Como defender o Brasil e Einstein?
Ana Paula Arendt
É lógico que para mim é difícil não fazer essa pergunta, ao ler os diversos artigos nos quais se revisita a experiência de Einstein no Brasil. Fui muito fã do trabalho desse físico alemão radicado na Suíça, quando eu era dada a querer compreender as formulações e avanços da ciência nessa área. Qual criança nunca se fascinou com a ideia de alterar o transcurso do tempo? Estudei apenas a teoria da relatividade especial, a geral para mim sempre me pareceu um mistério, agregar o tempo ao espaço nos cálculos… Tinha dúvidas desse artifício. E usando um relógio atômico, ou de quartzo, ao invés de um relógio de luz, faria diferença, a medição do tempo? Nenhum cientista brasileiro me respondeu isso, ainda. Naquela época, se dizia que mesmo sendo modesto, o esforço de entender era apreciável, já que haveria apenas seis ou sete pessoas no mundo capazes de entender as teorias de Einstein.
Pois de novo a viagem no tempo, mas de volta à década de 1930. Li o artigo excelente de Julia Moióli, publicado no Tilt UOL, em São Paulo, em 06/08/2023, “Afinal, Albert Einstein detonou mesmo o Brasil quando visitou o país?”; o texto “A visita de Einstein ao Brasil”, publicado em 09/10/2012, por Urariano Mota, no blog da BoiTempo; e também alguns mais antigos, relacionados a César Lattes, quando afirmou Einstein seria uma fraude, ao jornal Diário do Povo, em 5 de julho de 1996. São textos muito bons para buscar entender melhor por que o Brasil ainda se arrasta para fazer parte do conjunto de nações que celebram e premiam as grandes descobertas científicas.
Eu não sou uma especialista na biografia nem na obra de Einstein, naturalmente, apenas uma curiosa. Mas preservar a curiosidade tem suas vantagens. Quem deseja tirar uma conclusão definitiva sobre a relação de Einstein com o Brasil arrisca-se tropeçar na sede de vanglória, girar ao redor de uma celebridade… Parece-me importante não saber demasiado, nem achar que se sabe o suficiente. Procurar entender para entender melhor.
Mas o artigo de Urariano Mota, convenhamos, ainda que sem espaço para contradição, é muito instrutivo, e consegue analisar muito bem todos os problemas da nossa sociedade que podem ter feito o cientista alemão reclamar da sua estada. Ele recorda que não havia, entre os organizadores da visita, físicos ou matemáticos, narra os encontros de Einstein com figurões que apenas desejavam aparecer ao seu lado ou dizer que o haviam conhecido pessoalmente. Ora, não haveria estudiosos nem especialistas no Brasil interessados em encontrar Einstein? Certamente que sim, mas se não foram incluídos na organização, talvez se saiba o motivo. O nosso atraso científico, é o que ele dá a entender. Para mim, é difícil acreditar que, tendo Einstein visitado a Academia Brasileira de Ciências, não se tenha produzido disso algum diálogo ou desdobramento favorável ao desenvolvimento da ciência no Brasil. Suponho que antes de tirar uma conclusão seria necessário pesquisar os anais e arquivos da Academia. O problema é que não havia institutos de pesquisa dedicados à física moderna no Brasil, em 1925. Os professores Alfredo Tiomno Tolmasquim e Ildeu de Castro Moreira, entretanto, sugerem no artigo “Um manuscrito de Einstein no Brasil”, publicado na Ciência Hoje, (vol. 21, no 124, setembro/outubro de 1996), da SBPC, que o cientista teria preparado uma comunicação especialmente para a Academia Brasileira de Ciências com a finalidade de despertar o interesse em desenvolver essa área de pesquisa. É difícil acreditar que a visita não tenha alcançado esse propósito. Neste sentido, esses dois autores, cientistas, reportam na pesquisa deles:
“Antes, durante e depois da estada de Einstein, vários artigos foram publicados nos jornais sobre a teoria da relatividade, alguns contrários a ela. Na ABC, o debate estendeu-se por várias sessões. A disputa surgiu depois da apresentação de um artigo de Licínio Cardoso, intitulado Relatividade Imaginária, publicado em O Jornal no dia 16 de maio. Vários acadêmicos defenderam as idéias de Einstein e, algumas semanas mais tarde, Roberto Marinho de Azevedo apresentou o artigo Resposta a algumas objeções feitas entre nós contra a Teoria da Relatividade.”
A jornalista Julia Moióli nos recorda, sem embargo, de que a visita à ABC foi apenas um dos eventos de sua agenda e que houve um grande bafafá, por causa da presença de muitos leigos que nada entendiam de seu trabalho científico. E parece correto não resumir a estadia do físico alemão apenas aos eventos ensejados na comunidade científica. Resultou em que Einstein, em seus escritos, se referisse a toda essa chusma de oportunistas poderosos como “macacos”… Alguns recentemente denunciaram nisso racismo científico, e talvez a fama tivesse subido à cabeça de Einstein, depois de ganhar o Nobel. Mas no artigo de Julia Moióli, a jornalista capta bem o que ele queria dizer com isso: “tolos”. Referia-se às autoridades que não tinham interesse em sua pesquisa e, ainda assim, queriam debater com Einstein. E Moióli então lista também os elogios que Einstein fez ao Brasil, uma abordagem que me pareceu bem equilibrada, porque recorda o que não se menciona quando se deseja finalizar na controvérsia, e não encontrar a verdade.
Agora, por mais que Einstein tivesse elogiado o Brasil, além de criticado nosso País, isso não remedia os defeitos que ainda nos incomodam: os traços de como a nossa elite intelectual está organizada. Urariano descreve em cores fortes, chega ao ápice do roteiro do pastelão que ele descreve daquela visita quando adentra a conferência que Einstein teve com Pontes de Miranda, um “jurista” famoso, escalado para falar com Einstein porque falava alemão….Urariano não sabe, provavelmente: Pontes de Miranda seria supostamente também um matemático. Mas, convenhamos: Urariano mesmo assim não errou. Era ridículo, sim, como hoje ainda seria ridículo, que um jurista brasileiro famoso, ainda que matemático, e ainda que estivesse em seus 33 anos, viesse a querer refutar uma teoria avançada da física - uma teoria especialmente invejável por sua simplicidade de fórmulas - durante uma palestra a um público leigo, sem nenhum conhecimento de física, discorrendo sobre suas implicações metafísicas… E não por meio de trabalho científico publicado e revisado pelos pares… Elnstein escolheu escrever um bilhetinho, não se sabe ao certo se a Pontes de Miranda, ou a um jornalista, ou a ambos. Que foi no Brasil justamente a teoria da relatividade provada, com as observações astronômicas… Talvez o resultado disso não fosse vergonha alheia, mas notar como se buscava ventilar na mídia e dar destaque ao assunto.
O autor que nos fez relembrar, no blog da Boitempo, dessas cenas pitorescas, faz para nós uma importante afirmação: “Os tipos e personagens brasileiros continuam vivos, com uma sobrevivência além da lógica, arqueológica, deveríamos dizer.” Efetivamente, se buscarmos, encontraremos no portal Consultor Jurídico a homenagem a Pontes de Miranda, “Pontes de Miranda teve encontro histórico com Albert Einstein e ousou criticá-lo”, publicado em 15/12/2021; e também no JusBrasil, “Pontes de Miranda: Um Autor muito citado, porém pouco conhecido”, publicado há cinco anos… E não cessam até hoje homenagens ao jurista. Até mesmo o atual Ministro do STF, Edson Fachin, ainda reputa o encontro com Einstein como fato de prestígio na vida de Pontes de Miranda. Neste ponto, Voltaire já dizia: “É perigoso estar certo sobre questões nas quais homens credenciados estão errados.” ("il est dangereux d’avoir raison dans des choses où des hommes accrédités ont tort", "Du siècle de Louis XIV”). E se afirma então que Pontes de Miranda era membro do “Instituto Max Planck”. Max Planck, instituto de Física Quântica? Esqueceram-se apenas de completar: Instituto Max Planck de Direito Comparado… Calma! Quem sou eu para criticar? Olha que eu sou membro da Sociedade Brasileira de Física, mas também não tenho ainda diploma em Física… Quando a ciência é por amor, tudo bem, é um amor e ponto.
Mas será que precisamos continuar credenciando o erro? Sim, encontramos notícia de que Einstein e Pontes de Miranda mantiveram correspondência, mas notem por favor o conteúdo: “Eu havia criticado sua afirmação sobre o encurvamento do espaço, dizendo que um cientista como ele não deveria descer a afirmações de causas”, diz Pontes de Miranda. Nossa. Então era por causa da grandeza da personalidade de Einstein que o encurvamento do espaço estava errado? Prossegue o jurista brasileiro: “Einstein, através da Legação da Suíça, pediu o desenvolvimento dessa tese. Eu a desenvolvi em alemão, pedi cópia para ele, que me aconselhou a remetê-la ao congresso de filosofia que se reunia em Viena, em 1924. Remeti a tese em francês. Certo dia, recebo carta avisando-me que o Brasil não tinha reputação. Mandei essa carta a Einstein. Tempos depois eu me surpreendi com a aprovação do estudo, que foi transcrito e depois impresso nos anais do congresso”. Neste ponto o leitor e a leitora devem fazer uma pausa para pensar por que Einstein estava intercedendo e se empenhando para que fosse publicado um artigo contra sua teoria, suponho.
Enfim, mas a vida e rotina que produz pesquisas e desenvolve ideias que fazem avançar a ciência presumem o respeito mútuo e amizade entre os pares, anos de trabalhos de laboratório e matemático, seminários, conferências específicas, projetos de pesquisa, embates, sim, mas num contexto de diálogo… Essa rotina do mundo real onde as descobertas são feitas ficou em patente contraste com a rotina brasileira baseada em gestos de solenidade e deferência, de alimentação às vaidades, durante a visita de Einstein, e mesmo na comunicação de Pontes de Miranda. Afinal, o artigo de Pontes de Miranda ganhou o favor de Einstein trazendo uma bajulação: “um cientista como ele não deveria descer a afirmações de causas”… Einstein talvez soubesse que a oposição mal-fundamentada a uma tese certamente produziria mais frutos para difusão de seu trabalho do que a concordância. Talvez tivesse acolhido a atenção e interesse do jovem jurista de um país tão distante como uma apreciação que merecia um gesto de amizade. Afinal, havendo tantos que duvidaram das teorias de Einstein, Pontes de Miranda poderia ter buscado desenvolver seus questionamentos junto a uma comunidade de especialistas, a sério. Mas não parecia ser esse o objetivo dele.
E quem não ama um sonhador, falando da realidade metafísica de uma teoria incompreensível no Brasil? Existe até mesmo quem seja elevado ao cargo de Ministro de Estado, falando de “meta-política”, ou quem se eleja deputado, alegando que moral não teria nada a ver com política, para fazer remexer Agostinho, Tomás de Aquino, Aristóteles e o interesse dos cidadãos em seus túmulos.
Para endossar, desenvolver, criticar ou refutar, matemáticos e físicos brasileiros bem poderiam ter desenvolvido trabalhos em parceria com suas contrapartes em centros de estudo no exterior. Mas ficamos com a impressão de Urariano, de que, naquela ocasião, as comitivas brasileiras, durante a visita de Einstein preferiram permanecer no século XIX, seguir a teoria do medalhão que desenvolveu Machado de Assis. Para quem não se lembra desse conto que merece ser lido, nele se ironiza a estratégia de aparências para ser respeitado e ouvido, algo de que a alta sociedade carioca se valia nos detalhes mais desnecessários e implausíveis. Naquela visita estava a ocasião de estabelecer amizade e vínculos de longo prazo com um relevante cientista de enorme reputação e de amplos contatos. Mas ainda falta divulgar quais foram as perguntas, as visitas programadas, as propostas apresentadas… A visita de Einstein tristemente ainda consta em muitos lugares como um conto de fadas no qual intelectuais brasileiros e seus descendentes fazem um banho de imersão, fazendo desfilar prestígio. E ficamos a ver navios, os que suspiram há de haver algum registro de um desdobramento favorável, mesmo que não se tenha uma pesquisa ainda sobre os efeitos de sua visita.
Mas como esperar que sobrasse gente para fazer o trabalho de divulgação e conexão científica, naquele tempo? Até hoje, no século XXI, as perguntas são algo suspeito em salas de aula, pois há sempre um ou dois alunos, de vinte a quarenta, que prestam atenção às aulas, geralmente insultados pelos demais e excluídos. As perguntas são oportunidade para quem ouve a palestra de também palestrar, sem ter sido convidado, e citar seus contatos - e o contexto raramente serve para remeter a alguma dificuldade que precisa ser solucionada. Nas salas de aula, as respostas são piores ainda: raramente dialogam com as perguntas, e querem encerrar as perguntas, como se fossem um incômodo, e não precisamente o que desenvolve o aprendizado da matéria, ou leva a novas questões. E eu bem me recordo que, quando alguém insistia, acaso fosse a pergunta difícil de se responder, o professor passava a ignorar, ou a se aborrecer com o aluno e marcá-lo nas provas…
Se não acreditam, ou acham que isso foi há muito tempo: numa das melhores escolas de Brasília, frequentada então também pelos filhos do então Ministro da Educação, minha filha teve seu trabalho recusado, porque o apresentou em escrita cursiva… Era alfabetização, pré-escola: e a professora exigira que o trabalho estivesse em caixa alta, porque os demais alunos ainda estavam, aos seis anos, nesse menor nível… Minha filha chegou em casa chorando, frustrada comigo e envergonhada, porque eu havia lhe garantido que a professora naturalmente aceitaria… Depois nunca mais pediu meus conselhos para suas atividades acadêmicas: o que também festejei, ora, desde os seis anos, eis aí a sua autonomia intelectual forjada no fogo brutal da ignorância. Mas logicamente que retirei minha filha daquela escola escrotíssima, frequentada ainda pela elite do Lago Sul, em Brasília. Tristemente para mim, mas talvez para sorte dela, acabou indo prosseguir formação em outro país, onde pode entregar trabalhos sem tantas exigências de formato, e onde hoje tem aulas com um vencedor do Prêmio Nobel.
Ora, também a ABNT virou hoje em dia, em tantos lugares, o grande critério de qualidade dos escritos científicos no Brasil, e isso me pasma. Lembro de um artigo que submeti no qual citava uma frase dita em sala de aula por um excelente magistrado e professor de Direito. Mas note bem, frase da qual não dependia a tese do artigo, não se relacionava com os dados, nem com o seu desenvolvimento - um acréscimo e floreio para fazer interessante a leitura, porque resumia bem o problema. Pois no crivo editorial, afirmaram que eu não poderia citá-lo no texto, sem incluir a citação em formato ABNT… Bom. Coisa que já fizeram incontáveis vezes os mais reputados cientistas e juristas nas mais diversas revistas, citando Cícero, ou Horácio… Então a solução para continuar a creditá-lo pela bela e oportuna frase, e publicar o artigo, seria sensacional: publicar a frase dele em um outro artigo, novo, em meu blogue; para citar então a frase dele registrada em meu novo artigo de blogue no artigo submetido, com ABNT, nas referências bibliográficas do meu próprio artigo. O conteúdo, a tese em si apresentada, os dados coletados e as evidências, nada disso analisado nem comentado pelo corpo editorial. Dá para acreditar? No Brasil, dá.
Portanto, se bem não houvesse naquele tempo centros de pesquisa ou laboratórios que pudessem ensejar a compreensão de sua pesquisa apresentada aos cientistas brasileiros, não parece surpreendente, ao menos para um brasileiro, que os professores Tolmasquim e Ildeu tenham relatado que "Não existem registros de perguntas feitas a Einstein referentes ao conteúdo de sua apresentação [na recepção na Academia Brasileira de Ciências] ." Os cientistas da época preferiram mudar de assunto e não falar do trabalho científico que o fez ganhar o Prêmio Nobel, ou dos avanços dos estudos sobre partículas de matéria ou comportamento da luz, mas das suas teorias da relatividade, pelas quais se tornou mais popular . Qualquer cientista humilde, que estivesse em busca de um diálogo, ou mesmo de ouvir algo sobre sua pesquisa e apresentação, ficaria incomodado, em constatar sua apresentação completamente ignorada por um público que toma inicialmente como pares. Que se dirá, então, de uma pesquisa que foi reconhecida com um prêmio Nobel.
A isso se somam outros relatos, como aquele trazido por Urariano, de que a mãe de um diplomata brasileiro teria comentado a Einstein, depois de explicar a teoria da relatividade a ela, que "na teoria é tudo muito fácil". Daí se vê o hábito que no Brasil se alimenta a desencorajar o desenvolvimento de novas ideias, ainda que não se tenha a plena capacidade de compreendê-las, mesmo quando apenas em uma conversa, para estabelecer algum domínio sobre a interlocução. Talvez disso a frase reputada a ele, o conselho de afastar-se de pessoas negativas, que para cada solução têm um problema. E se a frase não foi suscitada por causa disso, mesmo assim se encaixa.
Como não reagir, então, com estupefação ao que relemos sobre a visita de Einstein, conhecendo a nossa realidade presente? É ainda frustrante. No Brasil tudo ainda tem de ter uma resposta pronta e irredarguível e deve servir para o elogio mútuo, porque a autoridade do especialista faz eclipse ao conteúdo e, portanto, o conteúdo já não pode ser contestado sem ensejar fricções… E quem faz ciência, dedicando-se a desenvolver o conhecimento em uma linguagem especializada, sempre tem pelo menos uma história de ter sido destratado, sim, por pessoas escrotíssimas… Quando se alcança boa fama e prestígio internacional, como Einstein, vemos um totem com quem não se conversa ou se desenvolve argumentos, que se deseja apenas bajular, ou então desmistificar por ataques ad hominem, como tentou o nosso saudoso César Lattes - depois redimido disso.
A abordagem de César Lattes, felizmente bem posterior à vida de Einstein, não correu risco de levar uma lapada dele, mas talvez tenha provocado em nós o maior embaraço. Em entrevista ao Diário do Povo, “Einstein é uma fraude”, o cientista brasileiro o acusou gravemente de “plágio”… De início o susto, depois a ponderação. Ora, Leibniz e Newton passaram por um escrutínio similar a esse. Já ocorreu com alguma regularidade que os desenvolvimentos na física e na matemática ocorressem simultaneamente, mas não necessariamente com plágio, porque se debruçavam sobre problemas semelhantes, e assim chegavam a formulações coincidentes. No meu livro de Sonetos, aliás, o leitor e a leitora poderão encontrar uma vasta lista de frases coincidentes entre escritores de diferentes tempos e lugares, nos proêmios, inclusive a frase que reputaram ser plágio do atual ministro Alexandre de Moraes a um jurista espanhol. Pois o jurista espanhol havia se esquecido, convenientemente, de citar, por sua vez, São Tomás de Aquino, o autor da frase… E mais! Sim, vai mais longe, São Tomás de Aquino deixou de citar outro autor, que provavelmente não teve oportunidade de ler, mas deixo a curiosidade para quem tenha tempo de abrir meu livro.
Pondere-se, ainda, que a coincidência nesta controvérsia de que me recordo de Leibniz e Newton se acrescentou relevância ao Cálculo, e não a refutação do trabalho deles. É possível que tivesse faltado a citação, no caso de Einstein? Talvez, mas não necessariamente se deveria presumir plágio. O teorema de Pitágoras, sabemos, não foi inventado por Pitágoras; mas alcançou destaque em seu uso e aplicação na escola de Pitágoras. Soaria algo muito indesejável afirmar que o teorema de Pitágoras fosse uma fraude, ou que Pitágoras não merecesse nenhum reconhecimento pela Matemática…
Também pareceu um pouco grosseira a abordagem, porque toma um denominador comum entre o trabalho de Poincaré e Einstein para nivelar o trabalho dos dois em uma suposta equivalência, por ter utilizado a mesma equação E=mc^2. Ora, o trabalho de Poincaré ainda estava no domínio do éter… Como compará-los? A relação pertence ao universo, antes uma equação existe objetivamente: não se deveria confundir com um conhecimento de propriedade intelectual, encontrar que o céu é azul. porque já estava lá, antes de o descobrirmos. Assim também são certas verdades universais e pérolas que aparecem aqui e acolá em discursos de pessoas que não se conheciam. A equação pertence ao universo, antes uma equação existe objetivamente para ser descoberta: não se deveria confundir com propriedade intelectual um conhecimento sobre a natureza do universo, tal como encontrar que a Terra é arredondada. Afinal já estava lá, arredondada, antes de o descobrirmos. Galileu foi muito além de Eratóstenes de Cirene: apesar de ambos trabalharem com a mesma informação, não se pode dizer que Galileu ou São Tomás de Aquino plagiaram Eratóstenes. Que por sua vez, foi precedido pelo profeta Isaías 40, 22-23… Assim também são certas verdades universais e pérolas que aparecem aqui e acolá em discursos de pessoas que não se conheciam.
Além disso, a equação poderia ser a mesma, mas a visão de mundo e aplicação pareciam bastante distintas. Lattes não merece um menor respeito que Einstein, felizmente, porque ao realizar testes em laboratório para refutar um trabalho específico de Einstein, percebeu que não eram suficientes os seus resultados e retirou o que disse. Esse sendo o maior mérito de um cientista de verdade: aceitar quando as suas hipóteses não se verificam, para ganhar a insígnia de honestidade intelectual. Ao final, o cientista brasileiro era grande e se salvou de seus próprios excessos.
Mas as teorias da relatividade de Einstein, ou seu trabalho sobre o efeito fotoelétrico, que mereceu o Nobel, podem bem ser algum dia refutadas, ou superadas, e espera-se que se isso ainda não ocorreu, um dia ocorra, com o progresso da ciência. Ou talvez não. Newton até hoje está bem e serve para muita coisa. No entanto, a forma de aclamar, progredir, superar ou refutar uma teoria deveria passar por desenvolver melhor ciência, e não por alardes, espetáculos com público ignorante sobre o tema, manchetes com balbúrdia… Talvez tivesse sido isso que estranhou Einstein no Brasil: encontrar um ambiente acadêmico no qual ele era um estranho avulso, ou então um conjunto de pesquisadores habituados a reproduzir o que seus mestres ensinaram, envergonhado em acolher novas hipóteses e debater definições. Quanto aos críticos, deveriam ao menos estar propensos a compreender e absorver o seu trabalho, a percorrer seus passos, ou a construir algo novo, antes de criticá-lo.
Outro cientista famoso, Darwin, anteriormente, já havia dado graças por ter deixado o Brasil, de ter se chocado com a burocracia para fazer seu trabalho, com as estruturas sociais arcaicas em que as pessoas negras eram torturadas, a céu aberto, nas praças em frente às Igrejas matrizes. Em uma carta, Darwin afirmou que uma escrava fugida atirou-se a um precipício, preferindo a morte que retornar ao cativeiro da escravidão. Para ele, aquela mulher teria produzido no mundo civilizado inspiração de um épico, com o amor à liberdade digno de uma matrona romana. No Brasil, contudo, era apenas mais uma escrava indisciplinada que se maldizia, uma linha de uma nota no jornal…
Mas retorno à pergunta inicial que me motiva a escrever este texto, tentativa de encontrar elemento que possa defender o Brasil, perante as críticas de Einstein, sem diminuir a admiração que tenho por ele. Julia Moióli, na sua pesquisa muito digna de analisar o contrafactual, nos recorda que Einstein fez uma sonora afirmação pública de que Marechal Rondon deveria ser indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Certamente o indigenista que proclamava “morrer se preciso, matar jamais”, no romance de Ferreira de Castro, tinha brilho próprio e era merecedor dessa valorização por si mesmo. O ponto é que Einstein dificilmente teria sugerido algo assim se fosse racista, ou se realmente odiasse o Brasil, como alguns precipitadamente defenderam. Bom. Concordamos com os fatos trazidos pela jornalista Moióli, dos quais poderíamos concluir que Einstein nada tinha de tão grave contra o Brasil: também registrou elogios ao povo brasileiro nas ruas, à diversidade de povos. No entanto, sejamos sinceros: se as reclamações eram apenas algo circunstancial, por que cientistas tão brilhantes como ele e Darwin se aliviaram ao deixar o Brasil, e comemoraram nunca mais retornar…?
Minha opinião sobre a visita de Einstein tende a acolher essa hipótese de estranhamento, do choque cultural, que vai além do problema da falta de ar condicionado nos séculos anteriores. Eu bem me recordo ele afirmou a ideia da Teoria da Relatividade lhe ocorreu quando estava esperando a lavagem de suas roupas, numa lavanderia (já havia Laundromat naquele tempo?). Talvez tenha sido muito chocante para ele encontrar uma sociedade em pleno século XX onde ninguém lavava a própria roupa, nem limpava a própria casa, nem fazia a própria comida, onde não havia instalações ou ambientes urbanos nos quais se pudesse circular, ou almoçar para encontrar pesquisadores e acadêmicos das universidades, ou seminários programados com especialistas no tema, para expor seus trabalhos. Deve ter sido chocante para ele, como sugeriu Urariano, constatar os comportamentos sociais com que se excluíam as pessoas em classes, onde se alternavam doutores principescos em longos discursos enfadonhos elogiando a si mesmos com estudantes e empregados servis, aos quais não se franqueava o recurso da palavra. Ele teria anotado esses detalhes, fosse esse o problema? Não necessariamente. Pois, em outras oportunidades, ele já havia escrito em suas cartas que atendia aos convites de palestras pela boa reputação que concediam às suas teorias, para não ser tomado como ingrato. Dificilmente ele teria anotado tudo que lhe desagradava, para não ser deseducado.
O mais importante a salientar neste aspecto, parece-me, é que nos seus artigos e no seu comportamento durante as visitas a diferentes comunidades científicas, ficava patente para Einstein que o conhecimento deveria ser útil, e não um pretexto para iconoclastia de cientistas, instrumento para fazer acusações e ataques. Talvez disso a sua reputação de grande inteligência, por duvidar e reclamar que se fizesse do conhecimento científico um ativo de valor ornamental. Não deixa de ser irônico que, assim se manifestando, tenha se tornado ele próprio um ícone. Mas talvez tenha escapado ao nosso memorável César Lattes e aos cientistas que o acusam de racismo científico observar esse valor e contribuição de Einstein ao desenvolvimento da ciência, pelo que ele levava muito respeito nas melhores universidades.
Portanto, chego a um argumento que possivelmente salva tanto Einstein quanto o Brasil. Explico. Para mim, sinceramente, ainda se falou muito pouco no assunto. Pois se expandirmos além do nosso próprio horizonte, devemos lembrar, ainda, que as palestras de Einstein em outros países da Europa também suscitaram da parte dele reclamações. Uma análise mais inclusiva de suas cartas e palestras traz evidência nesse sentido. Se bem já não me recordo do artigo em que Einstein reclamava de suas plateias sem capacidade de fazer perguntas - salvo melhor juízo, na própria Suíça - o artigo da edição de junho de 2019 da revista Physics World nos conta do sarro que ele tirou também em suas visitas à Inglaterra (vide “Einstein in Oxford”). Por ser uma celebridade, guardaram após suas palestras os quadros negros onde ele anotava as fórmulas, para depois exibir nas faculdades e em museus… Ele protestava e os professores diziam: “falsa modéstia”. Assim, ele não pôde corrigir dados errados que, normalmente, se anotam por lapso… Deixou também um poema escrito em um livro para seu amigo Robert Hamilton Dundes, gozando que a quantidade de livros em Oxford impressionava, mas que ainda mais impressionante era a quantidade de pessoas que passavam por ali sem fazer uso deles… E isto foi publicado nos jornais ingleses com gosto em seu obituário, como uma memória afetiva: era algo que os ingleses gostavam de ler. Alguém cobrando que o conhecimento científico deles melhorasse o nível.
Eis aí uma linha para defender o Brasil, mesmo depois de toda essa vergonha alheia que passamos. Pois. Einstein criticava também as vaidades nas comunidades científicas mais desenvolvidas. Talvez a diferença fosse de que nesses lugares, ele ganhava desse modo respeito, e não desprezo, ou um silêncio de constrangimento, ao proceder assim…. Sim, as outras comunidades científicas também padeciam de muita vaidade e do algodão na cabeça das plateias, que não necessariamente estavam ali interessadas em compreender ou desenvolver o conteúdo científico que ele apresentava como assunto. Apenas queriam ver alguém famoso… Afinal de contas, tenhamos em vista o cenário abrangente. Ele comprava briga até com as ligas de mulheres nos EUA, que tentaram boicotar suas palestras, fazendo pouco caso delas! Temos de parar de nos considerar o umbigo do mundo.
Einstein fez isso muitas vezes, se bem em Oxford, não chamou os ingleses de macacos… Ora, mas vamos nos lembrar que os brasileiros deram pinga a ele. Sim! Está registrado que o fizeram degustar muitas pingas no Brasil. (E observem que a pinga brasileira, Einstein também elogiou). Natural que tivesse cometido excessos, dentro do que costumava fazer para ensejar respeito ao trabalho científico em suas palestras. E para esse efeito, também, observem que os ingleses deram espaço, reconhecimento, contribuição e fama ao cientista alemão antes de que ele se tornasse mundialmente conhecido. Além disso, em suas visitas a Oxford, ele era recebido por amigos e seus pares. As comunidades com que interagia, por mais as criticasse, não estavam conformadas por uma estrutura de discipulados isolados uns dos outros, como é comum se transcorrer, mesmo hoje, no Brasil. Quem não se encontra inserido nessas estruturas, é tratado como um estranho…
Talvez Einstein tenha se sentido no Brasil ainda mais um estranho, sobretudo pelas críticas ao seu aspecto pessoal, desocupado de cuidados pessoais, pelo intenso esforço intelectual que imprimia. Muitos grupos de pesquisa brasileiros ainda se orientam por aparências e moda, organizam-se com paternalismo contundente, onde os estudantes desde cedo têm de transitar com cautela e se colocar debaixo de um “grande mestre”, para não esbarrar nas concorrências entre padrinhos de bolsas e oportunidades. E as outras instituições, inclusive partidárias, seguem o mesmo modelo primitivo, em contraste com o modelo de cooperação entre pares, característica fundamental de qualquer comunidade científica produtiva. Um nome, como o de Pontes Miranda, por exemplo é alçado por meio do contato com celebridades e diplomas às alturas, e não se pode chegar até ele sem transitar por uma estrutura hierarquizada em cargos, funções. O resultado dessa falta de interação entre pares, pessoas capazes de dialogar sem presumir mais alto ou menor nível, é um resultado pífio nos conteúdos produzidos e nas descobertas, geralmente circunscritos a uma obra que se torna obrigatória, inquestionável. Mas penso que há cientistas brasileiros que se encontram em reflexões muito mais avançadas sobre a necessidade de reforma das nossas estruturas sociais para elevar a qualidade da produção científica. O avanço das mulheres liderando instituições de pesquisa é um bom sinal disso.
Mesmo assim, desde uma posição mais diversa, penso que podemos defender o Brasil também desde uma perspectiva escatológica, digamos, no horizonte pneumatológico de nossa salvação. A cosmologia é importante! Hahaha! Pois mesmo com belos insights sobre a natureza divina e sobre o ser humano, com trabalhos científicos brilhantes, Einstein contribuiu para o desenvolvimento de armas nucleares - fantasma que hoje assombra o mundo, sendo esse um dos maiores riscos à destruição de nossa espécime. Alguns argumentam a nuclearização teria diminuído a regularidade das guerras… Quem viu a Coreia, o Vietnã, o Iraque, o Afeganistão, a Ucrânia e agora a Palestina, dentre tantos outros conflitos na África, talvez tenha evidências suficientes para duvidar disso.
Portanto, ao menos os cientistas brasileiros, na sua modesta capacidade, ainda não se envolveram em projetos militares que podem prejudicar a existência humana, nem endossaram qualquer corrida armamentista. Não ganharam trânsito e repercussão nas melhores universidades do mundo com isso. Então os mais céticos me diriam: que não o fizeram porque não lhes foi oferecida a oportunidade, porque não tinham essa capacidade: talvez, talvez… Digamos que sim, e acho que não deveríamos ter vergonha de permanecer pobres nesse sentido.
Afinal, naquele tempo, enquanto a Europa também estava registrando milhões de mortos e destruição incomensurável, fratricídios e genocídios durante guerras mundiais, não tivemos milhões de mortos por aqui nestas terras, como fez recordar o Embaixador Synesio Sampaio, quando reclamei a ele dos números preocupantes da violência no Brasil. Não entramos nessas disputas tecnológicas de concorrência acirrada. Temos problemas, claro. Vivemos em uma sociedade patriarcal, quase tribal. Mas são muitas tribos! Há diversidade de patriarcas, para se escolher… Existe o bom humor e se pode sair correndo de uma briga. Ao menos estamos brindando com os bons vinhos argentinos, uruguaios e chilenos, de mãos dadas com a maior parte de nossos vizinhos.
O que importa é que, ainda hoje, também por mérito da nossa comunidade científica, o Brasil e a América Latina estão livres da ilusão de segurança dos armamentos nucleares, de corridas armamentistas e de guerras. Não é um elogio à mediocridade, mas sim a uma inteligência que vai além das descobertas científicas, antecipando-se, com sabedoria, ao uso que pode ser feito delas. Muito melhor é permanecer na humildade e modéstia das pequenas descobertas relacionadas a vacinas, ao biodiesel, à hidroeletricidade, à produtividade dos campos e dos rebanhos, à medicina, à genética… E será que essas descobertas que são pequenas, aos olhos dos grandes cientistas, são menos importantes para o avanço da civilização?
Faço um brinde ao vexame do velho e sábio Pontes de Miranda, que em seu coração admirava Einstein, aos nossos tímidos, mas sábios cientistas…
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