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Caro colega


Wellington Müller Bujokas, paulista, é jornalista, diplomata e poeta brasileiro. Serviu nas Embaixadas do Brasil em Astana e em Moscou, onde promoveu, no setor cultural, a música clássica brasileira. Publicou, em 2012, o livro “Estudos”, pela Travessa dos Editores. Concluiu recentemente seu manuscrito "Canto Anaeróbico", ainda inédito.


Fotos: Nika Tyron

Arendt – Bujokas, a sua poesia é diferente de tudo que eu já li. O que são para você, os seus versos?

Müller Bujokas – Confesso que, para mim, definir o que são os meus versos meio que não faz sentido. Os versos são o que são (ainda que a gente sempre queira que eles sejam algo mais). Para mim, pelo menos, é um trabalho ambicioso, mesmo pretensioso, mas apenas o leitor pode julgar o quanto a pretensão é válida.

Agora, o quanto sejam diferentes também é questão a se colocar. Não há neles uma busca pela novidade, estritamente; há, sim, um gosto pela zona cinzenta, onde isso não é aquilo nem isto. Mas, ainda que provavelmente isso seja pouco importante para a fruição do meu trabalho, acho que os ecos de Drummond, Maiakóvski e Herberto Helder são bastante visíveis.

Arendt – Por que você escreve?

Müller Bujokas – Tendo a crer que é porque gosto de imprimir ao texto coisas caras para mim, a sinuosidade, a dubiedade dos sentidos, a vagueza etc. Gosto do aspecto musical e imagético da palavra, e a capacidade que esses elementos têm de expandir a força de um texto. Finalmente, sinto humanidade numa língua que se entende capaz de precisão e de imprecisão e vê utilidade em ambas. Tenho pânico dessa aceitação mecânica do texto conciso, das frases curtas e diretas, da linguagem denotativa, como se aprender a escrever se resumisse a aplicar fórmulas. Ainda que isso faça o texto mais fácil de produzir e compreensível, só o faz porque também limita as possibilidades de expressão e argumentação ao possível dentro de um formato preestabelecido. Ou seja, é difícil ir além dos clichês. E não sei o quanto uma certa imprecisão causada pelo esforço de exprimir é pior do que lugares comuns. O pensar a forma é importante para alcançar expressão e dar solução para os nossos problemas. Por isso generalizaria o bordão de Maiakóvski: sem forma (adequada) não há conteúdo (adequado). Não se trata nem de revolução!

"PAN-PAN PAN-PAN PAN-PAN

e chegamos ao teatro, sentamos, a música não começa,

mas o espetáculo é isso

é isso

é isto

uma prova de pragmatismo: o mundo torto

mas ninguém derruba.

Como prova de surdez,

uma prova de medo:

Acenda a luz!

Porque,

dentro do tempo, há um tempo

que merece o seu olhar atento.

Tento, tento, descortina,

e a noite ilumina os dias e as noites e o fim da infância.

Prezo o meu negror, preso ao mundo peso, peso, peso,

e as horas vão passando devagar,

como se eu não tivesse mais nada a alcançar.

O tempo parou!

Corre com as mãos, o nariz, as orelhas abanando de felicidade,

só olhos não bastam para sentir todas as rugas do mundo,

cerremo-los mesmo até doer; "

Um Canto Anaeróbico, 2017, manuscrito.

Arendt – O poema Sem Sombras é uma obra-prima. É bem melhor que o Poema Sujo, do Gullar. Onde você estava quando escreveu, e o que estava sentindo? Você pensa em prosseguir em algum de seus poemas já escritos?

Müller Bujokas – Quanto à pergunta, confesso que não lembro onde estava, nem exatamente o que me motivou a escrevê-lo. Lembro apenas que ressoou na cabeça um verso banal: “acenda a luz”, e aos poucos fui criando um sentido para ele. Talvez estivesse ainda em Astana quando o escrevi, pois ainda ecoavam na minha cabeça coisas que eu havia ouvido de um grande amigo que vivia então no Sri Lanka (a quem o poema é dedicado) e que visitei lá em 2012.


Quanto a prosseguir, não sei exatamente o que você tem em mente na questão. Posso apenas dizer que Um Canto Anaeróbico, o livro em que se encontra o Sem Sombras (e que espero logo publicar), me colocou num beco sem saídas. Atualmente, lembro muito do Donizete Galvão, um poeta que admiro muitíssimo, quando me disse que nunca sabia se ia conseguir escrever mais alguma coisa ao terminar um livro, ou se era o fim. Para eu seguir em frente, acho que o único caminho é me reinventar ou me repetir. Não sou um poeta que vive de limar, a vida toda, a ponta de uma espada para ver o quão mais fundo essa espada pode penetrar, gosto da amplitude e acho que o erro e a imperfeição nos protegem do descaminho. Aliás, por isso gosto de Drummond, Villa-Lobos e Glauber. Eles entendem que a expressão não depende necessariamente do acabamento.

Arendt – A sua poesia é de versos descontinuados, mas não fragmentados. Os versos curtos alongam o pensamento e a riqueza das composições inusitadas sempre causa o efeito de espanto, quando não, a êxtase de um sorriso. Você tem a medida profunda no verso, e ao mesmo tempo o êxito de atingir o leitor, sorrateiro feito um menino. Você pensa no leitor, quando escreve? Para quem você escreve?

Müller Bujokas – Como ficou implícito acima, tenho uma bandeira, ainda que seja meio amorfa, meio oportunista (o oportunismo, cada vez mais concluo, não me parece uma coisa assim ruim). O leitor é tudo (não escrevo por uma necessidade interna), mas só o é na medida em que eu possa oferecer algo a ele que é meu, preferencialmente sem concessões. Só confesso que, ao escrever Um Canto Anaeróbico, cedi na questão de formato e cor. Meu livro anterior, Estudos, teve uma diagramação muito difícil pelo seu formato menos convencional e, ao ver que não foi possível resolver bem todos os problemas, julguei que era já melhor pensar no formato final do novo trabalho (e mais uma vez confesso: por causa disso me senti castrado).

"as rugas na gente - o tempo passa, pois.

Não ignore o tempo (me lembro como uma fitinha vermelha no mindinho para lembrar o que

esquecerei enquanto ainda importa).

Acenda a luz, sim!

Lento os olhos se acostumam,

mesmo que a crueza seja muita, mesmo que a feiúra seja muita,

a beleza de enfrentar o mundo mudo só cor,

um mundo como estática, ao qual a gente não pertence, incompreender é um esforço,

é uma jogada arriscada do azar.

Ser só crueza, um instrumento de duas pontas com um fim único, trágico,

um arpão que faz fon fon é bem ridículo,

a crueldade é maior quando a gente não entende o limite

(de tudo, mas sobretudo do ridículo).

O limite começa na gente

e some no escuro.

Acenda a luz:

o sumiço é o fim da gente. "

Um Canto Anaeróbico, 2017, manuscrito.

Arendt – Você me contou que o seu livro é um pouco um retorno à adolescência, à infância. À liberdade da pureza, à verdade do pensamento. Quem lia os seus poemas, quando você começou a escrever?

Müller Bujokas – A adolescência nesse caso tem um outro sentido, bem menos idílico. É o da manha que surge da incapacidade de lidar com o mundo e com a própria poesia. A insegurança sobre as próprias capacidades. É um momento de crise, bastante soturno para mim. Estava com problemas de saúde e, ainda que não fossem me matar, acabaram com minha concentração e resiliência. Nessa hora, percebi, me infantilizei, uma coisa um pouco amarga para mim. Não é para menos que senti que podia retomar um poema de adolescência, A fábula de uma rosa e de um narciso, que julgava inevitavelmente perdido pela sua imaturidade. De repente me senti suficientemente imaturo para entendê-lo de novo. Como vê, isso não é exatamente um motivo de orgulho, de forma que pensei longamente se teria coragem de publicar minha fraqueza.

Arendt – Bujokas, que eventos, lugares e pessoas marcaram a sua vida profundamente até o momento?

Müller Bujokas – Sabe, eu sou de uma cidade minúscula, Barão de Antonina, no interior de São Paulo, onde as coisas acontecem devagar. As marcas, talvez por isso, também são deixadas devagar e progressivamente, como um chiclete ao avesso, que vai ganhando sabor. Eu não construo, remoo. Há vários eventos, lugares e, sobretudo, pessoas que me marcaram, mas me marcam dentro de uma estrutura maior. Escolher algumas dessas lembranças me pareceria falsear a minha lógica interna.

Arendt – Você gosta do Drummond. Eu gosto do Drummond. Todos gostam do Drummond. Que êxito do Drummond precisamos trazer para o coração duro dos homens, e o que é a poesia hoje, a seu ver? O que é, e o que deveria ser?

Müller Bujokas – Drummond é um exemplo impressionante do antiapologético, em sua dúvida doída e ruminante. E é também um exemplo de como se pode encontrar uma beleza luminosa nisso. Esse posicionamento e esse contraste me impactam muito forte. Pra mim, ele abriu, para os poetas brasileiros de hoje, um caminho e um buraco sem fundo à nossa frente. É uma pena que em outros países não se possa desfrutar na mesma medida do seu peso, pois atrás da aparente simplicidade, encontra-se um trabalho medonhamente difícil de ser traduzido, pois resvala fácil no prosaico.

"Não sejamos funestos nestes tempos mornos,

em que decidimos renhidamente não morrer (e assim seremos felizes,

ainda que inevitavelmente escrotos para tanto).

Tempos em que, parece, ricos e pobres, podemos empurrar com a barriga

pela quase certeza, em sobreviver

(os fracos que não o julgaram bastante visitam analistas),

e em que o peso da vida ficou no depósito, em casa,

para onde só voltaremos pela manhã (inevitavelmente deprimidos).

Talvez para o fim trágico ainda faltem tamanhos passos,

e evitar a queda, sua consequência seja dor indevida.

Se a questão da luz

não é impedir o desastre,

usufrui

(o que traz a luz

ou os chifres do alce se ramificando eternamente

em verde, azul, amarelo e vermelho,

um por vez ou todas ao mesmo tempo.

Não é sadismo de minha parte.

O mundo será melhor.)

Um Canto Anaeróbico, 2017, manuscrito.

Arendt – E quais outros poetas você admira hoje? Que composições são as suas favoritas? Qual o futuro do sonhador sagrado?

Müller Bujokas – Sabe, me vi agora numa situação estranha pensando em quem admiro hoje. Sempre fui um defensor dos dias presentes, mas, de repente, me vi só com nomes mortos na poesia. Talvez porque prestei atenção demais à música nos últimos anos. No exílio (em Astana e em Moscou), meio que a literatura perdeu parte do sentido, quem sabe porque me dediquei intensivamente ao russo e, nesse processo, descobri que as artes russas não me deixavam admirado como as de 100 anos atrás (eu era um passadista lá, coisa que nunca fui no Brasil). A música, por outro lado, é uma linguagem com a qual é mais fácil de transpor fronteiras. Mesmo que a Rússia não tenha hoje seus Mossolovs e Louriés, é mais fácil discutir a música contemporânea de outros lugares que a poesia de outros lugares.

Quando à poesia, gostaria muito de citar o Herberto Helder, o Ferreira Gullar, o Donizete Galvão, mas esses, tristemente, encerraram atividades recentemente. Nuno Ramos e Walter Gam me impressionam muito como autor (eles fazem o que eu não tenho capacidade de fazer), mas menos como leitor. Roberto Piva, Francisco Alvim e sobretudo o Quadragésimo de Horácio Costa me são bastante caros, mas sinto ainda como se faltasse um nome (teria algumas sugestões de leitura?). Ainda que minhas grandes paixões musicais, Villa-Lobos e Stefan Niculescu, estejam igualmente mortas, e recentemente tenhamos perdido nomes queridos, como Naná Vasconcellos, Almeida Prado, Gilberto Mendes e Pascal Bentoiu (que, a bem da verdade, não compunha desde 1989), continuo a me encantar com Octavian Nemescu, Doina Rotaru, Corneliu Dan Georgescu, Hermeto Paschoal, Yamandu Costa, Paulo Freire, Elza Soares, Little Teeth (sobretudo na primeira formação), Joanna Newsom, Toumani Diabaté, Oumou Sangaré, Rokia Traoré.

Arendt - Você não parece ser um poeta de um único tema. Há a expressão da dor do mundo, há a busca de um caminho, uma certa doçura de partilhar descobertas, de que o mundo é mais do que inicialmente se vê. Contudo há pouco na sua poesia diretamente sobre o amor. Há alguma relação intrínseca entre a poesia e o amor?

Müller Bujokas – Olha, para mim o tema está lá. Mas ele tem seu caminho próprio, não evidente. Se por amor entendemos um certo romantismo, um lirismo apaixonado, enfim, não vejo como encaixá-lo na proposta dos três livros que escrevi até agora e nem me sinto apto para isso. Sobre a relação intrínseca, acho que tudo está intimamente ligado à poesia, não? Por isso não sabemos o que ela é.



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