Cidade maravilhosa
Ana Paula Arendt*
Lugar onde a onda anda. A rua Rainha Elizabeth fica no Rio de Janeiro, onde as nuvens baixas rodeiam o maciço de pedra negra que se ergue escorrendo uma seiva branca de nostalgia, furos e veios do tempo. É uma cidade feita de morros rebentando ao redor das praias, morros de rocha cravando o caminho que a água percorreu muitas vezes. Pedra negra que a chuva acaricia, espessa e coberta de pteridófitas, bromélias e líquens: cresce erguida acima das nuvens, faz muro nas ruas, vizinha dos prédios, sua flora e fauna estampam estofados. Acima das nuvens Cristo contempla a graça visível nos homens, seus desafios de estender legado contra a chuva, vencendo a vegetação, a areia, a tragédia. Os nomes que os índios deram ainda estão contornando os nomes de santas imagens barrocas, a igrejinha erguida com reboco de Brasil colonial, os tons pasteis e verdes imperiais harmoniosos contornados em branco, os acordes do violão deprimido, triste, choro de samba que argumenta que a mágoa fez a vida mais bela.... No Rio, meus filhos são crianças e são felizes… E apenas de lembrar, devo aguardar uma semana para desembargar minhas palavras, retomar teus idílios em mim e te escrever. Há elegância nas fachadas amarelas ornadas de gesso branco, estuques de coisas europeias, fachada quando se pousa no Rio. Abro a janela do avião para deslizar minha mão na água de mar, lá fora a água do mar reflete as curvas imensas, o traço de natureza é maior do que a memória, o cheiro de bosque, de revista nova aberta. Há verde, há flores, há os azuis espelhados na água, há pedra negra pincelada de vestígios brancos do tempo. A cidade que recebeu mulheres célebres, as que lhe roubaram a cena: Brigitte Bardot, Rainha Elizabeth e Janis Joplin desfilaram ali. Para cada mulher poderosa, ergam uma nova garota sem nome, de Ipanema. Os nomes delas fazem lugares onde as pessoas passeiam. Celebridades passaram pelo Rio de Janeiro e retornaram às suas vidas; vidas onde aquela cidade não tem mais importância alguma. Rio, cavalgaram-te pela noite as estrelas. Foi um momento de abertura da praia a viver o tempo cheio de vazios, a invasão da natureza no movimento do homem, a despeito. Mas o Rio de Janeiro não se esqueceu delas, e mesmo sem correspondência, quis devorá-las, ainda orna a paisagem com ruas que as homenageiam. O Rio vai tornando mais caros os imóveis nas ruas onde as estrelas passam. Sem o sonho do amor: se dedica ao consolo do dinheiro. Mas os cipós nas travessas do Jardim Botânico são a minha imagem favorita, impressa na brisa que alivia meu rosto… O Corcovado dá a sensação de que, para caminhar no Rio, é preciso se deslocar também verticalmente. O olhar se eleva e a lagoa o repousa. Dali meus olhos se erguem para ver o que vê o Cristo. No Rio há tempo… Há coisas velhas que nos trazem para ontem. Desgastadas, já não nos oferecem o que tínhamos, mas sussurram coisas doces para encher os ouvidos de memória, de vontade de ser pessoa amada. O beneplácito divino. Coopera de um modo singular com o mundo, existindo, o Rio de Janeiro. As orações que ali criaram raízes estendem os galhos suaves sobre o rosto, a sombra e a brisa quente do mar. O que se esconde no coração e aflora, sim, de novo o desejo de ser feliz. A rua do Ouvidor, escura e cinzenta de esquecimento, onde transitei enamorada, em busca de docerias e palomas… Na rua 7 de setembro, onde passa a linha do trem, o Rio não me fez decepcionada, cavernas noturnas, masmorras com fontes vindas da Itália onde o verso ressona sendo uma taça de cristal, ah, teu olhar, tuas palavras, meteoro, tudo que eu quis dito sem remorso nas minhas e nas tuas coisas. Afluíram ali os grandes países, os mais poderosos, para se desvencilhar de todo poder, para se despir dos rituais cabalísticos e contemplar a vida, saborear novidades, canibalizar-se. Eu amo o Rio de Janeiro, rio das curvas, do glamour entrosado, cidade que faz coisas velhas se tornarem valiosas, capital deixada para trás. É como eu, também, deixada para trás, cheia de violência, se debatendo sem saber por quê, cheia de água salgada no rosto, deitada sobre as saliências do que ainda não esqueceu. Felizmente esta cidade é protegida pela Redenção da culpa que não se tem, obra da Princesa Isabel, Isabel, Elizabeth, Santa Maria, Santa Madalena, das mulheres que, na solidão das contingências, entregam-se ao dia de amanhã, percorrem as maiores distâncias, decidem as coisas sozinhas, pensam consigo, permanecem um território virgem, abrem-se para o mar... Ocultas nas vias construídas, ah, mulheres, mulheres no Rio de Janeiro, bailando para ser vistas, homens que desejam ser mulheres e homens abertos, graças ao Cristo de braços abertos, fuga pelo Arpoador. E por todo meu sofrimento embevecido que me distancia dos grandes sucessos, jamais um carioca ousou olhar nos meus olhos, nem tocar em meus braços. Eles não têm tempo, na cidade que fez o tempo. Sendo os gostos tão estritos e concentrados em ser autores dos parâmetros, também virei mulher só de olhar, por se trazer diferente… O meu templo é o Real Gabinete, é a Biblioteca Nacional? No Real Gabinete, se olhares para o alto, querem dizer sou melhor que todas as outras, desde que retirando-me o nome, para não fazer ciúmes. Na Biblioteca Nacional, se olhares na estante, eu sou apenas mais uma. Mas não foi o Rio que me fez assim: é maior o conforto de não ser agreste, nem guisada, nem atenta ao mínimo, sacrifício conveniente para permanecer na cidade que é o holofote. Meu templo no Rio seja cada boteco! A bossa nova, a liberdade na Lapa, a tua comida deliciosa… Ganhar carinho de um produtor de TV machucado pelo fim do êxito – enxugar a sua testa, de que te serviu o êxito…? Fugir de Santa Teresa e das grandes lotações onde a esperança é roubada... Ver o mar sem fim desde o Rio de Janeiro, certamente o melhor mar do mundo, lugar onde a onda é leve, lugar onde a onda anda. Suavidade. Andar no calçadão com estampa de onda ouvindo as ondas de mar no Rio de Janeiro… O som das palmeiras brilhosas, eco do continente alongado, reentrâncias entre os meus pés e a areia, ver corpo e semblante dos homens desejados. Esticar as pernas na praia, comer a porcaria do biscoito globo e dizer que é ótimo, porque o Rio realmente faz tudo ficar ótimo. As missas solenes em Copacabana, as simpatias e novenas em Nossa Senhora da Glória, fitinhas de Deus jurando serás feliz, o velho largo do Machado, Capelinha Mayrink erguida, o Cristo seráfico de São Francisco, o Largo do Boticário escondendo as grandes damas pianistas do Rio de Janeiro... Fé de Vinicius. A minha pobreza… Lugar onde nasceram e donde fugiram tantos príncipes. Todos os fieis são teólogos, cariocas que me ensinaram a rezar o anti-provincianismo, a debochar das regras que não servem. O fim de meu abismo… E ao pobre estrangeiro acreditando nos formulários e pareceres, suando tostado, tentando descobrir o Brasil…? Me disseram ser compadecida, pois também já fui estrangeira, quando me esqueci que és Rio, de ruas fumegantes, de amor de Pixinguinha, que és também feito das mesmas coisas pronunciadas, canções de limagem... Queria ser uma orquídea florida debaixo de tua garoa, entre os cipós, perto da rua Maria Angélica, tomar café na padaria ao lado do pastel chinês, ver as vitrines chiques até a feira de rua em frente ao Olympe, olhar o menu daquele restaurante sempre fechado, tomar um carro debaixo de chuva ouvindo samba triste e levar uma hora para ir até a Barra, ali onde o Sol descerra, abrir as cortinas daquelas paredes verdes ostentando pedra, mergulhar meus olhos na janela flutuando sobre a água entre palmeiras e a mata depois de São Conrado, ouvir piano das grandes damas, deixar de ficar brava na praia do Pepê, sentar na cadeira do Barão, tirar o pó dos livros e mapas dele, desfrutar a sopa Leão Veloso, malhar na Ilha das Cobras, fazer mais de mil de mim mesma... Ser jibóia no jaborandi. Tudo que eu quero, o Rio me dá. Tudo que eu sou, o Rio conhece. Tudo que eu faço, o Rio aplaude… Toda mensagem, o Rio responde. Entre o Rio e eu: um conluio para sempre. Amanhã virá me visitar em cheio, virá me amar, cheirar e acariciar as mechas de meus cabelos, diz o Rio, mas não vem o amanhã. E me encho de saudade, fico cheia de ternura. Como consegue, o Rio? O Rio, saudade que me faz rir. Lugar onde quer nascer todo violão. Convida-me, Rio, para gozar em tuas praias, ganhar o mundo, crescer a melodia, beijar, beijar a lua branca no vapor de mar, ser louca por ti, girar de braços abertos, dançar nas vias, me esconder nos túneis, habitar na serração dos teus bosques, ordenar que se perfilem os coqueiros no caminho onde passou o pássaro que chora, chora demasiado e celebra por tudo isto. De Ipanema, ver o arco-íris. O anti-sertão. Abundância de histórias, pluralidade de destinos, encaixes bem pensados. Cidade maravilhosa.
* Ana Paula Arendt, pseudônimo literário de R. P. Alencar, cientista política, poeta e diplomata brasileira.
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