto, argumentar que um homem seria mais livre se ajudasse a sua mulher em casa, ao invés de servir ao seu chefe. O interessante nessa frase é que o autor não quer enxergar a diferença entre trabalho remunerado, casamento e escravidão. Ele não pode dizer o lugar da mulher porque não se coloca no lugar de escolha da mulher: não imagina ela seja um ser humano, como ele. Logo, não consegue ver que a escolha de ter um trabalho remunerado é uma dignidade que fica bem em todo ser humano, e que nada tem a ver com uma parceria baseada em laços afetivos. 


6. Por quantos séculos uma mulher teve de pedir autorização do marido para trabalhar? O oposto nunca ocorreu: de um homem ter de pedir autorização da mulher para sair de casa. Portanto, não caberia a qualquer pessoa com um mínimo de inteligência comparar o machismo com o feminismo. Por essa razão, pelos argumentos estúpidos do machismo, pois o machismo presume as mulheres não teriam capacidade de pensar, o feminismo se tornou uma ideologia catártica, uma frente de exigências revoltada. 


7. O argumento de Chesterton é uma desonestidade intelectual para obter efeito retórico, tout simple: pois as primeiras feministas nunca negaram o valor do casamento, nem descartaram o romance, como se toda relação com o sexo oposto fosse uma relação de dominação. Wollstonecraft era casada. Desde sempre o casamento foi relação em que eram saciadas as necessidades afetivas das feministas. Com falácias, fica fácil ignorar, na prática, a escravidão doméstica em que boa parte das mulheres trabalhadoras vivia: relação de subjugação, sem remuneração pelo trabalho doméstico, quando o homem, sendo provedor, exigia tomar a decisão final sobre o uso de seus recursos. Se a mulher protestasse, ou reivindicasse, bastava a constante ameaça de dispensá-la, ou valer-se do uso da agressão física, à época permitida para disciplinar a mulher como se fosse um animal – ou nem isso, já que os animais já eram protegidos por lei contra maus-tratos. Quando envelhecia, e não mais lhe servia para uma finalidade sexual, a mulher passava a viver da vida de salão; lendo esses romances de escritores que buscavam convencê-las que a tragédia lhes abateria se encontrassem um amante, pregando a maior sabedoria, benefício e gozo em ser submissas… Ou a morte trágica de Madame Bovary e o divórcio amargado de Capitu, os elogios dos homens a Flaubert e Machado de Assis, não se prestam, lá no fundo, a isso?  Há outros romances, inclusive desses próprios autores, mais bem escritos… 


8. A ignorância do romantista inglês Chesterton despreza que as mulheres pudessem ter necessidade de satisfazer-se profissionalmente, e que o casamento pudesse estar relacionado ao desejo sexual ou afetivo. Nessa simples frase que os misóginos têm citado nas redes sociais como uma grande descoberta intelectual, ele mistura atividade profissional com atividade doméstica; e presume a elas conviria o casamento pelo menor peso do trabalho doméstico, ignorando completamente o elemento sexual, afetivo e familiar que motiva o matrimônio. Mesmo no direito canônico, o matrimônio é regulamentado sob um forte pressuposto de igualdade de titularidade; e uma notável estrutura social e institucional na Igreja foi construída para garantir e regular a dignidade das mulheres quando envelhecem, por meio da proibição do divórcio, na Igreja Católica. Mas o que isso tem a ver com ter uma profissão? 


9. Chesterton foi vencido pelos fatos e pelo movimento das sufragistas, ao longo do século XX: diversos homens preferiram saudar que as mulheres viessem a pelo menos ter o direito em votar e ser votadas, e em assumir funções anteriormente reservadas aos homens, como professoras de universidade, escritoras, jornalistas, médicas, engenheiras… Não apenas bailarinas, pianistas de salão e cantoras de cabaré. O Barão do Rio Branco, por sinal, além de ter consultado antes Princesa Isabel, pedindo permissão para assumir o cargo de chanceler, era um partidário do voto feminino. A filha dele não tolerou abusos do marido, separou-se. Sevícias diversas, ela explicou ao pai. O marido, um nobre alemão, subtraiu, para se vingar dela, seus cinco filhos. Ela viajou sozinha, buscou os cinco filhos no internato na Alemanha, levou-os para a chácara de um médico primo de Nabuco, no interior do Rio de Janeiro, casado. Envolveu-se com ele. O marido alemão não aceitou o divórcio, veio importuná-la novamente, e levou um tiro. Não se sabe de quem. Foto do cadáver no jornal. E o Barão de Rio Branco? Filha dele. Ele estava trabalhando, longe disso tudo. O que é que ele poderia fazer…?  


10. Durante essa revolução no final do século XIX e início do século XX, que outorgou novos pressupostos de dignidade às mulheres, as primeiras feministas tiveram de descartar toda a estrutura adquirida ao longo dos séculos para repensar o papel da mulher na sociedade moderna. Eram hábitos contaminados por um longo acúmulo de práticas e costumes que pregavam as mulheres deveriam habituar-se a ser dependentes, e se dizer felizes, quando eram infelizes. Razão pela qual o pensamento de Wollstonecraft teve de encontrar raízes filosóficas no anarquismo para sair do papel. Uma nova forma de pensar o que cabe a uma mulher foi necessária. O resultado foi um discurso progressivamente reivindicativo. 


11. E hoje ainda leio nos jornais que a questão se coloca. Qual é o lugar da mulher?  


12. Para o feminismo raiz, o papel social da mulher deveria ser igual ao papel social do homem? Ou isso é algo que os machistas pregam como feminismo? É certo que há uma camada imensa de lixo sobre essa discussão. 


13. A própria pergunta sobre qual é o lugar da mulher está carregada de machismo. Ora, faria sentido perguntarmos, “qual é o lugar do homem na sociedade”? Não, não faria o menor sentido colocar em dúvida qual é o lugar do homem, como se ele fosse um ser dependente, que precisa ser ensinado, qual o seu lugar… Poderia-se perguntar qual o lugar deste ou daquele homem, pelos seus méritos, suas características, seu trajeto pessoal. Mas seria estranho colocar todos os homens debaixo de um mesmo conceito para encontrar “um lugar” adequado para os homens;  seria desfigurar cada homem… Como se não coubesse a cada homem decidir qual seu lugar, nem batalhar por um lugar ao Sol. Imaginem se um homem delegaria à sociedade definir qual o seu papel social… Nenhum homem com dignidade suficiente emprestaria a sua pessoa à “sociedade” para debater e definir qual  o seu lugar, porque assim deixaria de ser homem.


14. Apenas nós, mulheres, tomadas por uma imensa insensatez, somos capazes de fazer esse pergunta, ou permitir essa pergunta, anulando as nossas personalidades, e nos colocando debaixo de um rótulo genérico, “mulheres”, ou “mulher”, para permitir que se coloque em discussão e debate “qual é o lugar das mulheres”…  


15. O leitor me dirá que esta perspectiva é feminista.   Eu não me vejo como feminista! Quando a Chimamanda Ngozi afirma categoricamente “sou feminista”, fico pensativa. O que ela quer dizer com isso? Ela quer dizer que defende uma agenda política radical? Ou que defende o básico, a igualdade de direitos entre homens e mulheres? Defende que as mulheres devem ter mais direitos que os homens, compensações? Defende a liberdade sexual e o aborto? Em geral, os movimentos que se afirmam feministas defendem uma liberdade sexual que, ao menos para mim, configura irresponsabilidade. O aborto defendido em toda e qualquer circunstância, como decisão exclusiva da mulher, mesmo quando a mulher consentiu ter relações sexuais, para mim é indesejável.  Afinal, leva-se a contribuição de duas pessoas para que surja uma vida, e duas pessoas necessariamente deveriam ter responsabilidade sobre uma vida sob o cuidado delas.


16. Talvez eu pudesse me dizer, por assim dizer, pós-feminista. O pós-feminismo não é o movimento que desistiu das reivindicações e sucumbiu a uma estrutura patriarcal, não… É o pensamento que, depois da ressaca, olha para o resultado, para a realidade em que estamos. Um resultado muito aquém do esforço empenhado. É uma atitude que passa a questionar: o que estamos fazendo? Se o feminismo está prejudicando conquistar novos espaços, deveríamos abandonar o feminismo, ou reformulá-lo? O feminismo encontrou limitações que precisaram ser superadas. Essa é a discussão pós-feminista, uma discussão da década de 1980, 1990, ultrapassada, que usa polainas com leggings, coisa que as feministas de casaquinho florido hoje provavelmente detestam, acham abominável. Assim, enquanto eu penso, deixo que os homens paguem as minhas contas e abram para mim as portas; agradeço a eles. O pós-feminismo era, digamos, uma trégua: movimento que via as dificuldades, mas se fundamentava numa esperança utópica de cooperação entre homens e mulheres. Ressalte-se bastante: uma esperança utópica. 


17. (As feministas também aceitam que os homens paguem a conta e abram a porta para elas? Não sabia disso. Se eu fosse feminista, não aceitaria jamais! Se eu fosse feminista, eu pagaria toda a conta e abriria a porta para o homem, para demonstrar quem é que manda… Essas feministas nutellas…) 


18. O fato é que hoje ninguém mais lembra nem sabe o que é pós-feminismo, porque se presume novamente o feminismo em voga; embora o que estejamos vendo novamente em voga seja muito diferente do que vimos no final do século XIX. Eu mesma tenho dúvidas do que seja o feminismo hoje. Talvez eu prefira o exílio cultural de expressar a dúvida. 


19. Contudo não tenho dúvidas de que, mesmo na época dos trogloditas que aplaudiam Chesterton, antes do feminismo, não era uma novidade que uma mulher fosse capaz de desenvolver um pensamento próprio, ter sua profissão. Desde sempre houve mulheres que assumiram chefatura de Estado, quando houve quebra de varonia, ou quando houve príncipes menores: como rainha Teresa, mãe do rei Afonso Henriques, Elizabeth I. E houve aquelas que tiveram um papel igual ou melhor reputado que o do marido – como a Santa Rainha Isabel de Portugal, padroeira de Coimbra, a qual escrevendo cartas definiu acordos diplomáticos e fronteiras de Portugal; ou Moremi, no Império Iorubá, a qual casou-se com o rei inimigo para depois vencê-lo em batalha, abastecendo o marido de informações militares estratégicas. A uma mulher no trono sempre se seguiu, é verdade, o frenesi de destitui-la de seu papel de protagonismo, talvez com muito maior ferocidade que os homens titulares enfrentariam. Apesar do Papa haver reconhecido Teresa como rainha de Portugal, o clero se voltou contra ela, para garantir a aclamação do filho; Rainha Elizabeth I, tradutora de Boécio, teve de enfrentar guerra contra Filipe II, na Espanha, por recusar-se a se casar com ele, e assim por diante. Mas essas estadistas, por assim dizer, retiveram suas características femininas, e nem por isso precisaram do feminismo.


20. Tampouco nas classes menos abastadas que a alta nobreza era completamente raro haver mulheres que tomavam a frente dos negócios ou tinham a própria profissão. No século XII, no tempo de São Tomás de Aquino, já havia a primeira médica, Trotula di Ruggiero (1050-1097), professora e doutora na Escola Médica de Salerno, no Sul da Itália (IBITURUNA, Ana Carolina Resende. A origem das universidades e a presença feminina em espaços do saber. Monografia, p. 13). O avanço das mulheres em atividades profissionais antes reservadas aos homens fez com que o baixo clero consultasse São Tomás, reputado teólogo, sobre a legitimidade desses avanços e outras questões – por exemplo, as mulheres deveriam governar a própria herança? Pelo que ele se posicionou: sim, elas são capazes. Por que não seriam? Para chegar a essa conclusão, ele observou a dignidade das abadessas em governar conventos e monastérios. Além disso, por raciocínio lógico, se os homens precisam de apoio dos homens para governar patrimônio, por que as mulheres não precisariam? Isso não pesaria contra elas. 


Trotula di Ruggiero (1050-1097), professora e doutora na Escola Médica de Salerno
Trotula di Ruggiero (1050-1097), professora e doutora na Escola Médica de Salerno

21. Entretanto, observemos como alguns argumentos feministas ufanistas sobre o “papel da mulher” determinado pela sociedade ignoraram todo o passado anterior ao movimento feminista, todo o cânone bíblico e teológico, e depriva a mulher do direito de obter a colaboração dos homens: relegou tantas vezes a mulher ao lugar de um super-homem autossuficiente. Assim acabou produzindo expectativas irrealistas e terminou frustrando mulheres em sua ambição pelo poder, já que nenhuma mulher ou homem é um super-homem, nem autossuficiente. Nenhum grupo político, de homens e mulheres em sã consciência, entregaria poder ou espaço a mulheres que acham são super-homens, que não precisam dos homens… Seria pretensão de um domínio abusivo. 


22. E sem memória, sem passado, qual ator político conseguiu alcançar qualquer realização, ou dizer qual é o seu lugar na História?  Ora, quem se lembra das mulheres que, mesmo antes dos tempos medievais, escaparam da vida doméstica? Há uma amnésia, mesmo nos movimentos feministas. Se o leitor buscar no Google, terá a informação de que Maria de Montessori (1870-1952) teria sido a primeira médica a se formar na Itália… Ninguém se lembra de Trotula di Ruggiero. Ninguém se lembra de Anna Bunina (1774-1829), primeira mulher que recebeu uma bolsa do czar para viver de escrever poesia, poeta de Estado.  E lembro ainda da enorme quantidade de mulheres japonesas que escreviam poesia e dominavam as artes, muito longe de ser submetidas a um regulamento de gueixas… Ono no Komachi (825-900 d.C) tinha não sei quantos amantes: os japoneses adoram tentar contar e adivinhar quantos amantes ela teve, mesmo sendo uma sociedade muito rigorosa. Ser poeta facultava às mulheres japonesas fazer muita coisa! Ela hoje está entre os 36 poetas imortais do Japão, não apenas pela sua beleza, mas pela sinceridade dos seus versos de desilusão. 


23. Talvez esse lapso de memória coletiva ocorra presumindo que as mulheres independentes, no passado, seriam meras exceções à regra imposta por um sistema patriarcal. Apenas caberia notá-las quando, em sequência ao avanço conquistado por uma mulher, tivessem aberto caminho a outras mulheres, para afirmar essas conquistas. Parece-me uma maneira de pensar bastante pouco criteriosa: não reconhecer o mérito que as mulheres teriam, antes do movimento feminista. Ter capacidade de vontade própria, ou determinação suficiente para sobrepujar expectativas sociais e ter uma profissão, em qualquer tempo, faria recordar que se as mulheres sempre foram capazes, também são assim capazes as mulheres deste tempo.


24. Talvez a falta de memória provenha do distanciamento da Igreja Católica que tem o movimento feminista: sendo essa uma das poucas instituições que guardam os registros de muitos séculos,  pois monopolizava todo o registro histórico, em certos países. À Igreja Católica se reputa apenas os eventos de queimar mulheres extrovertidas na fogueira. O resultado da amnésia é reputar que todo avanço em tratar a mulher como sujeito de direitos seria proveniente do feminismo, quando a realidade não foi assim. 


25. A realidade é que uma filosofia de base anárquica, que busca suas origens no pensamento da inglesa Mary Wollstonecraft, para justificar a expansão das pioneiras e das sufragistas, não seria um corolário suficiente para atribuir um estatuto de dignidade estruturado. 


26. Vejamos se eu consigo provar este ponto, demonstrando o quanto o pensamento feminista não é ainda estruturado, ao menos não no Brasil. Vamos analisar o discurso de Marisa Monte, hoje doutora honoris causa pela USP, uma profissional muito respeitada no setor cultural. Ela afirmou que teria sido a pílula anticoncepcional o fator que teria possibilitado às mulheres ter uma profissão, e que as mulheres teriam apenas conquistado seus direitos após a revolução sexual na década de 1970. A declaração foi dada em um Seminário no Tribunal Superior Eleitoral, intitulado “Mulher, Presente”, evento organizado pelo TSE, STF, STJ e CNJ,  em 11 de março de 2025, vídeo disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=IMrv4YPLJ1k >. 


27. No setor cultural, com muita precisão, ela relata como as mulheres eram invisibilizadas ao produzir suas composições, tendo de atribuir autoria aos homens, para que fossem cantadas e tocadas nos círculos musicais. Ela conta sobre as dificuldades de divulgação e de fazer valer os seus direitos autorais, de reter domínio sobre sua criação, num universo controlado por homens. 


28. Eu discordo disto? Não. Nisto ela está certa. Desde muitos séculos foi assim, a pintora Artemisia Gentileschi (1593-1653) teve seus direitos autorais perpetrados, e também Camille Claudel (1964-1943), internada em um sanatório, por reclamar o crédito que lhe cabia nas esculturas de Rodin; Mileva Maric (1875-1948) até hoje tem sua co-autoria omitida na base matemática da Teoria da Relatividade, Cecília Payne (1900-1979) teve seus direitos autorais de sua tese violados pelo próprio orientador, que publicou as conclusões de sua tese doutoral como se fossem dele… Poderíamos de fato dizer que é recente, a garantia às mulheres da titularidade sobre suas obras artísticas e intelectuais.  


29. Mas também houve mulheres que souberam solucionar esses problemas, provavelmente ao abrigo de apoios institucionais, ou de círculos de amizade: como Hildegarda de Bingen (1098-1179), Barbara Strozzi (1619-1677). Observemos que a primeira era Santa e não fazia sexo, nem usava anticoncepcionais; a outra tinha filhos, mãe solteira: compunha justamente para vender suas partituras e alimentar os filhos. Eu não afirmaria com tanta certeza que elas seriam raras exceções. Não duvido tivesse havido outras mulheres que foram compositoras, pintoras, mas esquecidas, por ter produzido obras de valor artístico apensa para imediato consumo, ou pelo preconceito de que seriam de pior categoria.  


30. O ponto é que, ainda que fossem uma minoria, não foi a revolução sexual, nem a pílula anticoncepcional, a variante causal explicativa de como essas mulheres superaram as barreiras que lhes eram impostas para criar e ter uma profissão. 


31. Essa maneira de pensar focada apenas nos direitos das mulheres a partir da década de 1970, como se tudo tivesse sido revolucionado recentemente, peca pela ingenuidade. Olhar apenas para si mesma como um suposto exemplo de pioneirismo, de uma conquista de todas as mulheres, nada mais é do que repetir a informação de que as mulheres teriam conquistado seu espaço porque houve uma professora de medicina em Salerno, no Século XII, na Itália. Outras até podem se seguir: mas nada indica que essa conquista não possa ser revertida rapidamente, sob o peso da inércia das relações sociais que trazem a mulher de volta “ao seu lugar”, supostamente o espaço doméstico, como um bicho domesticado pelo homem. Sim! Nada impede que dentro de alguns séculos, tantas mulheres que hoje clamam essas conquistas sejam novamente relegadas ao esquecimento. Daqui alguns séculos, quem sabe alguma pesquisadora venha a argumentar que Marisa Monte era uma exceção… Isto porque sou fã dela, acho que a obra dela deve sobreviver aos séculos, já ouvi Titãs e “Carinhoso” dela, com Paulinho da Viola, mais de mil vezes e espero assistir ainda mais milhares de vezes. Apenas exponho aqui as fragilidades de um argumento que na verdade ela emprestou do movimento feminista, tenho certeza de boa fé.   


32. A questão que se coloca evidente, naquele espaço onde foi realizado o seminário, entretanto, é muito mais imediata, nua e crua: há apenas uma mulher no STF, menos de 10%, apesar de haver um imenso número e proporção de mulheres juristas qualificadas para ser ministras do STF. O que estamos vendo é o regresso dos direitos e das oportunidades para mulheres, no momento em que vivemos. Estamos, no fundo, vendo o quanto a pílula anticoncepcional, assim como outros argumentos feministas contemporâneos, se tornaram insuficientes para garantir o espaço das mulheres na esfera pública, nos espaços decisórios.


33. É inegável também que as mulheres estão enfrentando uma onda epidêmica mundial de violência e assassinatos, e as ameaças a mulheres que buscam desempenhar um papel político cresceram exponencialmente. 


34. Para entender esse retrocesso, entretanto, precisaríamos entender melhor como os direitos das mulheres avançaram, no passado; e como o pensamento feminista que embasou esses avanços se alterou ao longo do tempo. Por que antes o pensamento feminista fez avançar os direitos políticos das mulheres no século XX? E por que agora, mesmo com um discurso mais radical, não está mais avançando a presença das mulheres em espaços dominados pelos homens? Precisamos fazer essas perguntas em algum momento: o que está dando errado? E por que não mudamos o que estamos fazendo?


35. Observemos ainda um pouco mais o nosso estado da arte, no debate recente entre duas parlamentares na GloboNews, com Júlia Duailibi (vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=70jioZ6sXkY) e teremos a real dimensão do problema. O tema em debate era este, qual é o lugar da mulher – da mulher do atual presidente.  Uma parlamentar de esquerda defende o óbvio, que boa parte tangível dos votos do atual presidente se devem ao apoio de campanha e ao prestígio que a figura feminina, uma primeira dama jovem e bonita, lhe empresta; recordando isso ocorreu com os presidentes anteriores, de um modo muito similar. Já a outra parlamentar, de oposição conservadora, argumentando os “bons costumes”, parece ocupar o espaço público por procuração dos homens “red-pillers”. Defende uma postura retrógrada: de que “a mulher deve colocar-se no seu lugar”. E que lugar é esse? Vejamos, vamos analisar o pensamento - ou a falta de pensamento - dela, para entender qual é o lugar da mulher. 


36. Devemos deduzir, então, que nenhuma mulher poderia ter nenhuma parte no ganho eleitoral que providenciou, como puxadora de votos ativa, em uma campanha eleitoral do marido: apenas poderia usufruir do espaço e do resultado que ela tivesse co-produzido se tivesse votos transferidos do marido formalmente, em um cargo devidamente empossado pelo processo eleitoral. 


37. Parece uma proposta não apenas retrógrada, mas extraterrestre, pois ignora o peso das relações humanas. No mundo humano, a importância da parceria com uma mulher, na carreira política de um homem, é imensa, sobretudo num universo político machista. O político que não ostenta uma mulher jovem e bonita para exibir aos seus pares tem menor prestígio e menores vantagens junto aos eleitores: o resultado político atesta isso. Ora, as feministas me criticarão, neste ponto. Trata-se justamente de não perpetuar uma situação em que as mulheres seriam objetificadas. 


38. Só que a exigência de que uma primeira dama se recolha “ao seu lugar”  ignora a dinâmica das relações políticas: pois nas eleições, as alianças políticas de um candidato com figuras públicas ensejam a concessão de cargos e participação no governo, após o êxito eleitoral. Olavo de Carvalho, por exemplo: não indicou o nome de ministros, após a eleição do ex-presidente? Não tinha uma voz tão ou mais frequente do que a atual primeira dama, nos assuntos de governo? No entanto, a parlamentar que se afirma conservadora não exigiu que ele “se colocasse no seu lugar”, ou que tivesse obtido um cargo eleitoral por meio de votos concedidos pelo ex-presidente, para exercer voz e poder no governo. Às demais figuras públicas, quando homens, seria facultado ter voz e participação no governo; e à primeira-dama, não? Por quê?  As ideias de Olavo de Carvalho são mais brilhantes e menos controversas do que as ideias da primeira-dama?


39. Mas a parlamentar que deseja ser conservadora e defender o direito das mulheres prossegue em mais um equívoco, faz a comparação com o próprio marido: alega seria descabido ele participasse das atividades do seu mandato. Nisto deixa de observar qualquer diferença entre uma mulher que participa ativamente da campanha do marido; e o marido que sequer aparece, ao menos como tal, diante dos seus eleitores, que não se envolve para captar votos durante a campanha da parlamentar. 


40. Em suma, qual é o lugar que ela está propondo que a primeira-dama tenha, então? A cama?  Salvo melhor juízo, houve um candidato presidencial do Nordeste que perdeu o mandato, perdeu a cônjuge e não mais se elegeu, depois de dizer que o lugar da mulher dele era na cama, e não dando opinião política… E por que não reagimos com um grande repúdio contra essa proposta absurda, de que o lugar de uma aliada política de primeira hora seria na cama? Por que o insulto vem de uma mulher? 


41. Propugnar que se negue a uma aliada política incondicional a participação e voz no governo, porque o político dorme com ela, é algo muito mais grave que a misoginia.  Também mais grave que a contradição em termos da lógica de uma aliança política entre figuras públicas. É uma triste humilhação de si mesma: pois se quem diz é mulher. Defendendo que, por causa do matrimônio, a mulher deva ser explorada e reduzida à sua função sexual…. É uma baixa visão de si mesma, baixa auto-estima de presumir inferioridade da mulher. Mas não, em hipótese alguma, nenhuma mulher pode ser concebida como um simples objeto sexual de interesse do marido, ou dos políticos em geral.     


42. Como explicar tamanho retrocesso? Vocalizado no discurso de uma parlamentar mulher. Estamos em 2025. Nem nos tempos medievais se poderia dar a entender que o lugar da esposa de um mandatário seria a cama… A parlamentar provavelmente quer agradar aos eleitores que se dizem conservadores e assegurar os votos deles para ser reeleita, isto é certo. Mas será que é isto mesmo o que pensam os homens conservadores? Eles não se sentiriam constrangidos, em dizer diante de uma senhora e de todos os Cidadãos, que o lugar de uma mulher de político é a cama? Ou que o lugar do esposo dela é a cama dela? Pois no fundo, ao que tudo indica foi isso que ela quis dizer. 


43. Olha, eu acho que nenhum homem conservador digno poderia aceitar essa postura, porque é inaceitável, dizer que uma mulher tem que conhecer o seu lugar, para negar a ela voz, ou espaço político. Ao menos não os homens conservadores de melhor nível que observo. Animais sempre haverá em toda parte, mas dizer homens… Dizer que se expressa um pensamento conservador demanda ter um certo nível de cortesia. E eu vejo assim: tanto mais conservador é um homem, quanto mais ele é tolerante e cortês com as mulheres, tanto mais tradicionalista, quanto menos se sente ameaçado e incomodado por elas.  


44. Além disso, limitar o que uma mulher pode ou não pode dizer é um atributo bastante autoritário, incompatível com os direitos políticos civis que o movimento conservador-liberal propugna. O mérito do que venha a ser dito, ou o que deixe de ser dito por uma primeira dama, pode ou deve ser alvo de escrutínio público… Mas é algo muito diferente discordar do que é dito, do que afirmar a pessoa não teria o direito de dizer… Até mesmo o cidadão mais comum tem o direito de dizer o que pensa, e ser elogiado ou criticado, ou até processado, depois disso. Por que a primeira dama não teria? A primeira-dama, como seria um primeiro-cavalheiro, é um ator político que tem, no mínimo, as mesmas titularidades de um cidadão comum.  


45. Eu observo, como em Chesterton, ter necessária reserva a desse tipo de pensamento, do que seja o casamento. Por que, tivesse eu esposo, ele não poderia atender meu telefone, a meu pedido; ou entrar e sair quando bem entender, de meu gabinete, tratar de algum assunto que não quero tratar, ou dirigir o carro, quando eu estiver cansada de dirigir? Qual o problema nisso? A parceria entre homem e mulher no matrimônio permite esse tipo de liberdade e confiança mútua em todos os níveis, pois o matrimônio, ao menos como foi inicialmente configurado, é uma relação que se estende sobre todas as esferas da vida: “uma só carne”. Quando não há confiança mútua, não há matrimônio, nem parceria, verdadeiramente. Mesmo no serviço público, burocráticos, os cônjuges se fazem presentes e aparecem, de vez em quando; por que não apareceriam quando o espaço é político, um lugar muito mais aberto à sociedade? 


46. Aqui eu falo, é claro, do único matrimônio que a Igreja conhece e que eu conheço, o matrimônio religioso que exige o sacrifício completo de si mesmo, não o casamento napoleônico, civil, contrato material de benefícios, o qual com tanta frequência termina em divórcio, quando cessam os benefícios. O nonsense de Napoleão não me interessa: também eu preferiria cruzar os Alpes descalça no inverno, com o Santo Papa Pio VII, ou me somar às dores da filha do Barão, Maria Amélia, do que chamar um contrato social civil de casamento. 


47. Do mesmo modo que o falso conservadorismo reduz o valor da mulher à sua função sexual, se estende o raciocínio que relaciona o avanço da participação das mulheres ao uso da pílula anticoncepcional. Como posso comparar raciocínios tão distintos? Como o feminismo poderia reduzir a mulher ao seu papel sexual? Ora. Constatemos que os homens ainda controlam a maior parte dos recursos financeiros do mundo: para afirmar que a pílula anticoncepcional teria sido decisiva para o avanço das mulheres no mundo profissional, teríamos que presumir os homens apenas teriam cedido espaço às mulheres mediante favores relacionados à função sexual. Mas calma! As feministas não me linchem, nem me ignorem, ainda! Não me refiro a favor sexual efetivamente prestado, não quero com isso levantar suspeita sobre os talentos profissionais inegáveis de Marisa Monte e da própria Ministra Cármen Lúcia, que estavam naquele evento. Trata-se de algo bem mais sutil: a disponibilidade sexual da mulher.  Se o êxito profissional da mulher não estaria relacionado à sua disponibilidade sexual, sem o objetivo de formar família… Como argumentar, então, que a pílula contraceptiva tenha contribuído para o aumento do espaço das mulheres?


48. Os leitores mais apegados à retórica feminista argumentarão que não entendi nada, que o planejamento familiar teria permitido que a mulher se dedicasse no início de sua vida fértil de um modo tão independente quanto os homens, para obter melhores resultados profissionais. Os homens já não teriam uma vantagem comparativa: as mulheres teriam passado a competir no mercado profissional com paridade… Vejamos.


49. Ora, existe uma visão mais machista, do considerar que os homens teriam mais espaço profissional por supostamente ter vantagens comparativas no domínio reprodutivo…? Qual é o fundamento desse discurso? Nisto se presume, talvez equivocadamente, que todos os homens bem-sucedidos profissionalmente abandonem as mulheres grávidas, ou não tenham nenhum fardo adicional, quando suas mulheres engravidam? 


50. É uma visão baseada num pensamento profundamente machista, profundamente retrógrado, profundamente primitivo, que ouvimos nos grotões – portanto, sim, é grotesco: a visão de que os meninos teriam maior liberdade que as meninas, por que têm pênis e as meninas engravidam… De que o menor desempenho intelectual e profissional resultaria da fragilidade do corpo feminino, porque as meninas podem ficar grávidas… De que as meninas têm de se retrair da exposição pública, e de que não podem ser muito ativas, porque podem ficar grávidas… Mentira! As mulheres têm bom desempenho intelectual e profissional, mesmo grávidas…! Mesmo com filhos…! Não vou nem trazer aqui os dados científicos de que o quociente de inteligência das mulheres aumenta depois da gravidez. Mas penso que as estatísticas são abundantes para desfazer esse pensamento machista, enraizado dos grotões, de que as meninas não são mais vulneráveis, que não podem isto ou aquilo por causa do potencial de gravidez.  


51. Não…. E analisemos, ainda, o lado dos homens mais detidamente. Nunca existiu isso, ao menos nos lugares civilizados, do homem ser mais livre do que a mulher, quando ela engravida. Pelo contrário. Ainda mais no passado da carochinha: quando o homem se tornava um pai de família, esse fato acrescia enormemente as suas responsabiilidades. E isto auxiliava como um motivo adicional para obter oportunidades de trabalho e crescimento profissional. Ele não tinha que se dedicar ao cuidado imediato com o bebê, como a sua mulher, é certo; mas ele ganhava um imenso fardo, pois além de cuidar de si mesmo, teria de cuidar da mulher e do filho. De onde assumir que o homem tinha maior liberdade? A mulher engravidou, ele tinha que casar e voltar para casa cedo, trabalhar para ela e para os filhos. Os homens viviam sob imensos grilhões, não podiam gozar livremente da sua sexualidade de maneira conectada com a experiência afetiva, antes da década de 1970, ao menos não sem casar e assumir responsabilidades antes. Portanto, não faz sentido falar que a completa falta de liberdade sexual-afetiva dos homens, antes da década de 1970, inibia neles a capacidade no âmbito profissional.  


52. Dir-se-á, então que eles podiam viver solteiros, ter prostitutas? Mas os homens de melhor desempenho profissional raramente eram solteiros que se dedicavam às prostitutas. Não, a liberdade sexual-afetiva dos homens também não era lá essas coisas, a vida deles também era um inferno, décadas atrás. Se o leitor duvida, pergunte então a qualquer homem se ele quer ter sua primeira relação sexual-afetiva apenas após se casar antes com uma mulher virgem e jurar que não vai se divorciar, sob pena dever realizado o termo “que a morte os separe”, como era nos séculos anteriores. 


53. E tampouco antes tinham as mulheres que se dedicar aos cuidados com o bebê, a partir de certa classe de renda. Quem cuidava dos bebês, na classe média e na classe alta, nas décadas e séculos anteriores, não eram as mães, eram as babás e, no Brasil, no século retrasado, eram as escravas, as amas de leite. Por que, então, se tinham tempo disponível – elas sequer amamentavam…! Por que, então, as mulheres preferiam se dedicar aos penteados, à moda, à leitura de folhetins de romance? 


54. Conclusão. Não era o fato de ter filhos ou não, ou maiores responsabilidades, maior liberdade sexual ou não, o que impedia uma pessoa de obter emprego e êxito profissional; nem eram os filhos o fator que impedia a mulher do século XIX, se observamos as mulheres de classe média e alta, de ter uma vida profissional e intelectual ativa. Era, como dizia Simone de Beauvoir, a ideia que delimitava o que era ser uma mulher e do que era ser um homem, a construção do seu papel social, como tinha de se comportar, se recolhendo ao ambiente doméstico e aos afazeres domésticos, depois que engravidava, ou tinha filhos. Não o fato de ter filhos. Para ser “a rainha do lar” e merecer homenagens do marido e dos filhos, ela tinha de ficar em casa bordando… Para o homem ser homem, ele precisava ter uma profissão e êxito. O que mudou foi esta perspectiva, e isto mudou por uma revolução nas ideias,  não por causa de um avanço tecnológico do anticoncepcional. 


55. Sem embargo, hoje, mesmo sem dispor do mesmo tempo que tinham as mulheres de classe média e alta do século XIX, vemos diversas mulheres que tiveram filhos e conquistaram independência. Se perguntar a elas se os filhos atrapalharam, ou impediram que elas tivessem oportunidades, terão sido péssimos seres humanos. Dizer que os filhos teriam sido um fardo…. Mulheres crueis. Eu arriscaria dizer, ainda, que toda mãe bem realizada sabe os filhos são um incentivo a mais para dar o melhor de si mesma. A responsabilidade de ser mãe implica um maior dever moral de ser a referência dos filhos – nesse sentido, o êxito profissional aqui precisa ser reenquadrado. O senso comum tende a reconhecer salários e cargos; mas o senso moral se guia antes pelas decisões tomadas pela mulher na sua profissão, como centro de autoridade da família, para definir o certo e o errado, na educação dos filhos. E quantas baronesas, condessas, no passado, foram exitosas, administrando suas fazendas, foram comerciantes, tendo vários filhos…? 


56. Mas Marisa Monte, assim como a maior parte das feministas, argumenta que a pílula teria possibilitado o planejamento familiar, dando à mulher controle sobre o seu próprio corpo, sobre a sua própria carreira profissional – como se as mulheres nunca tivessem tido controle ou escolha de não ter filhos antes. Ora, à luz de tudo que precede, dos fatos concretos, conhecendo a História, isto me parece um argumento frágil. Não é isso que observamos na prática. Muitas freiras tiveram um excelente desempenho profissional. Freira não é mulher? Freira não é gente? Maria Valéria Rezende é freira, não precisou de anticoncepcional nem de aborto para fundar o Mulherio das Letras, uma iniciativa sensacional. Há mulheres que nas décadas recentes têm filhos organizam o tempo, podem trabalhar e têm trabalhado com destaque profissional, os filhos não são um problema. E houve muitas mulheres que, no passado, recordamos, tinham filhos e um cortejo de serviçais, com tempo de sobra, podiam ter tido papel profissional ativo, mas não necessariamente tiveram, recordamos. Há mulheres que gozam de usam anticoncepcional, e têm plena liberdade sexual em casamentos abertos; mas é isso lhes garante êxito profissional? 


57. O que talvez se devesse melhor argumentar foi o avanço tecnológico, nas décadas recentes, relacionado ao desempenho da atividade profissional durante o período da menstruação; o aumento da conscientização sobre os ciclos hormonais. As dificuldades foram sendo superadas com dispositivos cada vez mais simples para a estabilização do humor e para manter a produtividade mais próxima à produtividade dos homens, pela disponibilidade para o trabalho. Uma mulher tinha 3/4 da produtividade masculina, quando tinha de desacelerar uma semana por mês, quando não havia analgésicos. Como não enlouqueciam? Enlouqueciam. Qualquer pessoa enlouqueceria nesse estágio preparatório que a biologia planeja para a mulher ser capaz de um parto normal. Ninguém fala disso, pelo tabu social que é a menstruação das meninas, ou do ciclo hormonal diferente das mulheres, martelando numa igualdade absoluta: a menstruação ainda é vista como algo repugnante, algo sujo, as dores lancinantes dos primeiros anos de fertilidade são completamente ignoradas pelas políticas públicas… Finge-se que não haveria diferenças, mas a verdade biológica demonstra que há diferenças imensas entre os sexos, no que diz respeito ao impacto do ciclo hormonal. A menstruação era a razão pela qual foi vedado às mulheres desempenhar a função de diáconas, por exemplo, nas decisões eclesiásticas a partir do século XII, já que o período de menstrução restringia a mobilidade e interrompia o atendimento pastoral. 


58. Mas deixando esse detalhe importante da superação das restrições impostas pela menstruação e pelo desconhecimento do ciclo hormonal, no passado. 


59. Seria preciso antes de mais nada zerar essa argumentação de que as conquistas das mulheres se dariam em função de um discurso feminista de controle sobre o próprio corpo, como se antes as mulheres não tivessem nenhuma capacidade de ter esse controle sobre si mesmas, sem anticoncepcionais e sem aborto. 


60. E seria conveniente também falar de feminismo como um movimento que foi passando por consideráveis transformações, ao longo de um século e meio, recordando foi um movimento que surgiu muito antes dessa agenda relacionada a liberdade sexual e aborto. 


61. Existiram várias vertentes de feminismo, em domínios diversos da sociedade e mesmo hoje não se pode dizer que exista um único movimento feminista, embora várias mulheres pretendam ter o monopólio do discurso, repetindo os jargões associados ao movimento. 


62. Neste sentido, talvez falte uma crítica ao feminismo que seja mais realista sobre as suas reais contribuições e uma estratégia que pense em como garantir uma melhor posição das mulheres na sociedade. 


63. Em algumas de suas versões mais recente, essa vertente do feminismo, tenhamos cautela, tem se alimentado predatoriamente dos direitos das crianças. Há uma geração de mulheres que detesta filhos e devora crianças: não é mais o mito de Kronos, mas Kronas. Pois se sufoca o direito das crianças e se nega a dignidade das crianças, ao se afirmar que a mulher teria êxito profissional apenas colocando os filhos em um segundo plano… Não se relaciona a saúde da mulher com a felicidade no convívio e lazer com os filhos, com as relações que lhe abastecem de força. Entretanto, os homens sabem muito bem o lar, o convívio familiar, é o local de restauração de forças, e nenhum deles dispensa essa realidade básica. No caso masculino, pelo contrário, o lar é uma titularidade básica do homem. 


64. Eu não sei, sinceramente, quais experiências pessoais traumáticas as mulheres que abominam a maternidade como uma desvantagem enfrentaram, ou deixaram de enfrentar. Seria muito inadequado ignorar a dor de um filho que ouvisse foi um fardo, obstáculo para que a mãe não tivesse êxito profissional. E é um discurso tão perigosamente maligno quanto falso. Talvez seja reproduzido com maior frequência por mulheres que não têm filhos; ou pelas mulheres que se tornaram mães infelizes. Haveria nisto recalque? O resultado é um pensamento infantil, autocentrado: as mulheres só poderiam avançar às custas dos direitos do nascituro, da criança…


65. Mas é um discurso irracional: pois boa parte das mulheres encontra uma fonte de felicidade inesgotável em ser mãe. 


66. O feminismo perde muito com isso, deixando de enxergar a mulher como um ser humano, perdendo aquela ideia fundamental de base do feminismo raiz, de dar à mulher o que se dava ao homem – os requisitos para a atuação e independência profisisonal. Perde-se perspectiva real ao ver a mulher como um ser extirpado do seu contexto biológico; e perpetua a objetificação sexual da mulher, ao vê-la ao mesmo tempo reduzido às suas experiências sensoriais, no domínio sexual. 


67. O que tem a ver, o êxito profissional com a vida sexual? Não deveria haver uma relação direta, como propõem as feministas, pois a vida sexual pertence ao domínio da intimidade. O êxito profissional diz respeito à esfera pública. Por isso talvez o feminismo, no Brasil, tenha ensejado feroz oposição e reticência por boa parte das mulheres, e também dos homens. A nossa cultura preza pela intimidade. 


68. Hoje se dirá que me equivoco: que a nova geração de Millenials afirma-se com orgulho ser feminista. Mas tenho a impressão que essa nova geração enxerga o feminismo de um modo bem diferente. Enxergam de maneira mais abrangente: como a continuidade da ideia fundamental de que as mulheres têm o direito a ser tão incompetentes quanto os homens. Algo muito diferente e muito mais sábio do que propor a mulher seja competitiva, ou tenha de ter um comportamento sexual libertário, para supostamente imitar os homens, para provar competência profissional, ou ocupar espaço…   


69. Estamos falando de mulheres: não podemos ignorar que nessas versões do discurso feminista possa aflorar uma perspectiva competitiva sobre as outras mulheres. Não sendo mães, ou não gostando de ser mães, buscam justificar o maior sucesso profissional das mulheres retirando da equação os filhos. Isso é um problema de auto-estima, no fundo: não aceitam que têm méritos e talentos que se demonstrariam tivessem ou não filhos, tivessem ou não planejamento familiar. Uma visão sacrificial de si mesma tem fundo narcisista, é verdade: dessa baixa auto-estima, da falta de conhecer os próprios méritos, talvez venha a necessidade de se colocar acima das demais mulheres, das que não se preocupam com uma vida tão planejada, das que preferem se dedicar aos assuntos domésticos, e não querem ostentar disponibilidade sexual. 


70. O pensamento filosófico de base anárquica, entretanto, contribui para essa falta de coesão nos argumentos. Tende necessariamente a propugnar avanços de maneira desordenada, porque o feminismo, como pensamento anárquico, está fundamentado sobre a expansão de reivindicações. O narcisismo da preocupação em elogiar as próprias conquistas, entretanto,  cessa o potencial de expansão do feminismo. E mais à frente, essa abordagem muito enfocada na conquista própria, ao invés de enfocar o que foi conquistado por todas as mulheres, produz um efeito colateral de retraimento. 


71. Como explicar, por exemplo, que Maria José de Castro Rebello Mendes, a primeira mulher admitida pelo serviço exterior no Brasil, depois de se habilitar e ser aprovada em concurso, conduzida ao cargo judicialmente, depois de desafiar a estrutura que lhe negava licença maternidade remunerada, tivesse abandonado depois de alguns anos a carreira? Argumentou ela que a sua vida familiar tinha prioridade sobre a sua vida profissional e largou a carreira. No final das contas, o feminismo propugnado como um instrumento reivindicatório não produziu os frutos tão esperados: a igualdade no reconhecimento do mérito, da equidade na distribuição do poder decisório… Esse é o problema do pensamento anárquico. Avança desordenadamente, abre mão facilmente de seus pressupostos, quando os julga inatingíveis. Não que isto seja um privilégio das mulheres: também Vinicius de Moraes começou como um secretário integralista, frequentador dos amigos de Plínio Salgado, e terminou nas telas de cinema, tomando banho nu, em uma banheira… 


72. Já o problema do feminismo catártico, baseado apenas em reivindicações após reivindicações, é  um pouco pior, já que propugna propostas que são realmente infactíveis. A mulher, para o movimento feminista que se arroga o monopólio do discurso dos direitos, teria um perfil único. Mas as mulheres são uma metade heterogênea da sociedade, a condição feminina é muito diversas, cada situação dependendo da posição social que ocupa, das afiliações religiosas e políticas… Há uma grande diversidade de mulheres que o feminismo, nas suas versões mais recentes, ignora. Considerando que a maior parte das mulheres é trabalhadora, e não de casta aristocrata… Seria infactível reivindicar que a mulher pudesse se dedicar à carreira profissional sem que o homem viesse a ter também o seu papel social reformulado, para equilibrar a divisão de tarefas domésticas. Considerando, ainda, que a maior parte das mulheres é religiosa, e não laica… Seria também muito infactível invocar o aborto como uma conquista de avanço de direitos das mulheres. A maior parte das mulheres religiosas consideram o aborto um evento indesejável. 


73. No entanto as feministas, num processo de alienação, prosseguiram exigindo direitos que se estendessem sobre todas as mulheres sem dar atenção ao enorme peso que essa reformulação desordenada do papel da mulher tem na sociedade. O resultado desse avanço é a escravidão moderna: a enorme fragmentação dos lares construídos sobre propostas insustentáveis de protagonismo feminino, em que a mulher enfrenta tripla jornada e se vê sobrecarregada. É inevitável constatar que, na esfera política, as propostas feministas começaram a ser questionadas por homens e mulheres: não porque prevaleça necessariamente o machismo, o machismo nostálgico, da utopia de um passado supostamente feliz. Mas poque a sua implementação desordenada produziu danos e desequilíbrios consideráveis nas famílias.  


74. E quanto às conquistas do feminismo anteriores à revolução sexual? Para todas as mulheres, o direito ao voto, ao estudo, ao direito autoral e ao trabalho são indispensáveis. Mas exercer esses direitos não deveria ser algo condicionado ao sacrifício pessoal de não ter filhos, ou a praticar o aborto – por que a exigência desse sacrifício de ter filhos, ou de matar fetos? Não para todas as mulheres o aborto é uma conquista. Aliás, para a maior parte delas, para as mulheres religiosas, falar em direito de matar o feto, o próprio filho, é uma abominação. Nenhuma mulher religiosa que se preze conseguiria suportar ouvir a defesa do direito de matar o próprio filho sem se sentir consternada. 


75. O feminismo mais recente se apresenta também como uma variação do determinismo da eugenia, doutrina muito superada do século XIX: toma a exceção à regra, o crime, para legislar sobre casos nos quais as mulheres tiveram opção de ter ou não relação sexual em período fértil. Reclama-se, então, o direito de decidir, mas como, tendo já decidido? Prega-se a mulher tenha o direito de abortar em qualquer circunstância; mas e a responsabilidade? Como podemos clamar a mulher seria um sujeito sem quaisquer responsabilidades reprodutivas e dizer que a mulher seria digna? Agora: tomando o evento fora da normalidade, o crime, considera que todo feto concebido sem planejamento seria potencialmente indesejável, pelo vínculo genético com o abusador. Ora, isso é outro problema ainda pior, a eugenia: tomar o nascituro como uma continuidade da pessoa do agressor, um indivíduo que nada tem a ver com o crime praticado. Toda pessoa é uma alma de características próprias, toda vida humana deve ser protegida; se a mãe não quer, tudo bem.  Ninguém deve ser mãe sem ter dado antes o consentimento. O anjo aguardou o consentimento de Maria para dar seguimento ao plano de Deus. Se até Deus pediu consentimento, não é ainda mais necessário aos homens? Quando existe uma violação do consentimento, a Igreja, o governo e o Estado deveriam ser chamados a preservar e proteger a vítima, também a vida humana que nada tem a ver com o crime. 


75bis. Mas o que me incomoda é que não se possa prestar apoio contra o uníssono de que a mulher deve interromper uma gravidez que não tenha sido planejada. Essa ideia de que a mulher tem que se dedicar a “ser feliz” antes de ser mãe, dedicar-se à profissão, é uma balela. A mulher pode se dedicar à profissão depois. Por que não? Existe uma grande felicidade em ser mãe que não precisa necessariamente ser adiada. Essa pressão sobre as jovens, de que não devem engravidar, ou de que engravidar antes de ter uma carreira seria uma vergonha, é uma forma de pensar muito machista. E efetivamente não há, hoje, um sistema de apoio suficiente para abordar a gravidez como um direito que a mulher deve exercer sem qualquer peso ou constrangimento público, no qual o pai deve ser chamado também dividir os cuidados, numa realidade em que os espaços de estudo e de trabalho devem ser adaptados. Nos países desenvolvidos, é normal ver carrinhos de bebês na universidade assistindo aula, com pais e mães. No Brasil, isso é visto com preconceito: por causa dessa mistura confusa que resulta num feminismo machista, construído sobre um ideal de uma figura profissional masculina pitoresca, ídolo da disponibilidade sexual.  Confunde-se disponibilidade sexual com liberdade: mas não existe liberdade concretamente se o sujeito não tem responsabilidade sobre si mesmo. A mulher que dá consentimento ao ato sexual e depois pratica o aborto, valendo-se da desculpa de que no caso de crimes isso é lícito, está exigindo não ter nenhuma responsabilidade sobre si mesma; algo contraditório, em termos, com a ideia de empoderamento do feminismo. 


75ter. No fundo, a mulher grávida, tendo dado seu consentimento ao ato sexual, encontra-se em circunstância de vulnerabilidade, e ao assentir o aborto, está expondo o resultado do ambiente em que vive: nenhum apoio ou incentivo social que possa lhe convencer que vale a pena ser mãe; a falta de percepção sobre o bem moral que reside em assumir responsabilidade sobre as consequências de seus atos; a falta de conhecimento sobre o valor inestimável da vida humana em formação; ausência ou indisposição do parceiro em assumir o ônus, deixando-lhe com o peso desproporcional de lidar com o fato; e até a desesperança, ao não ponderar que algo a maternidade possa lhe trazer uma maior felicidade, e novas soluções. E deveríamos recordar, ainda, o preconceito – por que não? – de que, em se tornando mãe, não terá mais uma vida sexual prazeirosa, nem romântica, pois será tratada dentro da subcategoria social de “mãe solteira”, degradada pelos homens, preterida por eles… Nossa sociedade é tanto mais subdesenvolvida quanto mais toma a gravidez como o fim do romance. Existem nichos na sociedade onde crescem as idiossincrasias, como escreveu Borges: lugares onde “os espelhos e a cópula seriam abomináveis, porque multiplicam o número dos homens”. Há uma falsa tendência na sociedade a centrar o debate sobre a decisão da mulher, para culpabilizá-la; a resposta do pensamento feminista é desenhada dentro desse mesmo contexto equivocado, que ignora o imenso peso das cargas culturais que desamparam a mulher em uma situação de vulnerabilidade. Deveria ser apoiada quando decide responsabilizar-se; mas não poderia ser responsabilizada pela culpa do aborto. 


76. Também há um fanatismo de fundo, nessa vertente feminista que tomou para si a bandeira do aborto, e que deseja legislar erga omnes, com base em casos criminais, de abusos cometidos contra crianças. Pois cada caso é um caso, a ser decidido avaliando o risco médico. Entretanto, ao fazer do tema uma bandeira política, uma doutrina ideológica, impede que seja ponderado a cada caso qual é o procedimento médico mais seguro para garantir a saúde materna da vítima. Desconsidera o aborto é uma intervenção agressiva no corpo humano – do contrário, os ginecologistas não registrariam na ficha da saúde da mulher o número de abortos, sendo um evento que pode afetar a fertilidade e saúde da mulher. 


77. Enfim. Há uma pobreza enorme no debate sobre o aborto e completa falta de crítica sobre o que isso realmente interfere no menor ou maior espaço profissional e nas decisões da esfera pública, a ser ocupado pelas mulheres. Afinal, aquelas mulheres que abortaram tiveram um melhor desempenho profissional, tornaram-se autoridades públicas, por causa do aborto? Talvez não por causa do aborto, mas certamente pela defesa política do aborto, à revelia de tantas mulheres. E pode-se dizer feminista, quem ignora tantas mulheres? Pois eu disse anteriormente: tenho dúvidas. 


78. Do ponto de vista político, portanto, o movimento feminista hierarquizou-se com mulheres nem sempre representativas ocupando as posições mais altas. Essas mulheres desencadeiam protestos, mobilizam as jihads feministas em protestos catárticos. Galgar o poder sob a ameaça de produzir escândalos sexuais em redes coordenadas não parece, contudo, uma estratégia sustentável. O resultado disso foi o próprio enfraquecimento do movimento, pela deslegitimização de suas causas; a autoridade feminina perde efeito real, quando a verdade se torna subsidiária. Podem ganhar posições com isso, mas perdem a autoridade, a legitimidade que confere o poder de decisão. “Não há autoridade que não venha de Deus”, escreveu São Paulo aos Romanos (Rom 13, 1). Recordarão que São Paulo era machista? Mas ele constituiu Phœbe como líder de uma comunidade (Rom 16, 1-2). Não se deve aguardar o poder como uma concessão dos homens? Mas todo poder é uma concessão. Com essa pretensão equivocada de Macbeth, ou Fausto, estamos vendo o surgimento de forças radicais contrárias que destituem as mulheres desses lugares com facilidade, já que não detêm o poder no real sentido da palavra.  Há uma confusão, ainda, do que seja cargo e poder. É um dano à causa das mulheres, uma ilusão, galgar posições tendo o problema de consciência.


79. O leitor poderia argumentar que a realidade hoje é diferente: que toda mulher pode garantir seu espaço em qualquer profissão, havendo tantas que obtiveram êxito, graças a uma consciência de gênero. Que a atualização do discurso feminista foi necessária para continuar produzindo avanços. 


80. Eu diria que o meu leitor não deveria ser tão romântico, nem um iludido. 


81. Não, meu amigo! No Brasil, as mulheres não conquistaram ainda a igualdade de oportunidades, nem a igualdade salarial, nem a igualdade de gênero, e ainda têm uma parcela mínima dos cargos públicos de alto nível decisório. O discurso de gênero, pelo contrário, tem ensejado a articulação de movimentos de contra-cultura, baseados em misoginia e na mais pura imbecilidade dos chamados “red-pillers” e “incels”, homens sexualmente frustrados, ressentidos por ter sido preteridos profissionalmente ou afetivamente pelas mulheres; Freud os diria sobretudo recalcados.  Um bom mineiro bem-resolvido que muito amo usaria o termo mais simples, popular e eficaz: os cornos. Esse movimento misógino está tendo ampla adesão, falo sério. Há um imenso contingente de homens com masculinidade frágil, ou em crise: pois as relações sociais mudaram, mas o papel do homem não foi reformulado… A saúde mental masculina não foi tratada… Vemos a tendência que busca auferir ganhos poíticos desqualificando a política de gênero: vemos os retrocessos debate público. Como disse a própria Chimamanda em entrevista à Folha de S. Paulo: “às vezes nos parabenizamos pelos pequenos passos que damos e esquecemos que há ainda um longo caminho a percorrer”. 


82. Há de se falar em qualidade de representação: a proposta do discurso afirmativo de gênero venceu as eleições presidenciais, com a condução ao poder de uma plataforma política de esquerda. Mas não produziu efeitos suficientes, ainda, na expansão da presença feminina nos maiores cargos decisórios. Ou seria suficiente apenas uma mulher, em vias de se aposentar no Supremo Tribunal Federal, e umas poucas mulheres, nas demais instâncias, sobretudo aquelas voltadas para temáticas afirmativas, ou para temas soft de governo?


83. O leitor então me exigirá uma abordagem menos pessimista e crítica, mais propositiva. Se as versões mais recentes do feminismo, cristalizadas no discurso de gênero reduzido à função sexual da mulher, encontraram limitações e não mais têm produzido avanços das mulheres nos espaços de decisão, nem têm resultado em uma distribuição de riquezas mais equitativa… Qual seria então o caminho? 


84. Certamente o caminho não é atuar como satélite dos homens, nem galgar espaço dando-se o desprestígio de ser o objeto de desejo sexual deles. Ter uma atuação pública alinhada com o discurso retrógrado, que deseja impor um “lugar” restrito a ser ocupado pelas mulheres,  em troca de benefícios concedidos pelos homens que lideram as bandeiras de um comportamento primitivo, “contra a modernidade”… É algo que tem sinceramente tem contribuído para reverter as modestas conquistas que as mulheres obtiveram há mais de um século – pelo menos o direito à voz política. Sim, a culpa é de quem irresponsavelmente vende como conservadorismo algo que está muito longe de refletir os valores e conduta dos pensadores conservadores, extremamente deferentes, tolerantes e cheios de cortesia com as mulheres.  


85. Também temos a verdade de que nenhum homem decente quer voltar às cavernas, nem viver sem papel higiênico, ter relações afetivas apenas depois de casar, ou atuar num ambiente político sem mulheres; seria menos prazeiroso para eles atuar sem o alívio que as figuras políticas femininas proporcionam, ao manter interlocução.  


86. Então, por que essas mulheres que se contentam em divulgar discursos retrógrados, em nome de uma falsa defesa do interesse dos homens, os quais sempre – sempre – têm interesse em ter mais e mais mulheres como interlocutoras na esfera política, não tomam vergonha? O caminho é aumentar a exposição da falta de senso do discurso de masculinidade tóxica, demonstrar o vazio de ideias detrás de um falso rótulo de conservadorismo. O caminho didático e educativo precisa elucidar a baixa auto-estima da mulher que veicula o discurso abjeto da inferioridade, ao sugerir que a mulher deve recolher-se “ao seu lugar”. 


87. Isto é importante: não há como se manter de pé uma sociedade construída sobre o discurso de mulheres narcisistas, inseguras do valor de si mesmas, que precisam assegurar-se por meio da adesão incondicional a uma liderança masculina. As mulheres precisam ser capazes de concordar umas com as outras, de não repelir-se; as que não são capazes precisam se tornar capazes.  Precisam de um tratamento psicanalítico para esclarecer a própria condição e o controle masculino que se transcorre na própria consciência delas, já que inexiste uma relação de superioridade entre homens e mulheres. Fazer do argumento de inferioridade da mulher um instrumento político é perverso e inaceitável.


88. Observo, sem embargo, cada vez mais frequente e impune a conduta de mulheres que aparecem como papagaios de piratas nas redes sociais, endossando “red pillers” e “incels” para ganhar a atenção deles, curtindo ataques de homens contra mulheres, para obter a aprovação de homens agressivos. Estão na esfera pública: mas se prestam a um papel não menos ridículo que o de esposas submissas convencidas da própria inferioridade. Elas se vendem por um preço barato. E pior! Sem o gozo do sexo! Até as prostitutas merecem nosso maior apreço, pela maior dignidade do gozo.


89. Nas palavras de Antonieta de Barros, essas mulheres que se prestam ao serviço de ser marionetes políticas de uma estrutura excludente, que busca diminuir o papel das mulheres na sociedade, são “bibelôs”. Na falta de ideias próprias, ou mesmo de frases que pudessem inspirar qualquer pensamento político, gostam de ostentar a estética delicada que os homens admiram nelas, sob uma aparência de modéstia. Mas no fundo, debaixo das roupas intencionalmente modestas, é a luxúria que funciona desatada, pela atenção que se concede ao corpo. No espaço público, uma mulher deveria ser mais que o seu corpo.   


90. Que durabilidade terá um programa político de mulheres que se exibem sem palavras, sem frases, sem conteúdo algum, vendendo, como produto poíltico, o restabelecimento da estética social da década de 1950, ou 1960, em pleno século XXI? Será que o eleitorado quer mesmo um retorno ao tempo em que as mulheres viviam submissas, tão belas e elegantes nas propagandas, e na vida real, entre quatro paredes, depressivas, intolerantes e histéricas? Não havia homem que não tivesse amantes na década de 1950, 1960. Pois quem aturaria aquele perfil de mulheres que só sabiam falar da compra de um novo eletrodoméstico, e da promoção do marido no emprego? Como se o homem fosse, ele próprio, a extensão do pênis que lhe faltava… Existe hoje alguma chance hoje, em 2025, de que os homens venham a se contentar em conversar sobre eletrodomésticos, que venham a dar os seus salários para mulheres com inveja do pênis, aceitando que elas fiquem em casa sem trabalhar, cobrando eles se tornem cada vez mais submissos aos superiores para galgar posição social, para defender uma agenda de costumes da década de 1950, ou 1960? 


91. Os cínicos me dirão que eu perdi o ponto: que na realidade o objetivo não é, nem nunca foi, implementar uma agenda de costumes; e sim chegar ao poder fazendo uso de um  discurso sobre costumes. E uma vez no poder…? Os cínicos, ao chegar ao poder, não têm nenhum programa a implementar…. Inexoravelmente passam a cometer grandes abusos. Para provar que são merecedores do poder, querem usar o poder: e o destino deles é terrível. O problema do cinismo é que não vê as consequências, presumindo Deus não exista, ou que Deus não esteja vendo o cinismo de considerar o povo estúpido, massa a ser manobrada e alimentada de factoides. É o mais puro ateísmo: assumir que Deus seja uma projeção da própria vontade. Nisto, os ateus declarados são bem mais responsáveis. 


92. Portanto me parece que é preciso buscar ideias que realmente funcionem, políticas que foram implementadas em outros países e que permitiram adequar a estrutura familiar a um cenário no qual homens e mulheres trabalham fora. É óbvio que é preciso aumentar o protagonismo do homem no cenário doméstico, para que a mulher possa se dedicar à profissão e aos assuntos públicos. A diferença biológica não pode ser anulada, mas uma política pública que favoreça e incentive o homem a estar mais presente no cuidado com os filhos, a partir de certa idade, e incentivos à mulher para que se engaje em assuntos públicos ou profissionais, quando a idade dos filhos permita, poderia funcionar como uma compensação adequada, para finalmente corrigir a distorção que vemos hoje, na distribuição de cargos decisórios. E seria favorável à saúde masculina, ter o seu papel de parceiro reconhecido e bem-resolvido, pois a sobrecarga de expectativas sobre o homem, esperar que cumpra um papel de dominação, é algo sobretudo ruim para a sua saúde mental, prejudica sua felicidade.   


93. E quanto aos homens tóxicos, engajados numa campanha contra os direitos fundamentais e a dignidade das mulheres? Não deixa de expressar uma masculinidade contraditória. Os homens agressivos argumentam ter superioridade sobre as mulheres, mas demonstram covardia, ao atacar quem consideram inferiores. Evidenciar a covardia dos “red-pillers” que se ocultam em perfis genéricos, ou sob o falso rótulo de “conservadores”, para atacar dia e noite as mulheres em função pública, e também as mulheres em geral, de um modo estrutural, parece urgente. 


94. Com marco legal, ou por meio de novas atitudes?


95. Do ponto de vista legal, a Hannah Arendt certa vez rematou muito bem: “nenhuma punição jamais teve poder de dissuasão suficiente para impedir a prática de crimes”. Criar um marco legal delimitando o crime contra a dignidade das mulheres, contra digamos, o direito difuso, poderia ser um caminho necessário, mas a punição não viria a alterar o quadro de violência. Seria necessário que o marco legal fosse construído de maneira a orientar uma educação mais respeitosa.  


96. É lógico que seria falta de responsabilidade, deixar de ver o risco de imbecilização da sociedade, quando homens tóxicos e agressivos façam mais e mais seguidores. Quando os homens públicos conclamam seguidores a depreciar a dignidade das mulheres em geral, atuam como vetores de barbárie, incentivam e justificam a violência e a agressão contra mulheres. É preciso pensar, sem dúvida, um marco legal que possa frenar essas condutas que atentam contra a dignidade de todas as mulheres, e não apenas a materialidade dos ataques a esta ou aquela mulher, que acaba sendo incorporada em estatísticas, ou a uma casuística do agressor. 


97. Se é crime a propaganda do nazismo, por meio de seus símbolos ou conjecturas de que haveriam raças superiores, por que não seria crime a propaganda do machismo, que prega um estatuto de inferioridade das mulheres? 


98. Por fim, penso que o feminismo deveria evoluir suas bases filosóficas como pensamento, analisar melhor os seus pressupostos; revisar seus fundamentos e sua dinâmica baseada sobre o anarquismo, ou sobre a reivindicação. É preciso concentrar esforços na defesa do “acquis”, assimilar fundamentos que são desviados pelas instituições para que as instituições possam paulatinamente reformular-se. As estratégias de defesa são muito diferentes das estratégias de conquistar novas bases. 


99. Nisto de avançar e defender a dignidade das mulheres num movimento mais amplo, deveríamos pensar em incorporar um contingente de mulheres muito subestimadas. Existem aquelas mulheres que, paradoxalmente, mesmo relegando-se a tarefas domésticas, ou a posições subalternas, conhecem o próprio valor e sabem extrair disso força e poder discursivo. Essas senhoras que conquistaram a posição de “eminências pardas”, implementaram um cuidadoso processo educativo e formativo dos homens ao seu redor; têm consciência de que a divisão dos benefícios e das riquezas deve ser mais favorável às mulheres, e não equânime. 


100. Essas sim, guardam o bom senso: existem diferenças naturais e as mulheres devem obter compensações pelas suas fragilidades. Logo, deduz-se a necessidade de trabalhar em novos institutos e instrumentos que confiram maior segurança jurídica na vida social e política. Contudo, essas mulheres influentes são constantemente invisibilizadas pelo vínculo de parentesco. Guardam conhecimentos milenares; e se guardam o conhecimento de como produzir homens de destaque, são capazes, também, de engendrar figuras femininas de destaque. São aquelas mais aptas para atuar na defesa das mulheres que se alçam a posições públicas, desbaratando o vazio de uma suposta superioridade de gênero masculino dentro do universo masculino. O movimento feminista deveria incorporar uma visão estratégica sobre como reformular-se para assimilar essas mulheres, sem exigir delas uma revolução que as desfigurasse. 

 


101. Na prática, penso que o movimento de “sororidade” se demonstrou completamente ineficaz para dar continuidade aos avanços dos direitos das mulheres. A competitividade entre elas, incentivada pelos homens, acabou tornando o convívio insuportável. 


102. Entretanto, o movimento de “maternidade” sempre existiu, e poderia ser um recurso para o movimento feminista renovar-se. Pensar a maternidade como uma relação de desintoxicação e desenvolvimento, um sistema de apoio intergeracional entre as mulheres, seria algo mais inteligente, a meu ver. Seria uma maneira também de trabalhar melhor a transmissão do conhecimento sobre mulheres, de geração a geração, o qual vimos, ao longo dos séculos se perde facilmente.  


103. Eis aí algumas reflexões críticas, de quem não suporta a ineficácia dessa estética discursiva dos clubes de mulheres vestidas de rosa, sindicalizando e reduzindo a mulher a um conceito de gênero; as quais convenientemente somem, ou chegam a jogar lenha, fazendo comentários maldosos, quando uma mulher está queimando na fogueira… Nutellas.    



*Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata. Membro correspondente da Academia das Ciências de Lisboa, Membro da New York Academy of Sciences, membro honorária da Sociedade Brasileira de Física, Fuzileira Naval Veterana honorária. 




 


 




 


 
 
 

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