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Debate sobre os rumos da poesia lusófona.



No dia 8 de novembro tive o prazer de lançar o epitalâmio "As veneráveis virtudes do homem" na Livraria Ferin, em Lisboa, e partilhar da presença de pessoas que muito admiro, ao qual se seguiu um diálogo sobre os rumos da poesia lusófona. O debate em breve será disponibilizado em imagens no YouTube, e aqui transcrevo a íntegra da intervenção que preparei para essa ocasião, na presença do representante da Livraria Ferin, Dr. João Paulo Pinheiro Dias, do amigo Fred Maia, poeta e letrista brasileiro, e do Exmo. Presidente da Academia de Ciências e Classe de Letras de Lisboa, Dr. Artur Anselmo. Tivemos a alegria de contar com a presença do notável Embaixador Gonçalo Mourão, nosso representante brasileiro junto à CPLP.

Os rumos da poesia

Debate na Livraria Ferin, 08 de novembro, 18h.

Intervenção de Ana Paula Arendt.

Muito obrigada a todos por atenderem ao convite. Agradeço ao Dr. João Paulo Dias Pinheiro, aqui representando a Livraria Ferin, pela sua introdução. É uma honra estar lançando este meu sétimo livro neste lugar muito aprazível. Presto minha homenagem, deferência e agradecimento pela participação do ilustríssimo Senhor Presidente da Academia de Ciências e da Classe de Letras de Lisboa, o professor doutor Artur Anselmo de Oliveira Soares, filólogo, um docente que amou sua profissão, tendo já dado 400 aulas sobre Camões e preparado 400 aulas sobre Camões. Nao está aqui presente porque lamentavelmente sofreu um acidente, ao podar uma árvore em sua quinta e se recupera. De modo que, tendo ele manifestado interesse em seguir participando, daqui seguiremos para seu apartamento, onde daremos prosseguimento ao debate com sua entrevista. Ele doutorou-se na Sorbonne sobre o notável tema dos incunábulos, os livros de imprensa manual publicados antes de 1500; e sendo bibliófilo, mantém uma valiosa coleção sobre o Sigilismo, um tema em voga quando a Inquisição queimava e perseguia padres que não mantinham o sigilo da confissão. Ele também teve em mãos a primeira edição do livro Mensagem, de Fernando Pessoa, pelo que li. Agradeço também ao ilustre Fred Maia, poeta brasileiro, piauiense, muito celebrado no Brasil por outros poetas e músicos, como Chico Cézar, Zeca Baleiro, Alice Ruiz, os quais aproveitaram seus versos para letras que compõem hoje o cancioneiro brasileiro, cuja densidade poética o Professor Fernando Bezerra descreve como aplicada sobre um inconformismo estético e economia verbal, portanto fluente nas exigências da produção de uma linguagem moderna. E não posso deixar de notar a presença do Embaixador Gonçalo Mourão, meu saudoso Professor de linguagem diplomática, meu querido paraninfo, da turma de diplomatas Zilda Arns, que muito me emociona. Eu me recordo muito bem de suas palavras poéticas em seu discurso de formatura. Foi inesquecível, dizer que um diplomata tem de ser como a luz do sol que atravessa pela janela. A meu ver ele deveria estar nesta mesa.

Apresento-me também aos Senhores, eu sou a poeta brasileira Ana Paula Arendt, estou aqui em Lisboa lançando este ditirambo que vocês têm em mãos, « As veneráveis virtudes do homem ». É uma obra de 100 estrofes, inspirada num rito antigo romano que se denominava epitalâmio, um canto que precedia e era apresentado durante as bodas. Aproveitei a estrutura de rimas de Santa Rita Durão, que é um pouco mais curta que esta fórmula pela qual optei, que conta com um par a mais de dísticos no final. Depois de dois anos, então, da sua apresentação em um prêmio na Academia Paulista de Letras, conto que a editora Chiado foi a única que se animou a publicá-lo, para minha alegria, e por isso seu lançamento em Lisboa, e não apenas no Brasil.

Eu sou também editora da Revista Itapuan, uma publicação em português e francês, preparada nos momentos de lazer, que aqui divulgo e com a qual os presenteio, uma tentativa de estender as nossas fronteiras de poetas ibero-americanos até o mundo francófono. Imaginei que seria uma boa ideia criar uma ponte para o que abrange uma imensidão de ideias e discussões que, por sua vez, podem vir a alimentar e a inspirar a nossa produção poética em Portugal, no Brasil e na África, onde eu trabalho hoje. Estamos abertos a receber contribuições e textos de qualquer natureza para a próxima edição.

Não vamos esquecer que chamei mais um homem ilustre para partilhar deste contentamento, o Dr. Carlos Ascenso André, Professor de Letras do Departamento de Estudos Clássicos de Coimbra. Nós iniciamos contato quando o descobri como autor do livro “Caminhos do amor em Roma”, o qual li ser descrito pelo Professor Nuno Rodrigues, do Departamento de História da Universidade de Lisboa, como uma obra indispensável de estudo sobre cultura e mentalidades romanas, uma hermenêutica do texto de conotação amorosa e erótica de Catulo, Propércio, Tibulo, Horácio, Ovídio, Virgílio, que lhe permitiram elaborar um tratado de História do Amor e dos vários tipos de sentimentos a ele associados, como o «amor sereno», «amor sexual», «amor homossexual», «paixão», no ambiente sócio‐cultural romano do século I a.C. O Professor Carlos Ascenso envia saudações aos amigos, infelizmente apesar de ter retornado do continente asiático, para lá se viu forçado a retornar por um compromisso de viagem acadêmica. De modo que suas histórias guardadas sobre epitalâmios, ritos romanos e poesia terão de ficar para uma próxima oportunidade e contaremos apenas com sua presença em espírito.

Mas por que chamei os três ? Não para comentar meu livro, o que seria, é lógico, bem-vindo, e o que me tomaria ainda mais tempo para que eu possa agradecer aos Senhores, por terem acolhido junto a si essa vontade de tentar trazer algo diferente para o horizonte poético. Mas para propor uma conversa aberta e informal sobre os rumos da nossa poesia lusófona, sobre o futuro do nosso patrimônio poético e a sua necessária renovação. Sobre o futuro dos livros. Penso que meus amigos poetas e eu ouviremos com muita sede uma reflexão sobre esse assunto.

Temos que o Senhor Presidente e Professor Artur Anselmo é um repositório de um imenso estoque de valor sentimental e histórico de obras que são pilares da nossa literatura e poesia lusófona. Por outro lado, o poeta Fred Maia é uma liderança formuladora de políticas culturais de alto nível no Brasil, um criador de espaços confortáveis para a construção de nossa poesia contemporânea. Eu não diria que são respectivamente o passado nem o futuro, porque talvez nenhum poeta lusófono tenha conseguido se tornar mais atual que Camões e Fernando Pessoa ; e por outro lado, os poetas de vanguarda no Brasil claramente almejam fazer história, ser parte da eternidade de um passado. Fred poderá dizer melhor se isso é verdade ou não.

Eu li também, nas entrevistas, que o Professor Artur Anselmo disse se incomodar com haver muita gente com responsabilidades intelectuais e para quem o conhecimento científico parece limitar-se, unicamente, a um paradigma com todas as características do modelo positivista, ou até da física newtoniana, onde a matemática pode descrever, integralmente, o ser humano. Era uma entrevista sobre a relevância da política do desporto, mas eu imagino que seja um raciocínio muito verdadeiro e amplo, válido para os outros domínios. E o Fred Maia nos faz recordar que a poesia é um lugar de encontro : « Ler em silêncio/ ouvir tua voz/ poesia entre nós ». Andamos à pé, vivemos a vida difícil e ainda assim abominamos o dinheiro. De modo que imagino que temos paixões fulminantes em comum, as quais de algum modo fez nossos caminhos se cruzarem aqui neste lindo espaço da Ferin. Espero que esse diálogo prazeiroso do encontro cristalizado na poesia possa inspirar, além de nós, mesmos, também quem porventura venha a assistir o debate.

No conteúdo deste livro que apresento a vocês, o Veneráveis virtudes do homem, eu tentei incluir um pouco da angústia da realidade instantânea ao redor do indivíduo, a qual me parece estar na moda desde Shakespeare. O título é um convite a resgatar a dignidade do homem, inclui-lo no coração da poesia e de um lirismo feminino. O declínio da figura masculina vem sendo anunciado no movimento feminista já há algum anos, e os discursos dos avanços científicos reprodutivos parecem reivindicar uma igualdade literal, baseada numa inversibilidade completa de papéis sociais. Ainda assim, tendo obtido o respaldo da igualdade jurídica, as mulheres reclamam dos homens ; denunciam ser vítimas de uma realidade em tese equitativa, mas que na prática, é violenta e injusta. Incrivelmente elas não incluem, na equação do problema que levantam, o homem! Têm buscado soluções de autossuficiência, « empoderamento » e solidariedade feminina, sendo que nada disso exigiria uma exclusão do lado masculino. Pelo contrário, a desintegração do lado masculino apenas nos tem conduzido ao acúmulo acéfalo de funções, ao distanciamento do elemento mais fundamental para o prazer e o sentido da vida. Ainda que se diga que o amor não esteja na moda: estamos em um mundo no qual é impossível se desenvolver sozinho. Poderia se protestar que os poetas varões também contribuíram para diminuir a relevância do homem e elogiar a mulher : Milton descreve a fraqueza de Adão e a beleza e sensualidade de Eva. Se bem dizer que a culpa do homem não significa necessariamente diminui-lo, pelo contrário. Mas os épicos que os homens protagonizavam viraram coisa de época. Fato é que, embora a queda do paraíso siga sendo registrada, o declínio masculino não se comprovou: o homem permanece sendo responsabilizado. Segue sendo, portanto, indispensável! Sobretudo para salvaguardar a felicidade e a integridade das mulheres. São autores de uma magnífica saga de si mesmos. E raras vezes vi excluída a mulher do alvo de seus dilemas e romances. Por que não retribuir ?

Imaginei que poderiam gostar desse ponto de partida : a poesia que fazemos em português atribui respeito e orgulho a figura masculina com maior frequência que nas demais fonias ? Quando a poesia é feminina, como é visto o homem desde a perspectiva masculina? Corresponde a um retrato real, o homem para o qual a Florbela Espanca escreve, ou ela fantasiou demais a alma masculina que ela almejava sensibilizar ? Para mim, que tenho olhos de mulher, os homens das mulheres poetas são perfeitamente factíveis (qual é o masculino de « musa » ?). E confesso aos Senhores ter ficado decepcionada ao ler a obra de Geraldo Holanda Cavalcanti, um Embaixador que é também imortal da Academia Brasileira de Letras, autor de « A herança de Apolo », porque ele faz uma historiografia magnífica das musas e do seu papel precioso para a criação poética ao sabor de diversas épocas e contextos, mas não escreveu nenhuma linha sobre as características daqueles seres do sexo oposto que inspiraram os versos femininos. Mas pode ser que achem que isso não existe nem deva existir, um homem superior aos desgastes do mundo, que venha a ser alvo permanente de afeto, conquistado com poemas e declarações abertas de amor femininas. Talvez eu precise de um choque de realidade da parte de vocês.

Aliás, eu bem me recordo de algo que talvez possa ser curioso para os linguistas, e que possa complicar um pouco a resposta direta da parte dos Senhores. Na fonte máxima de que bebem os conservadores e tradicionalistas, o livro do Gênesis, Deus não criou o homem e a mulher, simplesmente ; ele criou o homem : macho e fêmea, à sua imagem e semelhança. Então, nessa fonte poética primitiva, notem que « homem » é uma definição e uma palavra que abarca dois gêneros. Em cada homem há um homem; mas também em cada mulher há um homem.

E adentrando então um pouco do discurso poético, afinal, um discurso que não é um discurso, mas uma verdade dita que ressona, eu fico em dúvida por onde deveria prosseguir e provocá-los. É necessário dizer o que é a poesia, antes do que é a poesia lusófona, para então pensar para qual rumo ela tem caminhado, se é que tem rumo algum? Tem pernas próprias, a criação poética ? Dizer rumo seria falar de movimentos, de aspectos similares, de tendências, de vanguardismos ? Mas como, se a poesia é por definição algo que escapa a definições, lugares, tempos ?

De modo que ofereço aqui apenas algumas impressões e muitas dúvidas de quem chegou muito recentemente ao mundo da poesia na qualidade de autora, e também porque entendo que exaurir o assunto seria coisa de muitos tomos. E espero poder contar com os subsídios fecundos da perspectiva de vocês sobre o assunto, sendo escritores e estudiosos de maior maturidade, também para decidir o meu próprio rumo.

Mencionei que considero o que os poetas andam fazendo em outros mundos além do lusófono, o que vêm desenvolvendo os franceses, pois talvez possa nos inspirar em nossa busca de rumos. A poesia na França não é só literatura, mas parece ter virado também, como na Itália e na Espanha, um domínio audiovisual. « O som é uma matéria, e como todas as matérias, ele tem os seus escultores » disse Yves Jaigu, um produtor audiovisual nacional francês, o autor de « A ciência defronte os confins do conhecimento ». Por outro lado diz o cineasta italiano Ermanno Olmi que, pelo contrário, « A poesia é uma verdade disponível a todos ». Temos ainda o Alejando Jodorowsky, nos perguntando « qual é o sentido da vida ? Ah, o cérebro faz as perguntas, mas é o coração que dá as respostas ». Ele nos arrebata com o seu filme « Poesia sem fim », aquela profusão de cores e de sensações indefiníveis. E recebi de um poeta francófono um trecho que estima ser do francês Yves Bonnefoy, no qual este poeta rumina de um modo mais pausado e delicioso que a poesia « (…) escapa da folha, sai de uma tela plana, o material gráfico, essa matéria pré-verbal conscientemente explorada, de um discurso extraído das fontes de sua imagem e de seu ruído, que podem conceder a uma poesia novas formas e novas razões de ser (aquelas de ser, notadamente, proferidas de outra maneira). Concentração aberta… Esforço de resistência à atração verbal, aos seus automatismos, forjada na profundidade oculta de toda linguagem… Contração excêntrica, como a de músculos profundos que mesmo pouco visíveis, compensam constantemente a atração terrestre e asseguram a personabilidade, a estatura desamarrada, móvel e o belo exterior. Por re-equilíbrio sensório-intelectual, uma poesia nos impede de tropeçar nas palavras. A poesia é o que abalou os ritos inconscientes do discurso interior constantemente proferidos e sofridos. »

Para ele a poesia é o inatingível, um choro, contorções de um ser cansado de ser. Parece que há no mundo francófono recente uma tendência a mergulhar em si mesmo e escavar essas pedras preciosas de relações que estabelecemos entre nós e o mundo, que vimos no Carlos Drummond de Andrade. E na nossa poesia lusófona hoje ? Também me parece que os poetas vivos, ao menos no Brasil, buscam encantar leitores produzindo uma poesia de experiência pessoal, ora num diálogo consigo mesmos, ora num diálogo com o mundo. Já outros cantam porque o instante existe, como dizia a Cecília Meireles, por não ser alegre nem ser triste… Ser poeta. Há ainda os conservadores da geração de 45, há os concretistas que são acusados de fazer uma poesia de sentido ditatorial, conforme alegou o mexicano Octavio Paz, ao traduzi-los ; há os poetas que recolhem do cancioneiro popular elementos autóctones e reivindicam os sentimentos universais, como João Cabral de Melo Neto. Eu li o português Herberto Helder, puro luxo imediato, o perfume de um Bukowski com doutorado. Manoel de Barros : é ou não o poeta mais recentemente vivo ? « A reta é uma curva que não sonha ». O Dr. João Paulo aqui nos traz um lindo poema sobre a Pedra filosofal, de António Gedeão... E Vinicius de Moraes alimentou a esperança de seus olhos verem um dia um olhar mendigo da poesia nos olhos das mulheres, com suas melodias e amizades inesquecíveis rodando o mundo para voltar onde se engendraram. E o angolano Agostinho Neto ? Adeus à hora da largada : « Minha mãe/ (todas as mais negras cujos filhos partiram)/ tu me ensinaste a esperar/ como esperaste nas horas difíceis./ Mas a vida/ matou em mim essa mística esperança/ Eu já não espero/ sou aquele por quem se espera »... E o magnífico, vulcânico Luís Serguilha, para mim o melhor poeta português vivo hoje, que mereceria um estudo à parte sobre o seu experimentalismo libertário e indômito, que evoca um sentido imediato nas suas expressões verborrágicas e elegantes, ele clama uma conversão à poesia !

O poeta necessariamente vira poesia ? Então refaço a pergunta para meus amigos. Para onde estão indo os poetas que hoje estão vivos e escrevem em língua portuguesa? Teço um comentário sobre a busca incessante em que nos metemos em expressões confabuladoras : os franceses nos alertam para o risco da hiper-consciência linguística, que vem proibindo o sentido ingênuo das palavras. A poesia como válvula de escape foi a tal modo desqualificada que o poeta Álvaro Alves de Faria em São Paulo lamenta que a poesia brasileira viva um tempo em que não se pode mais sentir: « É proibido sentir », ele protesta, enquanto o nosso vizinho, Pablo Neruda, segue repetindo palavras em sua pátria sonora, erguendo o riso da mulher como espada fresca.

Saramago tem poesia. Ariano Suassuna tem poesia. Clarice Lispector tem poesia. Ferreira Gullar é poesia. Quando eles escreviam nós já sabíamos disso, “como dois e dois são quatro,/ sei que a vida vale a pena. /Embora o pão seja caro, /e a liberdade, pequena. “

A Aurea Domenech, a meu ver uma excelente poeta viva brasileira, sobrinha neta do Salvador Dalí e representante do movimento artístico do hiper-realismo contemporâneo, publicou um trecho do Robert Frost muito bom. Compartilho com vocês : "É absurdo pensar que o único meio de saber se um poema é imortal seja aguardar que ele perdure. Quem sabe ler um bom poema deve poder dizer, no momento em que é por ele atingido, se recebeu ou não um golpe do qual nunca mais se curará. Significa isto que, a perenidade em Poesia - como no amor - aprende-se instantaneamente; não precisa de ser provada pelo tempo. A verdadeira prova de um poema não reside no fato de nunca o havermos esquecido, senão de apercebermo-nos imediatamente de que jamais poderemos esquecê-lo".

Quanto aos poetas vivos de verdade, que ainda carregam corpos, a poesia concretizada em seus corpos, para qual mistério eles escrevem para seguir existindo ? Estão indo para os festivais de Paraty e de Óbidos ? Qual é a poesia da qual não podemos nos curar e quais são os espaços que estamos criando para que a poesia circule, como o sangue precisa circular, para oxigenar os pensamentos coletivos, florescer do inconformismo? Os judeus, ao analisar seus textos mais sagrados, estudam minuciosamente a gemátria : o valor intrínseco que produz, por meio numérico, o efeito da palavra. E decorre toda a riqueza das demais palavras de uma só palavra, que corresponde ao Eterno, Adonai, a ser o que se é, o que nos recorda Fernando Pessoa.

Mas quem se aquieta com o que leu, e tenta fazer do seu conhecimento atual sobre o mundo um conhecimento permanente, acaba tentando impor aos outros essa visão e modelo de mundo na qual está estagnado, e temos então o dogmatismo que vem nos assolando. Sem dúvida que um valor e princípio de humanidade poderá se encontrar no cerne de uma crença imutável. Mas permanecer num discurso imutável sobre o valor que você quer defender é parte de uma abordagem que limita a humanidade e reduz a alma da pessoa ao material imediatamente disponível. Onde estão as pessoas de presença de espírito para nos inspirar? As memórias indizíveis, as memórias das quais não podemos nos curar..?

O Manoel de Barros escreve:

“A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.”

Eu ouvi esses e outros versos declamados na Brasília Super Radio FM, uma radio que era dirigida por uma física nuclear, a Lucia Garofalo… No dia em que Manoel de Barros faleceu ouvimos dele: "sou um sofredor moral/apenas faço coisas inúteis"... Como permanecer no mesmo modo de ver as coisas depois de ouvir seus poemas, ou acreditar que o modo como eu via a poesia antes é que deveria ser?

Essa estagnação a que me refiro, essa necessidade de assertivamente dizer que algo é assim, e não que parece ser assim, sem acatar a possibilidade de que não seja, sem indagar, sem incompletude, parece ter no fundo uma necessidade de impor-se ao mundo e não deixar nenhum arbítrio à outra pessoa. E se não deixarmos nenhum arbítrio para a pessoa com quem dialogamos, que arbítrio teremos nós mesmos? De onde vem essa necessidade? Por que impor algo à realidade? Mas se já é assim, por que então você precisa dizer? A realidade afinal não se impõe, ela existe.

Há uma ótima frase do Georges Braque, “a verdade existe, apenas as mentiras são inventadas”. De modo que me parece que a poesia não é um lugar de imposição da realidade, mas no qual o poeta estabelece a verdade que já existe nele. E talvez por isso a poesia seja mais necessária hoje do que nunca. E eu vejo que nas redes e grupos as pessoas caminham para impor modelos e padrões, sobretudo aqueles que querem proteger a contribuição de um colega ou outro que os sensibilizou, como se a poesia pudesse ser um nicho, uma categoria, um recurso territorial. A meu ver, uma coisa é a liberdade com que cada poeta conta para escrever sua poesia, estabelecer a verdade e transmitir o seu sentimento. Outra coisa é querer impor à realidade, que é algo muito complexo e inter-relacional, uma visão de mundo. É uma loucura. Vou dar um exemplo disso. Naturalmente do mundo anglo-saxão. Fiz contato com algumas editoras e disse: “tenho um manuscrito de poesia inédito”. E me responderam o seguinte: “não queremos, porque não publicamos poesia”. Ora essas. Se me dissessem que a minha poesia é ruim, eu aceitaria de bom grado e voltaria a trabalhar nela. Mas não! Nem leram e já recusaram: “não publicamos poesia de poetas vivos”. Mas os poetas mortos nunca estiveram vivos? E prosseguem: “não, apenas publicamos romances e contos”. A poesia não é mais parte da literatura?! Um livro de poema não é mais um livro? Que realidade desejam não apenas uma, mas várias editoras, impor aos autores e leitores, ao pressupor o que é a poesia apenas para exclui-la da literatura como algo de categoria inferior?

Pode ser que nem todo poeta vivo produza linhas dignas o tempo inteiro, ou um livro inteiro de linhas dignas de serem lidas, nem tenha ainda a personalidade da qual emana uma melodia essencial. Mas eu já encontrei lindíssimos versos por aí, em livros de início não tão atraentes. A poesia é o berço da lucidez, o berro do que não foi dito. Mas o entusiasmo vem sendo alvo de juízos de valores o tempo inteiro, condenado como ímpeto emocional, indesejável num mundo regido pela impessoalidade e objetividade, pela necessidade de redução do homem, como o Sr. Presidente Artur Anselmo bem colocou, a um objeto explicável. Não deveriam os editores garimpar e amar as composições de ouro que encontram, navegar meio à complexidade, incentivar que o poeta produzisse mais dessa riqueza inesgotável que compõe a nossa civilização? A Virginia Woolf publicou T. S. Eliot. Borges falava mal de Neruda. Foi pra ele um favor! E as cartas de amor subjacente entre Fernando Sabino e Clarice Lispector? Quantos editores são escritores hoje e como os escritores estão alimentando debates uns sobre os outros na lusofonia? Estão lendo uns aos outros? E a correspondência, na era do correio eletrônico? É esse o rumo no qual a poesia lusófona produzirá frutos saborosos ao paladar?

Aliás, creio que o Sr. Presidente poderá com muito melhor eloquência defender que, no início glorioso da atividade escrita, o que não era digno de se registrar em verso, não era digno de ser registrado. Essas imposições de formato que abominam versos vão sendo aceitas, sem ser questionadas, como se fossem algo normal, parte do cenário comercial e do ritmo da vida literária. Mas isso não é normal, odiar a poesia, ou desprezar algo que desperta os sentidos do corpo e o senso da alma. Descartar prontamente um livro de poemas como prontamente inferior a um romance policial, ou biografia? Talvez um livro de poemas diga muito mais sobre o poeta do que a biografia dele. Também pode ser bom, mas não intrinsecamente melhor que um poema. O que uma editora faz e a maneira como seleciona e apresenta os livros atinge e forma milhares de leitores. Forma a nossa cultura e eleva a expectativa do leitor do que é bom de ler. Eu vejo em Portugal um exemplo que contesta essa tendência, pois aqui se leva a poesia a sério, sobretudo nas políticas relacionadas a turismo e cultura. A poesia faz parte da cidade: os cafés contam a história dos poetas que sentaram ali e os livros que escreveram. Isso me pareceu algo digno de ser registrado. Pode-se tomar um café, comer um bolinho e ler um poema estampado na parede. Há leveza do devaneio e beleza da luminosidade que se retém no ar que se respira…

Qual é o rumo que tomaram os editores e poetas, e diante dessas restrições, quais os melhores rumos que um poeta hoje deve seguir? O Mallarmé, quando promovia reuniões e saraus em sua casa, às quais compareciam André Gide e Oscar Wilde para debater imoralismos, também buscava na poesia a explicação órfica da verdade e do mundo, a sua Grande Obra, havia um mistério a ser destilado, o sonho filosófico do poeta e escritor. A realidade era insuficiente. Será a poesia um caminho para buscar respostas sobre o funcionamento do mundo?

Não sei ainda para onde vai a poesia lusófona, nem se está estagnada, mas aqui nesta sala e neste momento que lemos e escrevemos estamos em movimento. Estamos girando a mais de mil quilômetros por hora ao redor do eixo da Terra. A mais de 100 mil quilômetros por hora ao redor do sol. Neste exato instante. E o sol, por sua vez também está rumando como um míssil nesta Via Láctea e a nossa galáxia também está se movendo, o universo todo expandindo, coisa que os cientistas nos contam para não nos assustarem dizendo que na verdade está explodindo, a população humana está se expandindo, a produção de tudo está se expandindo, ainda que paulatinamente, e se diversificando…

Depois deste encontro nós vamos entrar nas nossas casas, e amanhã vamos despertar, tomar o nosso café. Vamos olhar as mensagens no celular e no meio das notícias furiosas da política e do marasmo dos argumentos, vamos encontrar um poema, abrir o livro mais recente de um autor favorito? Haverá poesia para desentupir o nosso dia de coisas que não precisamos? Espero que sim. Espero encontrar nada menos que um verso que abra uma manhã de sol com sentido, um prazer que nos confira algum significado. Que seja como acordar e ver que a Terra gira sem nos tirar do lugar, saber que a vida nos espreita. Algo que renove o mundo.

Qual o poeta que dirá que os seus versos é que estão corretos? A poesia é um lugar tão lindo porque não é onde vamos submeter o outro, é um pedaço da liberdade com que o vemos. O lugar onde você descobre como criança haver algo ou alguém cuja existência ignorava. Eu me lembro que todo ano esperava um lançamento do Saramago. Havia a expectativa e ele nos atendia com uma história nova, com mistérios realistas que inventava para decifrar com quem lia, aos poucos, na poesia das entrelinhas. Tinha gosto de novidade!

A poesia lusófona tem que se expandir, o corpo humano e a cultura subsumem esses movimentos do universo, da natureza? O García Lorca está em toda parte em exposição, as pessoas analisam os versos e os trajetos dele para reler os versos... Neruda e Mistral, Vargas Llosa e Garcia Marquez, a prosa se expande com teor poético e realismo mágico, a curiosidade cava e cava mais fundo… Talvez os espanhóis cheguem à China, não pelo mar, mas agora cavando esses detalhes… O Professor Carlos Ascenso, aliás, já está por lá, também. Nós estaríamos expandindo a nossa poesia lusófona, não digo só geograficamente, mas a profundidade da sua leitura, com acréscimos de identidades que a enriquecem ? E quais seriam as consequências para a nossa identidade lusa expandir as fronteiras em que a nossa poesia é lida e compreendida?

Eu compartilho com vocês que encontrei restrições na liberdade com que como poeta deveria descrever e sentir o mundo. Acabei buscando um espaço seguro para a criação dos versos com um pseudônimo, retornando a esse mundo ritualístico, em que a poesia está diretamente ligada com as experiências humanas concretas, o nascimento, o casamento, a colheita, um dia de caça. As palavras que precisamos repetir e repetir, até que a criança durma. Não sei se disso saiu algo satisfatório para todo mundo que lê, mas foi um prazer para mim escrever e, por isso, valeu a pena. Será que nas raízes da linguagem rupestre, da arte como celebração, para registrar o que fizemos e recordar no dia seguinte o que fizemos e o que somos, poderíamos encontrar uma fonte de força para renovar e proteger nosso ímpeto criativo? Onde está o sublime? É uma dúvida para a qual gostaria de ouvir a opinião dos amigos aqui presentes.

A cultura clássica continua muito profícua fornecedora de imagens e de inspiração para a literatura no Brasil e suscitou a minha curiosidade. O livro que apresentei a vocês se passa em um cenário mítico, a Nova Roma, como apelidamos carinhosamente Brasília, por causa dos seus monumentos onipresentes. Incluí Baco, que é uma divindade ambígua, e a deusa da sabedoria flerta com a sua licenciosidade, mas acaba optando por um desfecho que inclua a moralidade do compromisso. Espero não tenha cometido muitos erros de conhecimentos frouxos na orbe divina. Eu li o excelente livro do acadêmico Vítor Aguiar Silva, “A lira dourada e a tuba canora”, em que ele nos conta a complexa genealogia de Baco, a divindade que encarna o conjunto de dificuldades e obstáculos que enfrentam os portugueses nos versos de Camões. Ele nos descreve Baco como “divindade tutelar do entusiasmo poético, da alegria vital, dos benefícios da civilização e da paz”, uma figura que na cultura romana, ao conquistar novas terras, confere um benefício civilizacional. E confesso que fiquei ponderando se não me animaria a produzir mais 900 estrofes para fazer uma transição entre esse planalto mítico do cultivo da vinha para os cenários de cenáculos e embates humanos. Mas a verdade é que Camões já fez isso melhor e de maneira mais universal.

No Brasil, o acadêmico Carlos Alberto Nunes já escreveu “Os Brasileidas”, um épico de muito maior grandeza de imagens e verso branco, e o próprio Santa Rita Durão já escreveu o “Caramuru”, a lenda de fundação do Brasil. A alma do Brasil de hoje sem dúvida deveria ser redescoberta, mas tenho dúvidas se essa seria uma missão possível e se uma vinha idílica isolada meio ao Planalto Central seria o ponto de partida, haja vista a que a cultura do vinho é muito mais característica das particularidades que conformam a identidade de Portugal. Afinal, qual seria a relação entre poesia e identidade de Estado hoje? Nossa língua, nossa Pátria…

E a poesia não é, afinal, também uma forma de conhecimento e de conhecer o mundo? Não é uma maneira de expandir os limites do pensamento e do sentimento pela expansão da linguagem que as palavras sozinhas não alcançam? Eu li na obra instintiva do Fred Maia aqui presente : « o pássaro voa do galho/a árvore vai junto/ num ato falho ». E se considerarmos ciências jurídicas um tipo de ciência, ele escreveu ainda : « a justiça é cega/ a injustiça cega ». O Antonio Damasio, que certamente tem mais credenciais do que eu para falar do assunto, nos conta em uma entrevista considerar que o melhor cientista de sua área de estudo de neurologia foi Shakespeare. Por que mesmo quando não se dispunha de instrumentos de medição ou aferição para a descoberta científica, ele teve o êxito de se valer de recursos linguísticos para tirar excelentes conclusões sobre o pensamento humano, que por sua vez, nos induzem a pensar.

E Professor Artur Anselmo, que dirige não só a Classe de Letras, mas também a Academia de Ciências, poderá com certeza falar melhor a respeito disso : será que não foram os versos de Pompeu e Petrarca, quando disseram que « navegar é preciso, viver não é preciso », que gravaram uma verdade na mente dos exploradores portugueses que vos trouxe ao Brasil ? E aqui tornamos os filhos dessa ideia. A razão mostra rumos para o mundo, mas a poesia os revela e os torna irresistíveis. Muito obrigada pelo prestígio de sua presença e pela atenção a esta leitura e devolvo a palavra a Dr. João Paulo, da Livraria Ferín.

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