A hora dourada
- Ana Paula Arendt
- 19 de jun.
- 2 min de leitura

A hora dourada
Ana Paula Arendt
A hora dourada à espreita da memória diáfana dos sinos brancos, feita das velhas árvores e dos velhos arbustos acenando detrás da paisagem nebulosa, dos trabalhadores estivais, do barco balançando a onda que não quebra, dos jardins nas entradas das casas juntando vasos de barro e convites para entrar, do encontro das pessoas que passaram muito tempo mirando a mesma vista, assando a fogo lento a paisagem serena. O espelho da água reflete este mundo no outro mundo, nos mostra o mundo contido na contínua existência. Na hora dourada, a certeza suficiente para existir em todos os tempos, para permanecer, mesmo só, vivendo de si mesma. Uma borboleta amarela voa sobre a baía do mar: não há terra ao alcance de suas asas, mas mesmo assim ela não cessa. Chegará até à margem? Como encontrará suas iguais? Em nada disso ela pensa, simplesmente voa, compelida pela outra margem, por algo que é maior do que ela. A sua delicadeza não é interrompida pelos barcos apressados, o vento desvia e empurra suas asas levíssimas, irmãs da lua e das nuvens… Uma borboleta amarela na hora dourada, na hora em que a ela basta ser si mesma, guardando todas as ausências que se tornam presença ao ser lembradas, coisas que a empurram adiante… Por que voar tão longe? Também me empurra adiante a lembrança de terra, a lembrança de haver amado. O mar se encanta em ser o serviçal destes figos que caem do outro lado ao nosso, messe chamando à margem. Uma borboleta ora pensa como a flor, estando na flor; ora pensa como um pássaro, voando com os pássaros, sem ser devorada por eles. Ora o mesmo repouso em desabrochar da flor, sem murchar ao Sol… Ora o esforço infatigável do pássaro de atravessar um mar. E há flor que é um figo.... Enquanto no mundo houver tempo para uma borboleta amarela fazer a ponte entre uma montanha e outra, desabrochando as flores de meu peito, fazendo os figos caírem em meu colo, haverá tempo para que eu escreva sobre a beleza que o mundo nos empresta quando tomamos parte nele. O Sol de deuses, a noite e a névoa sobre o lago, as águias e os mastros, as luzes incandescentes, o fuste e o capitel da indústria devassada pelos fumos e vapores, cristais e lágrimas… Ah, tudo nos leva à hora dourada de hendíades e suprimentos, hora consonante, hora de gravar em mim a imagem de um dia em que eu me fui suficiente.
Comments