Arboretum
Ana Paula Arendt
Viajei dentro do ventre da Europa, lugar onde os labirintos nascem. O bosque balcânico de muitas espécimes fez crescer a violinista de vestido vaporoso e florido que abandonou a volúpia, entoando melodia de névoa e água, bosque da erva implorando chuva, do encontro entre a pedra e a nuvem: petricor. E o bosque estende as suas veias pelas ruas de Belgrado, peneiram o Sol ornando as vias, habitam as paredes de afrescos e relevos de pedra ao redor de onde o amor mora. E demora o meu rosto nessas vias de chumbo. Cidade com as paredes que têm a cor do jornal amanhecido, descascadas pela pólvora da guerra, o dartro. Mesmo assim terraços, varandas, balcões estão cheios de barba verde pendendo pelos parapeitos, gerânios vermelhos bem cuidados, vestidos vaporosos... A Europa se recobre de verde, quer esconder seus lugares íntimos que engendram vida. Aqui, nos Bálcãs, homens e mulheres cruas, a intimidade da Europa, dos homens brutais e acolhedores, aborrecidos pela modernidade que regula o tempo, libertados nos bares onde fumam porque todos fumam, onde se plantam rosas porque todos plantam rosas. Passam bondes vermelhos que me transportam ao começo do século passado. O mesmo cheiro de pedra sendo regada pela nuvem, o vapor de terra. Terra em que a cidade nasce, fazendo ciclo de estações. Alguns dizem que esse compasso fez continente, estudo, invenção, ordem, poesia, música, arte, o que atravessa dificuldades e demanda planejamento, o que sobrevive e renasce revestido de novos sensos, de poeira que a terra vai lançando e os homens e mulheres vão varrendo, insistentes, fazendo espaços, criando lugares, encontrando funções. No ritmo dos Bálcãs, o ser humano ainda é bicho ligado à terra e à caça, ao cultivo e contemplação dos rios e vales, feito do reuso de si mesmo, de aborrecimentos. Pousei no gosto adstringente da neve, do deslize do passo em falso, caroço no peito dos homens pulsando, gente se ajuntando em kafanas e bares apertados, calor humano que busca outro calor humano, estação que celebra a visita. Naufrágio de muitos dias me arrastou até estas costas, onde subi a nado o rio levando as coisas… Estação de inverno onde o bonde vermelho pára e recolhe mais gente. Gelado e prantivo, intocado, resfriado, indigente. Inverno, a caminhada em busca de um sentido, introspecção das árvores, recolhimento dos pássaros, sono das flores. Na próxima estação, pausa do antigo bonde vermelho, primavera, abertura dos brotos nos galhos das árvores, tudo verdejando em princípio, o Arboretum dizendo às vias que acordem as plantas. Tempo de tecer simultâneos os brotos, roseiral antigo respirando de novo, já não se oprime o peito da rosa, toca-se o botão donde sairão muitas pétalas de veludo, o aroma será exarado de novo, perfume de pólen… Finalmente o vento. Percepção de que as coisas mudam, mesmo na lentidão da natureza despertando para oferecer flor e fruto, no passar dos dias visíveis diante dos olhos. Os rostos também floridos, o desejo que está no íntimo guardado vem à tona, os amores que se reencontram, passeios de mãos dadas, a gente de novo frequentando a rua, as pernas cruzadas nos cafés vendo o movimento – continha então o inverno o princípio da primavera? Há sazão em transformar-se… Entretanto a primavera não termina, ela apenas experimenta a intensificação do Sol, o calor, a tempestade com relâmpagos ao longe, e chega o verão mais rápido do que antes. O verde limão luminoso das folhas ornando ao longo as vias, cortinas de galhos, telhado vicejando sobre o asfalto fumegante, ah, onde estão os bairros frescos, sem cimento? Quiseram os telhados de Belgrado ser também verdes, e paredes também tivessem ervas e flores crescendo para aliviar o impacto do concreto bochornal. O rosto queimado das pessoas seminuas, cobertas de algodão leve, cores neons, óculos escuros, mas onde está a praia? A praia é sonho da imaginação nas próximas férias, o mar não vem consolar o ser humano derretido entre os passeios que construiu sem brisa de vastidão. Mas o cheiro adocicado dos figos maduros secando na calçada, mais petricor e mais forte o seu cheiro, o sol a pino meio-dia, evaporando cheiro de pedras várias misturadas com o suor humano. A tempestade que chuta a água nas árvores e nos rostos, a violência das asserções que o Sol faz, a falta interminável de chuva alternando-se com o sol a pino em borrascas… Chegará o outono? A moderação do calor, o anúncio de aconchego que faz o frio, a queda vagarosa das folhas douradas sobre os meus cabelos? Chegará a minha estação favorita, promessa de ter sobrevivido ao ano, o mar de folhas secas, o anúncio do pôr-do-sol das estações, o momento entre o despertar e o sono, tempo da divagação, da fantasia, dos melhores frutos…? O Arboretum está frentilhando minhas coisas favoritas, a paixão tranquila de preparar a despedida, o ano renunciará e nos assumirá outro ano, e nesse tempo de consideração, a doce espera. Descer o morro das estações num passo fácil, colher o que a primavera e o verão produziram de mais astuto, catar a brisa que o frio começa a soprar, o refresco, o revestimento velho cedendo para brilhar de novo a noite e a neve. Mais petricor, mais coração de pedra exalado de água sobre o chão morno, e agora o petricor tem tons de laranja, dourado, cáqui, castanho e musgo, as castanhas gestando o tempo que trará canções de Natal. Ah, o outono, início da metade do ano que finaliza, descida da montanha, chegar do auge até o rio, saber que já passou tudo o que nos fazia desassossegar. Assossegamento. Sentar nos bancos dos parques, admirar a queda das folhas, o vento que as leva, saber o agasalho, a natureza moderando o seu temperamento. O anúncio dos cabelos brancos que faz o inverno na cidade. O outono é o tempo que sonha o poeta, de vir o que ainda me é desconhecido, o que imagino e suponho, ouvir repetição vindoura, de querer alguém para partilhar calor no inverno e o abraço de adeus do ano. Em Belgrado, outono é primavera no Brasil, tempo das flores máximas, dos ipês carregados de uma só cor, dos flamboyants em grupo e das muradas de azaleias. Aqui, as folhas molhadas e sonolência dos frutos guardados nas várias gavetas, potes de marmeladas e geleias estocadas, os cencenos de trigo todos colhidos, debulhados e prontos para ser armazenados. Armazenamento das memórias que vivemos ao longo de um ano, tempo de ordenar tudo que colhemos, ver cair das árvores o que lhes fez vida. Tempo de abertura para o que ainda não sei, transição entre o fresco e o antigo, obra de criação do tempo, o que desfolha e descobre a terra úmida, decisão das folhas que devem cair e do que permanece, caule, tronco, as coisas latentes que restarão mesmo adormecidas. E a estação em que o bonde vermelho me deixa, depois do outono: o futuro. Abrir-se para o desconhecido e esperar o melhor, sonhar algo novo do que ainda não se conhece, o futuro… Quisera imaginar um solstício em que a cidade dormiria e se transformaria. As cores pesadas de chumbo não seriam mais registro do recurso perdido. Viriam arbustos verdes sobre os telhados e paredes verdes de Belgrado para proteger do calor, cinco graus a menos, a verdura protegeria a parede concretada dos maus humores do Sol, isolante das provocações divisivas e afirmação de orgulho, não haveria mais calor que desencadeasse chumbo e guerra – verde que isolaria e abriria senso de futuro como um tempo vindouro de sorriso aberto. O futuro não seria mais a angústia da certeza da guerra: na cidade o fim da desesperança. Seria a Sérvia como vê sendo o Brasil, pura inocência da utopia, tempo que nunca vem, felicidade, sonho que lateja sempre nos olhos, quando se diz a palavra “futuro” com a boca mole. Abandono de si mesmo a um sonho de futuro, sem pretensão de que ele venha, para ser feliz já hoje. Viessem a estas plagas os que dissessem: seja o verde! Com danças de folclore, siriri, barco indígena e utopias desvairadas, para erguer o gusle no Balkan Jazz, melodias que elogiam os festivais, carnavais e os bares onde a briga morre, percorrer e sobrevoar na flauta os bosques e vales verdes da Sérvia…De volta ao outono, então, a matriz então de uma tranquila ternura, do olhar de melancolia, do anúncio de um suave descanso… Ser doce o trabalho a cada ano, de contagiar bosques instalando sobre o concreto as coisas verdes. Enfim de novo Belgrado em meu sonho, ressurgindo toda recoberta de verde, triunfo do arboretum, frescor que não se dissipa, árvores antigas com galhos bem podados que crivam o Sol, gramíneas guardando o coração de terra. Gente vindo de toda parte do mundo conhecer a Bela Sérvia, sua Cidade Verde, ver os prédios ser gigantes arbustos, o todo lugar onde os pássaros fazem ninhos. Petricor no ar, sensação de esfriar a pouca pedra. Coração agora da grama fresca, do capim molhado, da sede da terra. Uma planta faz crescer outra planta, e mais outra, irmãs semeando confrarias, os habitantes vizinhos… Lembrar de feitos juntos. O deixa-disso e ir fazer outra coisa, brotar o feminino nos homens, colher em si flores da ausência materna. Descansar a rosa graciosa para viver de novo, despertar satisfeita em nova primavera, plantar mais telhados cobertos de relva e as finas paredes verdes antes de ninar as melodias… Ver os bosques sobrevoados se prolongando nas vias dos homens.
Imagem: Arboretum de Belgrado.
Arboretum
Ana Paula Arendt
I travelled inside the womb of Europe, the place where labyrinths are born. The Balkan forest of many specimens grew the violinist in a vaporous and flowery dress who abandoned her voluptuousness, singing a melody of mist and water, a forest of grass begging for rain, of the encounter between stone and cloud: petrichor. And the forest extends its veins through the streets of Belgrade, greening trees filter the Sun decorating the streets, they inhabit the frescoed walls and stone reliefs around where love lives. And I spend my face plumbing those roads made of lead. City with walls that share the colour of yesterday’s newspapers, peeled away by the gunpowder of war, tetter… Even so, terraces, balconies, balconies are full of green beards hanging over the parapets, we find well-kept red geraniums, and vaporous dresses... Europe covers itself in green, it wants to hide its intimate places that engender life. Here, in the Balkans, raw men and women, the intimacy of Europe, of brutal and welcoming men, bored by the modernity that regulates time, men and women released in the bars where they smoke because everyone smokes, where roses are planted because everyone plants roses. Red trams pass by, transporting me to the beginning of the last century. The same smell of stone being watered by the cloud, the vapor of earth. Land where the city is born, making a cycle of seasons. Some say that this compass made a continent, study, invention, order, poetry, music, art, what goes through difficulties and demands planning, what survives and is reborn coated with new senses. And from having the dust the earth throws over men and women they sweep, insistent, making spaces, creating places, finding functions. In the rhythm of the Balkans, the human being is still an animal linked to the land and hunting, to cultivation and contemplation of rivers and valleys, made of the reuse of himself, of annoyances. I landed on the astringent taste of snow, the slip of a false step, lumps in men's chests pulsing, people gathering in kafanas and cramped bars, human warmth that seeks other human warmth, a season that celebrates the visit. A shipwreck that lasted many days dragged me to these shores, where I swam up the river carrying my things… Winter station where the red tram stops and picks up more people. Cold and weeping, untouched, cold, destitute. Winter, the walking in search of a meaning, introspection of trees, collection of birds, sleep of the flowers. Next season, pause of the old red tram, spring, opening of the buds on the tree branches, everything turning green in principle, the Arboretum telling the roads to wake up the plants. Time to weave the buds simultaneously, an old rose garden breathing again, the rose's chest is no longer oppressed, the bud is touched and from it many velvet petals will emerge, the aroma will be exhaled again, the perfume of pollen... Finally, the wind. Perception that things change, even in the slowness of nature waking up to offer flowers and fruit, as the days pass, visible before our eyes. The faces are also flowery, the desire that is hidden inside comes to the surface, the loves that are reunited, walks hand in hand, people once again frequenting the street, legs crossed in cafes watching the movement – did winter contain the beginning of spring? There is a point in transforming yourself... However, spring does not end, it only experiences the intensification of the Sun, the heat, the storm with lightning in the distance, and summer arrives faster than before. The luminous lime green of the leaves decorating the roads, curtains of branches, the roof thriving over the smoking asphalt, oh, where are the cool neighbourhoods, without cement? I wanted Belgrade's roofs to also be green, and walls to also have herbs and flowers growing to alleviate the impact of the scorching concrete. The burnt faces of half-naked people, covered in light cotton, neon colours, sunglasses, but where is the beach? The beach is a dream of the imagination for the next vacation, the sea does not come to console the human being melted between the walks he built without any breeze of vastness. But the sweet smell of ripe figs drying on the sidewalk, the more petrichor as stronger their smell, the sun at high noon, evaporating the scent of various stones mixed with human sweat. The storm fretting the water into the trees and into their faces, the violence of the assertions the Sun makes, the endless lack of rain alternating with the sun shining in squalls… Will autumn come? The moderation of the heat, the announcement of a comfort the cold weather makes, the slow fall of golden leaves on my hair. My favourite season will arrive, the promise of having survived the year, the sea of dry leaves, the announcement of the sunset of the seasons, the moment between awakening and sleep, time for digression, fantasy, the best fruits... The Arboretum is fronting my favourite things, the quiet passion of preparing to say goodbye, the year will relinquish and take over us another year, and in that time of consideration, the sweetness of each fruit awaits. Going down the hill of the seasons in an easy step, harvesting what spring and summer produced most astutely, catching the breeze as the cold begins to blow, the refreshment, the old coating giving way to shine again in the night a silent snow. More petrichor, more heart of stone exhaled with water on the warm ground, and now the petrichor has shades of orange, gold, khaki, brown and moss, the chestnuts gestating the time that will bring Christmas songs. Ah, autumn, the beginning of the half of the year that ends, descending the mountain, arriving from the peak to the river, knowing that everything that made us restless has passed. Resting pace. Sitting on park benches, admiring the falling leaves, the wind that carries them, considering what to wear, nature moderating your temperament. The announcement of grey hair makes winter in the city. Autumn is the time that the poet dreams of, of coming what is still unknown to me, of what I imagine and suppose of hearing future repetition, of wanting someone to share warmth in winter and give the year a goodbye kiss. In Belgrade, autumn is spring in Brazil, a time of maximum flowers, ipês full of a single colour, flamboyants in groups and walls of azaleas. Here, the wet leaves and drowsiness of the fruits stored in the various drawers, jars of marmalade and jellies stored, the wheat kernels all harvested, threshed and ready to be stored. Storage of the memories we experienced over the course of a year, time to organize everything we harvested, see what made them come to life, fall from the trees. Opening time for what I still don't know, transition between the fresh and the old, a work of creation of time, of what defoliates and uncovers the humid earth, decision of the leaves about what should fall and what should remain, stem, trunk, things latent that will remain dormant. And the station where the red tram leaves me, after autumn: the future. Opening yourself up to the unknown and hoping for the best, dreaming of something new that you don’t yet know, the future… I would like to imagine a solstice in which the city would sleep and transform itself. The heavy colours of lead would no longer register the lost resources. There would be green bushes on the green roofs and walls of Belgrade to protect us from the heat, five degrees less, the greenery would protect the concrete wall from the bad moods of the Sun, insulating from the divisive provocations and affirmation of pride, there would be no more heat that would trigger the colour of lead and war – green that would isolate and open up a sense of the future as a time to come with an open smile. The future would no longer be the anguish of the certainty of war: in all the city, the end of hopelessness. It would be Serbia as Serbia imagine Brazil to be, pure innocence of utopia, time that never comes, happiness, a dream that always throbs in the eyes, when the word “future” is spoken by the boneless mouth. Abandonment of oneself to a dream of the future, without necessarily expecting it to come true, to be happy now, and today. If there were people to come to these shores and say: be green! With folklore dances, siriri, indigenous boats and wild utopias, raising the spirits in Balkan Jazz, melodies that praise festivals, carnivals and bars where fights die down, travelling and flying over the forests and green valleys of Serbia on the flute… Returns to autumn, then, the matrix of a quiet tenderness, to the look of melancholy, of the announcement of a gentle rest... The work will be sweet each year, of seeding forests panels by installing green things on the concrete. Finally, Belgrade in my dream, reappearing all covered in green, a triumph of the arboretum, freshness that does not dissipate, ancient trees with well-pruned branches that sieve the Sun, grasses guarding the heart of earth. People coming from all over the world to see the Beautiful Serbia, its Green City, see the buildings being giant bushes, the place where birds nest. Petrichor in the air, a sensation of cooling air on the little stone. Heart now made of fresh grass, of wet grass, of the thirst of the earth. One plant grows another plant, and another, sisters sowing fraternities, neighbouring inhabitants… Remembering deeds together. Leaving a disturber alone and then going to do something else, to sprout the feminine in men, to pick flowers from the maternal absence in oneself… To rest the graceful rose and make her live again, to awake contentedly in a new spring, planting more grass-covered roofs and thin green walls before lulling the melodies... To see the forests we flown over extending into the paths of men.
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