Biblioteca do Alma Historica, Montevideo.
O sobrenome da realidade
Ana Paula Arendt
De que é feito o sonho? Matéria e guardião da alma, estalido raro de aspiração do incerto, o vaso que colheu água de nuvem. O sonho é o sobrenome da realidade.
A gente ri e sonha nos sendeiros da memória côncava escorregam nas linhas o pensamento surgido entre o sono e o dia.
Compõem gesto livre de algo que foi melhor sonhado que vivido.
Juntam-se os muitos sonhos da gente como nuvem nua, aos poucos alongados na linha do horizonte do crepúsculo.
De um sonho vejo de cima, do alto, como a vida é feita de terra.
A gente sonha e quer que eu diga qual é o sonho deles. Sob as pálpebras palpitam os olhos, suspeitando partes do que viram antes e se acontecerá, não se sabe.
Mas pouco importa, porque a linha do sonho escapa, aceno tímido de um portal para a realidade vestida com os próprios olhos.
A gente tinha um sonho e então cada um regenera o seu amor dos anos, a fragrância da primeira viagem sozinho, se movendo dono de si e atrás do mundo; a voz estranha que apareceu numa conversa de primavera entre a espera e o fôlego.
As palavras que vieram organizadas conforme aguardávamos, mas não atingíamos.
Ficou para trás, o sonho? Desfez em água de chuva? Mas eu colhi a água da chuva em meu vaso, para ela evaporar mais uma vez e formar com o sonho dos outros de novo a nuvem.
Sigamos a instrução da alma, deixemos correr nela todo estado de astúcia com que os sonhos adoçam as palavras e curam os olhos.
Venham os sonhos que sem método algum removem pedras, a sua fórmula secreta com que sagram os dias, venham os sonhos da gente desarmar desânimos e fazer de nós um esplêndido espólio.
Ana Paula Arendt, Lousa verde da vida.