o problema dos estetas
O problema dos estetas
Ana Paula Arendt*
Eu estou de férias. E o Itamaraty se esqueceu, por lapso que perdoei, de depositar o terço das minhas férias. Leitor: para poupá-lo do drama dos lapsos da poderosíssima e hipertrofiada estrutura da Administração, que me deposita férias a mais, quando estou sendo fustigada, e férias a menos, quando estou aberta às frugalidades do amor… Explico que apenas trago o assunto para contar por que, até o momento, tive de me contentar em não viajar a lugares novos nas proximidades. Eis a beleza da neve em Belgrado, pela janela da minha sala, os flocos suspensos como se estivessem vivos, procurando um trajeto para descer do céu à terra sem esbarrar em outro floco, de um modo tão singular e mágico… Do lado de dentro das janelas, o esposo digno que mereceu meus versos de amor profundo não apareceu ainda; e, por modestos 50 dólares, apenas esses dois amantes baratos toparam vir me entreter: Goethe e Rilke. Agora só me resta compartilhar com os Confrades esse benefício.
Explico convoquei Goethe e Rilke por efeito do livro Herança de Apolo, de Geraldo Holanda Cavalcante. Logicamente que qualquer poetisa, ao ouvir o doce nome de Apolo, presta alguma atenção, anseia alguma deferência. Nisto recordo os versos do poema “A minha vida está vivida”, de Sophia de Mello Breyner Andresen: “Se ainda busco o promontório de Sunion/É porque nele vejo a minha face despida/O mitológico mundo interior e exterior/ Da minha própria unidade perseguida…” Este livro de um embaixador aposentado já me fez vasculhar a cidade de Nîmes em busca do bendito Hotel no qual foram escritas as candentes Cartas para Lou. Nem o Google, nem nenhum morador sabia dizer, entretanto, onde ficava o lugar em que se apaixonou perdidamente Apollinaire.
Agora o livro de Apolo me fez ler Goethe e Rilke, por suas primeiras linhas, quando afirma assim: não haver maior defeito em um poeta do que ser analfabeto. Meu tio e grande poeta, Celso de Alencar, me leu em voz alta esta pérola. Em seguida, fechou o livro de Embaixador Geraldo Holanda Cavalcante, fazendo o estalo definitivo de uma obra espessa… Mirando em meus olhos, aguardando em silêncio minha reação: já leste os grandes poetas? Tenho amigos capazes de recitar Dante em italiano, de memória. Mas apesar de ter lido e sublinhado passagens de grandes autores… Não os tenho de cor, nem os guardo como um repertório no bolso. Mudei de assunto. O inquieto barão de Studart é outro cuja memória vem perturbar as metas de Macunaíma esplêndida, espalhando por aí inadvertidamente que eu já teria traduzido Goethe do alemão – como se a minha fluência pudesse algum dia alcançar isso. No fundo, a sabedoria de ambos – excetue-se meu tio, que entende o meu silêncio – parece se guiar por um senso estético: um senso de intelectualidade estabelecido pelo que se espera com base no que escreveram os grandes nomes que nos precederam.
E analfabeta que sou. Sinceramente duvido dessa sabedoria excludente! Para mim, um analfabeto pode guardar sentimentos ainda maiores que um letrado: e tanto mais indizíveis, tanto mais puros, quanto jamais transcritos. E quantos colegas tenho que são analfabetos! Neles, quando digo o que sentem, se produz um misto de uma vênia em êxtase com um terror de silêncio sepulcral. Neles prospera como a chama em palha seca uma angústia, uma ansiedade, um transtorno noturno de nunca haver sido seduzidos pelas palavras de uma mulher… Incêndio que se consome em nada e vira cinza em poucos minutos. O nosso confrade Padre Aleixo, s.j., aliás, elaborou um anteprojeto para corrigir o que ele afirma ser o único defeito da Constituição Cidadã: não permitir que analfabetos sejam eleitos. A proposta, a PEC 27/2010, teve o prazo expirado, já que nenhum parlamentar quis sair no noticiário por causa disso. Agora: sem o terço de férias, e sem meu eleito, só resta me alfabetizar. Vamos ler Goethe e Rilke, os poetas de longos raciocínios germânicos, para ser mais letrados.
E o que os dois autores consagrados pela língua alemã dizem de mais interessante? Eis as minhas impressões. Em defesa precisamente deste protesto, o próprio Rilke, nas Cartas para um Jovem Poeta, parece duvidar que o lastro de um poeta algum dia estará nos fatores de conhecimento externos:
“Você me pergunta se os seus versos são bons. Você me pergunta. E perguntou a outros antes disto. Enviou seus poemas a revistas. Você os compara com outros poemas, e fica incomodado quando alguns editores rejeitam seu trabalho. Agora, eu imploro (já que pediu meu conselho) que páre de fazer esse tipo de coisa. Você está procurando fora, e é isto que mais precisa evitar neste momento. Ninguém pode lhe dar nenhum conselho nem lhe ajudar – ninguém. Existe apenas uma coisa que você deve fazer. Vá dentro de si mesmo. Descubra a razão que comanda lhe escrever; verifique se ela espalhou suas raízes nas profundezas de seu coração; confesse a si mesmo se teria de morrer se fosse proibido de escrever” (Rilke, Carta de 17/02/1903).

Não que Rilke seja alguém consistente ou fiel a esse princípio. O austríaco começa dizendo que não se deve fazer crítica a poesia, porque isso leva ao desentendimento afortunado. Mas logo em seguida, sem incluir pelo menos algumas linhas antes de se esquecer do que havia dito, apela à crítica que deveria evitar, com uma falta de sensibilidade que surpreende.
Observem como ele rechaça a poesia do pobre jovem poeta, como se nada do que ele tivesse escrito pudesse ter algum valor ancorado no sentimento próprio, que ele tanto exalta:
“preciso lhe dizer que os seus versos não têm nenhum estilo próprio, embora… [ligeira concessão duvidosa]”; “Entretanto os [seus] poemas ainda não são nada em si mesmos, não são ainda independentes, mesmo o último [Minha Alma] e o poema para o Leopardi” (Rilke, op. cit.).
O leitor se recorda que um dos poemas mais famosos de Rilke é sobre um leopardo, e pode deduzir que o jovem poeta, admirador de Rilke, escreveu um poema derivativo, especialmente para ele. Em retorno à homenagem, nenhuma apreciação, mas o desprezo…
Eis o tipo de carta que eu jogaria no lixo, tivesse sido eu a destinatária; e pronto, nenhum outro poeta teria tido acesso a essa correspondência que hoje imortaliza Rilke. Por orgulho? Nada disso. Todo poeta, iniciante ou não, merece carinho e respeito às palavras, suas amigas, para não ver perecer os sentimentos que lhe animam. Por justiça. Dificilmente Rilke teria se dirigido a mim nestes termos, convenhamos: eu jamais duvidaria se os meus poemas são bons. Os meus poemas são o que são! Bons ou ruins: versos da lágrima de Jesus Cristo. E nisto as nossas confrarias lusófonas, sempre modestas, são bem mais civilizadas, em acolher e incentivar as novas obras, sem fazer juízo delas.
Ou Rilke se dirigiria do mesmo modo a um poeta mais consagrado que tivesse lhe enviado os mesmos poemas? Mas talvez eu não jogasse uma carta em que atiram desprezo à minha poesia no lixo. Esses tiros que nos matam, quando estamos olhando distraídos o celular… São tiros mortais que nos obrigam a reviver de outro modo. Talvez guardasse a carta: para chamar Goethe e perguntar o que ele acha do exercício de uma crítica bastante autorreferenciada. Observem o que Goethe acha disso:
“E assim as coisas acontecem: a fantasia do artista serve ao capricho do homem rico, o escritor de viagens fica boquiaberto, nossos estetas, chamados filósofos, sempre criando princípios e histórias da arte a partir do material dos contos de fadas, enquanto seus gênios malignos assassinam verdadeiros seres humanos no limiar da revelação. (…) Nenhuma dessas conclusões ascende ao reino da verdade, mas meramente flutuam na atmosfera do seu próprio sistema. Queres nos ensinar como devemos ser porque o que somos não se justifica dentro dos teus princípios.” (Goethe, Sobre Arquitetura Alemã, 1772).
É mesmo assim fora do nosso universo literário, como diz Goethe. Destoe um milímetro do que estão habituados a exigir e esperar pela identidade frágil forjada de uma repetição: já somos descartados. E temos de gastar energia reagindo a reclamações indevidas de quem não tem foro para juízo poético. Seguem as apelações na primeira instância, de liberdade; e na mais alta instância, do coração doído de poeta. Mas o crítico porventura nos acompanhou, em algum momento, nessa epopeia, para ver a acusação dele refutada? Os ignorantes precisam sempre sobrepujar e para isso é fundamental nada querer saber. E os poetas continuam a ter apenas os poetas… Os poetas de peitos vencidos.

Mas Rilke, mergulhado nesse mar poluído que o jovem poeta vai lhe entregando, carta por carta, em gesto de amor inabalável, traz um conselho ainda mais inacreditável:
“Não escreva poemas de amor; evita essas formas fáceis demais e ordinárias: elas são as mais difíceis de se trabalhar e toma um grande poder, plenamente maduro, criar algo individual em que as tradições, mesmo gloriosas, existam em abundância” (Rilke, op. cit.).
Imaginem se Fernando Pessoa tivesse seguido esse conselho de Rilke. Ou Camões…
No entanto, como diz o Apóstolo Paulo, não vamos descartar tudo, vamos aproveitar o que é bom: “Tome o seu destino sobre si mesmo, e leve-o consigo, o seu fardo e a sua grandeza, sem jamais perguntar qual recompensa poderá advir do que lhe é exterior” (Rilke, op. cit.).
Pois então, é deste lugar que a ilustre doutora Ana Kuzmanovic, linguista da Universidade de Belgrado, retirou o mesmo conselho que deu, há algumas semanas, à poeta Milica Spadijer e a mim, quando lhe contávamos as novidades dos nossos escritos. Bebericamos no Hotel Moskva, para conversar sobre o que faz boa a poesia. Um café no qual há pianistas se alternando 24 horas por dia, “point” da geração dos surrealistas – e lugar também outrora ornado por cadáveres enforcados, durante a II Guerra Mundial.
Passou por ali no café do Hotel Moskva também a diva e poeta sérvia N. Ž., assistente de Allan Gingsberg, amiga de Susan Sontag, Boby Dylan Andy Warhol, quando me chamou para afogar as mágoas de mais uma decepção amorosa: ele era gay. O que eu faria? Eu não beberia, N. Ž.. Eu pararia de beber. Então por que ele ficou se correspondendo, por que te convidou para encontros? Ora, N. Ž., os gays, mesmo gays, continuam sendo homens, e os homens gostam de conquistar para testar o valor próprio. Logo que conquistam não mais se interessam. Qual a solução? Não tem solução, N. Ž., a solução é ver nisso o lado bom dos homens, a boa natureza deles. O lado bom é que ele te fez sentir desejada nesses encontros. A família de N. Ž. enfrentou Stálin: ela é capaz de enfrentar, próxima de se tornar heptagenária, mais uma decepção amorosa. E levo N. Ž. nos ombros, para a casa da diretora da Faculdade de Artes: preparo uma sopa para a saideira dela.
Fiquei pensando enquanto cozinhava a sopa para a querida amiga, radicada em Paris, que de vez em quando aparece em Belgrado. Se eu deveria buscar saber o nome desse cara. Tive de controlar alguma coisa selvagem, no peito. Mas estou em missão diplomática. O fato é que o sujeito que defraudou N. Ž. não é o primeiro nem o último homem a brincar com os sentimentos de uma poeta. Mas eis que o problema da conquista também tem o seu lado estético, o que esvazia a conquista de qualquer valor ou substância. Os homens que assim procedem, com deslealdade, o fazem para ostentar, perante os seus pares, o que para eles é uma vitória, um sinal de maior valor próprio. Algumas instituições, pasmem, têm hierarquias baseadas nesse tipo de conduta fraudulenta. Qual o valor dessa conquista? Em tantos lugares as hierarquias estão fazendo se suceder por homens ridículos…
Mas além deste valioso achado, nas cartas de Rilke, de que o poeta deve escrever por amor, sem fazer preparo de prêmios, e sem a expectativa de obter uma conquista ou algo, digamos, equivalente a um prêmio... Ao menos ele neutraliza a acidez dos seus próprios comentários críticos: “obras de arte são de uma solidão infinita, e nenhum meio de abordá-las é mais inútil que a crítica” (Rilke, carta de 23/04/1903). Há uma certa sabedoria de vida em Rilke, ele envenena o jovem poeta em uma pequena quantidade para logo em seguida oferecer o antídoto.
Descontando essas contradições – não menos importantes, se afinal queremos alcançar a verdade – as cartas de Rilke são vastas. Pois nesta correspondência ele busca o mesmo que o jovem poeta: desvendar o mistério do que faz uma obra ser boa e admirável. Direto ao ponto: o que faz uma obra ser eterna, perdurando mais do que os poetas que as criaram. O milagre da criação: a criatura ser mais eterna do que o ser que a criou. É esse o sonho de todo artista, o que leva o poeta a amar? Ou é o amor que precisa ser eterno e, sendo eterno, faz uso das mãos do artista?
Goethe, em um dos seus ensaios sobre o valor da arquitetura alemã – elogio a Erwin, o arquiteto que teria construído a Catedral de Estrasburgo – busca explicar por que ele acha injusta a crítica a um trabalho leal à sua origem, ao seu estilo próprio, à graça germânica.
“Como nos trabalhos da eterna natureza, até o detalhe da mais pequena fibra, em cada sua forma, tudo serve ao todo. Quão leve este edifício imenso, firmemente embasado no chão, sobrevoa o ar, do mesmo modo que a filigrana é feita de todas as coisas, e mesmo assim contendo a eternidade! Eu devo à tua instrução, nobre gênio [Erwin], não mais ficar sarilhando inquieto enquanto eu confronto as tuas profundidades, devo a ti que minha alma tenha sido tocada pela calma deliciosa de um espírito que pode contemplar tal criação e dizer, como Deus disse: “e viu que tudo era bom””. (Goethe, op. cit).
Para Goethe a eternidade estava na natureza. A arte – neste caso, exemplificada pela arquitetura sacra – obteve êxito por imitar a atenção aos detalhes incorporando uma lógica unificadora das coisas. Ele prossegue:
“Esta arte característica é, na verdade, a única arte verdadeira. Se ela desabrocha de um sentimento sincero, unificado, original, autônomo, desinteressado, de fato desavisado de qualquer coisa extrânea a ela, então será um todo vivo, tenha ela nascido de uma selvageria bruta, ou de uma sensibilidade cultivada. Encontramos diversas variações disto em diferentes nações e indivíduos. Quanto mais a alma desenvolve um sentimento pela proporção, que sozinha é bonita e eterna, cuja harmonia fundamental podemos provar mas cujos mistérios apenas podemos sentir, na qual nela sozinha a vida do gênio divino dança melodias deliciosas… E quanto mais esta beleza penetra a mente de maneira que ambas parecem ter se originado como uma coisa só e quando a mente apenas pode ficar satisfeita com a beleza, e produz, então, nada além de beleza… Então mais afortunado é o artista, maior a sua glória, e ainda mais profundamente inclinamos as nossas cabeças diante dele, a ponto de adorar o ungido de Deus”. (Goethe, op. cit).
Poderíamos escrever muitos livros e obter debates longos, para muitas noitadas, destas profundidades em que mergulham Rilke e Goethe. O amor é eterno quando é desinteressado… Sempre soube disso. Quando o vi: Amor. Nada mais importa do que este sentimento sincero.
Ao estudar melhor a matéria, observo que, da Catedral de Estrasburgo de Erwin, ainda se diz foi inspirada no gótico francês rayonnant. Como entender então essa crítica de Goethe ao gótico e ao que é italiano, francês e estrangeiro, na sua defesa de uma arquitetura alemã supostamente original? Uma leitora desavisada apenas pode aproveitar os raciocínios dele que vão além da arquitetura, destilando o benefício que a arte proporciona em inspirar devoção e elevação espiritual nos fieis, boas missas.
Depois Goethe irá repetir esse raciocínio ao pensar implicitamente a beleza das mulheres, é o que me parece. O foco nos detalhes padronizados para ele também faz com que elas percam a real noção de beleza, a sua profundidade. Para ele a mulher precisa desfocar de seus esforços em conjugar destaque aos detalhes do que parece melhor nelas; e, depois de fazer amor, a mulher deve ficar sem fazer nada de útil. Para ele esse é o maior prêmio: ver os movimentos graciosos femininos, a doce permanência na satisfação, as coisas que uma mulher faz sem nenhum propósito. Um homem que sabe apreciar uma mulher não se encontra todo dia.
Tanto Rilke quanto Goethe, portanto, erguem o pensamento além dos detalhes e exigências típicas dos estetas para raciocinar o que faz uma obra proporcionar, em nós, um efeito permanente. A grande sonetista Aurea Domenech Bussons, sobrinha do Salvador Dalí, figura conhecida no Itamaraty – foi nossa oficial de chancelaria – certa vez afirmou algo nessa linha. Disse que um poema será bom se, depois de lê-lo, não pudermos esquecê-lo. Disso também vem a exaltação do sentimento ao experimentar a arte, a poesia: o que faz um poema eterno, uma palavra eterna, é um sentimento que não se pode esquecer. Carlos Drummond de Andrade a precedeu nisso, quando fala de um poema de amor que não pode ser destruído… Ideia que estimula a nossa criatividade e paixão.
Para Rilke, a permanência de um poema vem da nudez de si mesmo, perante si mesmo. Quando ele prossegue desfiando o assunto em suas cartas com o jovem poeta, exalta a espontaneidade daqueles poetas que assim procedem, ao escrever sobre sexo, inclusive. Sem filtrar a existência por meio de padrões externos, é preciso beber da fonte original de nossa existência, do nosso sentimento puro, para ser significativo: causar uma impressão nova e desvelar o que ainda não foi dito, o que ainda não se sabe.
Já para Goethe, o mistério é divino. O todo pré-existe com beleza inefável e a arte serve para nos elevar à visão que nos falta, para nos liberar de nosso desassossego. Ele se lastima que classifiquem a catedral que ele ama como uma obra gótica, ou sob qualquer movimento estético estrangeiro, para diminuir o seu valor, desafiando os professores de arquitetura a encontrar qualquer outra coisa construída com o mesmo estilo. Há muitas catedrais parecidas, a Saint Chapelle e Saint-Germain-des-Prés, por exemplo, e hoje encontramos em Estrasburgo as colunas que ele tanto critica nos italianos. Mas Goethe escreve de um modo tão intenso, tão sincero, e tão amoroso, como se não houvesse nenhuma outra catedral que pudesse proporcionar – ao menos a ele, e a quem estiver acompanhado dele – a mesma sublime experiência… E ele ainda sublinha o valor do arquiteto a ponto de buscar sua lápide, para depositar flores. O que Goethe nos ensina com isso não é um apuro na avaliação da construção e de seus traços singulares, nem uma demonstração das maiores virtudes da arte alemã sobre a francesa, ou italiana. O que ele ensina é o valor e o respeito devido a um artista compatriota, ainda que ele tenha vivido alguns séculos atrás; especialmente quando alguém critica uma obra que é bastante em destaque, que proporciona boas sensações e que carrega uma boa proporção de beleza.
Entretanto hoje, esses homens formidáveis – os meus amantes baratos – parecem esquecidos. Foi a impressão que tive ao ler o artigo de Laura Cumming publicada pelo jornal The Guardian no domingo, 2 de fevereiro. Para quem não leu: a crítica de arte inglesa ficou muito insatisfeita em não encontrar coleção que pudesse lhe inspirar familiaridade com nossa cultura brasileira na exposição “Brasil! Brasil!”, na Royal Academy of Arts, em Londres. O leitor imaginará que a curadoria tivesse escolhido artistas brasileiros contemporâneos desconhecidos; mas, não. A jornalista se aborrece em ver as obras de Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Portinari. Ela os denomina “arte fraca”… Escrevi uma carta aos amigos e à Royal Academy of Arts sobre este assunto em 6 de fevereiro, que devo partilhar no meu blogue. Agradeceram e distribuíram a todos os Membros da academia inglesa.
No caso da crítica da jornalista inglesa, amargurada em ver o Brasil retratado pelos artistas de maior renome, o esteticismo inócuo veio pelo caminho contrário: ela desmereceu o valor dos nossos pintores modernos mais significativos porque passaram longas temporadas em Paris e Berlim; porque tomaram parte nos movimentos artísticos que marcaram aquele tempo e não conseguiram reproduzir suas características. Não reconheceu nos detalhes das obras as cores e os elementos populares que integram a paisagem maior da cultura brasileira, ou nos rincões etnográficos, os quais certamente desconhece… No fundo, é o mesmo teor abrasivo da crítica que proíbe conteúdo e sentimento no caminho inverso, quando a obra não se insere em um movimento artístico; que busca diminuir o valor de algo por assimilar ou deixar de assimilar um padrão estético. Analisei sobretudo a reação dela à obra “Segunda classe”, em que Tarsila retrata excluídos, indigentes: a jornalista pareceu não suportar que a obra lhe despertasse sentimentos complexos. Ah! A arte não pode abordar a feiúra das circunstâncias da condição humana do povo, para produzir reflexão? Afirmou se arrependeu de ter visto a tela… Mas então se arrependeria de ter visto Guernica, e diria que essa obra não guarda nenhum valor?
Mas os exemplos são abundantes, tanto ostensivos quanto implícitos, de que vivemos desprecavidos, se não nos precavermos e resistirmos contra os éditos dos estetas. O lucro deles em cima do que decretam para depredar é imenso. As comparações de formas e o foco sobre detalhes inúteis que serão descartados como cansativos em poucas semanas estão, contudo, no vício do olhar do observador, quando este não se abre nem se busca em uma obra nada além do que outros lhe disseram deveria buscar. Para os estetas, não existe uma Pátria de sonho, que os artistas habitam, onde podem e devem criar e experimentar.
Essa terceirização da beleza, encontrada apenas na conjugação de padrões extremamente artificiais, ganha rapidamente contornos de recalque, malícia, crueldade, mesquinharia. Porque a função da crítica é depredar, como se isso auferisse ganho e mérito a quem critica… Mas se vê muito claro que as modelos, mesmo atendendo a todos os quesitos de uma sociedade estética, não são por causa disso mais felizes no amor. Ora, observem: uma babá de olhar carente com um filho no braço torna-se rapidamente mais atraente que o alto nível de exigência estética ao qual as modelos aderiram para se atribuir valor… E até a castidade das freiras, se tomarmos a virtude da castidade como capital de beleza, já levou Rupnik ao inferno, com a sanha acusatória, por tê-las saciado em algum momento. Como mulheres adultas, elas precisavam, como todo ser humano, se sentir desejadas; mas não queriam, nem podiam suportar o desejo expresso, desviando a natureza como pecado, fraqueza… Tiveram de acusá-lo para limpar a consciência do que julgam impertinente, e do que o clero e as famílias têm por imoral, após um voto de castidade religioso; mas ao mesmo tempo denunciam algo que é alimento necessário nas relações humanas, o desejo expresso.
Isto não significa defender abusos nem anular o direito das vítimas em reclamar contra abusos, quando elas tenham retirado o consentimento à manifestação do desejo; mas sem uma compreensão dessas mulheres sobre a própria condição em que se encontram, e sem acolher as necessidades humanas para estabelecer um convívio afetuoso e a urbanidade, não se realiza a boa-nova do Evangelho. Todo sistema acusatório que excomunga e exclui é uma perversão da boa-nova do Evangelho, que manda perdoar pecados, a fim de que possam ser superados; e não puni-los. O resultado desse esteticismo vulgar da castidade religiosa que acusa, numa plena contradição de seu propósito, é que o pecador permanece sob o jugo de seus pecados. E tanto pior um teólogo permaneça subjugado pelos seus pecados, quanto mais graves.
Esta semana se agrega um exemplo à estética do virtuosismo: uma moça correndo no calçadão, no Rio, filmando rapazes correndo sem camisa, juntou centenas de comentários de ódio, repercutindo que, se um homem tivesse feito o mesmo, seria assédio…. O rapaz filmado praticando esporte se entreteve com a graça dela, e se aproximou para fazer um convite às moças que se divertiam em filmá-los, o que as surpreendeu. Nisto a graça e a alegria da notícia, quando ela atende ao convite de praticar esporte, no mesmo momento. Mas os leitores apenas lançam comentários conturbados sobre algo que deixa a vida mais bela e divertida.
Esses padrões estéticos de exigências se estendem da arte às condutas, ignorando a felicidade do gozo, das paixões despretensiosas, dos elogios que a natureza providencia. Viciam o nosso olhar e nos impedem de contemplar a beleza do amor, do sentimento, da perfeição da vida meio ao caos e à escassez. Neste sentido a arte é uma expressão da vida, e o que ocorre na arte, se transpõe como referência. E é o aprofundamento nos sentimentos que estão detrás da arte nos ajudam a escapar da vulgaridade com que os estetas querem se elevar, por meio de padrões que eles determinam de um modo autoritário, para produzir juízos que dependem do dano a quem é julgado. Nem os puritanos se sentiriam à vontade com tantos pruridos, e por isso hoje talvez prospere e ressone com tanta facilidade a palavra “liberdade”. Observamos Rilke e o jovem poeta se correspondendo livremente sobre a obra de Richard Dehmel, libretista de Strauss e Mahler, sobre como a poesia deve abordar a expressão sexual. É difícil constatar que, nos primeiros anos do século XX, havia maior liberdade entre os homens que se fazem colegas, para falar sobre amor e sexo, temas importantes para a condição humana e para a poesia; e que, no início do século XXI, ainda não exista essa liberdade para as mulheres. Elas não terão se inserido plenamente nas relações humanas em meios profissionais e artísticos se não puderem vir a fazê-lo, com seus pares, sejam homens ou mulheres, superando a ignomínia dos estetas.

A arte que poderia ser arte hoje também sofre, porque entrega algo que os estetas reprimem. Verdade? Grandeza? Goethe e Rilke me fazem pensar que existem enormes estoques de amor, bondade e beleza represados nos altos níveis de nossa consideração. E a pressão que a natureza exerce para que esses estoques se derramem em um fluxo espontâneio, ininterrupto, do lugar em que o sentimento é abundante para o lugar mais ressecado, onde nada brota, e o chão recusa a água, é uma força grande. No entanto os estetas bloqueiam esse fluxo natural de conteúdo, com os seus juízos de araque. De plástico: posto que eles mesmos não se fazem belos, nem aportam uma conciliação que possa nutrir a alma e dar paz às contradições.
Eu penso que, quando um público perde o interesse em contemplar um sentimento ancorado na verdade, fazemos bem em buscar esses amantes baratos, os grandes homens, os espíritos que se deixam tocar e preencher pela beleza que um artista oferece de algo que nasce de seu peito. E eles são grandes homens por que não são excludentes: continuam convidando a partilhar o que veem e o que sentem de especial, ao se deparar com uma obra de arte que abriga o interlocutor no próprio seio.
“E tu, meu querido irmão nesta saga para encontrar a verdade e a beleza, tape os teus ouvidos a toda tagarelice pretensiosa sobre arte – e venha, aprecie, contemple! Cuidado para não profanar o nome do teu artista mais nobre e tenha pressa para ver seu magnífico trabalho. Se te sentes repelido, ou não sentes nada, então adeus, junte os teus cavalos e ponha-te a caminho de Paris! Mas eu me reuniria muito alegremente contigo, jovem digno, que permaneces aí tocado, incapaz de conciliar as contradições que vêm se embatendo dentro da tua alma, agora sentindo o poder irresistível do grande todo, no momento me chamando um sonhador por ver beleza onde vês apenas força e rudeza. Não deixe que um desentendimento nos separe. Não deixe que a doutrina afetada dos nossos estetizadores modernos te debilitem, de modo a não poder mais suportar o que é significativo, mas rude, a ponto de que a tua sensibilidade adoecida tolere apenas o que é polido, mas sem nenhum significado. Eles gostariam de fazer-te acreditar que as belas artes frutificaram de uma suposta inclinação nossa a embelezar, a refinar as coisas ao nosso redor. Isso não é verdade! Pois é o homem comum e o artesão que usam estas palavras apenas no senso em que elas poderiam ser verdadeiras – não o filósofo.” (Goethe, op. cit.).
Eis a solução contra os estetas, de Goethe e em que concorda Rilke: ser mais comum, ser artesão. A felicidade está em acolher a espontaneidade das formas de afeto e encontrar a beleza no real significado das palavras, na correspondência entre palavra, forma e significado: o que chamamos de arte.
Agora o leitor me perguntará qual a solução para o problema dos estetas, da constante insatisfação que, fazendo uma barreira, exige da beleza deformar-se e esvaziar-se de seu aporte de conteúdo, fazendo perder a eternidade e a permanência de uma obra, do sentimento que ela contém. Qual a solução para alcançar o patamar de uma arte, poesia e literatura mundial, de que Goethe nos fala, que transpõe as fronteiras? (Goethe, Literatura Mundial, 1827, disponível em Goethe, Volume 3: Essays on Art and Literature, edited by John Gearey, Princeton: Princeton University Press, 1994, pp. 224-228. https://doi.org/10.1515/9780691187174-010). Este não é um problema tão distinto de encontrar o valor da obra.
O problema dos estetas é resolvido ao não se deixar consumir pelo vórtex deles, pela tenacidade do artista em permanecer dedicado ao que lhe compraz, a progredir na definição dos problemas e na busca de soluções em que trabalha. Goethe sugere que a boa literatura nacional será uma boa literatura mundial na medida em que for útil.
“O mundo de mum modo geral, não importa o quão vasto seja, é apenas uma pátria expandida e irá na verdade produzir um interesse em nada maior do que a nossa terra nativa. O que tem apelo junto à multidão irá se espalhar indefinidamente e, como já podemos ver hoje, será bem recebido em todas as partes do mundo, enquanto o que é sério e verdadeiramente substantivo permanecerá menos exitoso. Entretanto, estes que têm se devotado a esforços mais altos e mais frutíferos se tornarão conhecidos de um modo mais fácil e mais íntimo. Em toda parte do mundo existem homens preocupados com o que já foi alcançado e, valendo-se disto como base, vêm trabalhando para o verdadeiro progresso da humanidade. Mas o rumo que eles tomam e o ritmo em que eles operam não é do gosto de todo mundo. Os membros da sociedade de maior força querem se mover mais rápido, e entretanto assim rejeitam e impedem o avanço de justamente aquilo que poderia ajudá-los em seus avanços. Aqueles de caráter sério, portanto, devem formar um silêncio, quase uma congregação secreta, porquanto seria fútil se opor às poderosas correntes do dia. Mas eles devem manter a posição deles com tenacidade, até que a tempestade tenha passado. Estes homens encontrarão seu principal consolo e até mesmo um encorajamento definitivo no fato de que o que é verdadeiro é, ao mesmo tempo, útil. Uma vez que eles tenham descoberto esta conexão e puderem demonstrá-la convincentemente, não falharão em ter um forte impacto, e muito mais do que isso, pelos anos que hão de vir. (…) As pessoas já não podem viver como gostariam, sossegadas, contentes com moderação e livres de pressões. O mundo está num tamanho estado de turbulência que cada indivíduo se encontra sob o perigo de ser sugado por um vórtex. Para satisfazer as suas próprias necessidades, ele se acha compelido a atender diretamente e prontamente as necessidades dos outros. (…) O fenômeno que eu chamo de literatura mundial virá sobretudo quando as disputas dentro de uma nação vierem a ser resolvidas pelas opiniões e juízos de outras (…) dando-se conta de necessidades intelectuais que eram previamente desconhecidas. O resultado é um senso de boa vontade. Ao invés de se isolar, como antes, o estado mental [dessas nações] se desenvolveu em um desejo de ser incluídas no livre intercâmbio de ideias. A poesia é cosmopolita, e quanto mais interessante, mais demonstra a sua própria nacionalidade”. (Goethe, Literatura Mundial, 1827).
A perspectiva de Goethe sobre a emergência de uma literatura mundial, no futuro, é muito interessante, pois atrela o valor das obras artísticas, em particular o da literatura e da poesia, à utilidade que essas obras têm por dar solução a disputas que surgem nas relações entre países. A diplomacia, nesta hipótese, funde-se ao sentimento poético.
De fato, quando se olha para a obra de Saint John-Perse, de Tagore, de Herman Hesse ou de Ivo Andric, é muito difícil separar o valor do que eles produziram da realidade na qual eles estiveram imersos, depurando as agruras da realidade para extrair disso uma substância palatável, aventureira e prazeirosa que transpôs fronteiras e nos fez concidadãos. O encanto da natureza em Sophia de Mello Breyner Andresen, o misticismo de Rilke e a arquitetura de Goethe, a espontaneidade de Walt Whitman… As linhas de valor universal crescem nos lugares em que são semeadas e vão produzindo um fruto de concórdia, de restabelecimento do bom senso e de compreensões mais humanas.… A boa literatura, a boa poesia, alcança os recônditos onde guardamos as coisas que sentimos, mas não foram ditas. Até mesmo os mais modernos, como Joyce e Clarice Lispector, ecoam um protesto contra a conformidade, contra a mesmice, causando desconforto com a lente magnificadora de seus próprios dilemas. Hemingway e Brecht constróem personalidade e propósito dos conflitos bélicos. Nietzche e Saramago fazem humanidade do pessimismo, ou dos excessos de uma pretensão construtiva da sociedade.
O que se tornou eterno neles? Foi o mergulho em si mesmos, que Rilke sugere, a utilidade, de que Goethe nos fala? Eles planejaram isso na obra? Foi um amor profundo que os moveu e forneceu lenha para manter a caldeira da criatividade? O fato é que os autores que mais amamos superaram a plasticidade dos estetas, talvez não pela ambição, mas pelo gosto saboroso de produzir uma obra em busca de saciedade para o próprio espírito. A boa arte é fruto, então, do egoísmo esvaziado de si mesmo, busca dos tesouros que partilhamos em nosso íntimo, baú de histórias que possam nos reverberar e ser úteis às gerações seguintes?
No fundo, Rilke e Goethe, nestes textos em que refletem sobre o valor da arte e da literatura, pouco teorizam sobre o que realmente dá força a uma ideia ou sentimento projetados em certas formas artísticas. A verdade é que é um grande mistério como se produzem obras de arte atemporais que fazem calar os muitos ruídos nos quais estamos imersos, que nos cativam ofertando singularidades que encontramos também nas nossas vidas. No fundo das melhores obras, encontramos a voz do autor nos contando, como um amigo, de tudo que ninguém nos fala.
Rematar a realidade caótica dentro de um edifício que nos guarda, nossa obra, sem dispersar o pensamento ou diminuir o sentimento que se guarda no peito… O sonho da poesia eficaz, que diz o que quer dizer, que faz sentir o que o poeta sente…
Observem que a sabedoria de dois grandes autores em buscar algo além do que nos ditam e oprimem os estetas foi deliciosa, mas não nos trouxe a lugar nenhum. A poesia continua sendo o mesmo mistério mágico dos flocos de neve, que vão flutuando com tamanha leveza, encontrando incontáveis caminhos para não esbarrar uns nos outros, flutuando graciosamente da nuvem até se unir aos telhados, aos galhos das árvores, aos meus cabelos, e vitrificar de brilho e alvura o chão… Sabemos que os flocos de neve não são eternos, bastará um pouco de temperatura e faltará a umidade, virá um pouco de Sol, e já terão se desfeito. O voo da neve é tão singular e rápido, como o mar, repetindo as ondas que jamais são exatamente iguais. Assim como o som da chuva que Octavio Paz nos fez ouvir em um poema de amor. O amor também o império do sucessivo e singular e imprevisto. Mas algo na neve, no mar, na chuva, no amor, permanece, algo disto nos sacia, guardamos e continua sendo dito.
* Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata brasileira.
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