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Maria: Co-redentora?





Prezados amigos e leitores,



compartilho um estudo neste domingo, preparado sob medida para vocês, sobre o amor de Maria, seus atributos e sobre as falhas nos argumentos de que Maria poderia ser co-redentora, ao lado de Nosso Senhor Jesus Cristo; incluindo na análise como Maria é vista pelos primeiros cristãos protestantes.



Boa leitura!






Maria: primeira entre os Santos, ou co-redentora?

Ana Paula Arendt*


“Amai Nossa Senhora e tornai-a amada.”

São Padre Pio de Pietrelcina


“A Santa Virgem tinha fé expressa na Encarnação futura; mas, humilde como era, não se julgava digna de tão altas coisas. Por isso, necessitava de ser instruída nessa matéria.”

(São Tomás de Aquino. Summa Theologiæ, Tertia Pars, Questão 30, Da Anunciação da Santa Virgem, Art. 1, “Se era necessário fosse anunciado à Santa Virgem o que nela haveria de cumprir-se”.)



Ressalva.


Nesta análise busco responder à seguinte pergunta que suscitou um santo amigo: Maria poderia ser co-redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo? Ele afirma ser provável que sim e que isso se realizaria. Convém então analisar essa hipótese.


2. O ponto de partida, para não cair no erro de muitos teólogos, não é estudar as propriedades de um ser humano para decretar por meio de um raciocínio humano sua divindade, ou sua qualidade compatível com as qualidades de Cristo. Trata-se, antes, de um exercício de estudo, com base nos documentos, doutrina e escrituras sagradas para iluminar-se sobre a verdade. A verdade existe independentemente do que pensam ou julgam os teólogos, cientistas, escritores e poetas. Se bem sobre os poetas está escrito que “ (…) Paulo alega a palavra de Arato (At 17, 28): Como disseram ainda alguns de vossos poetas: Que somos linhagem divina” (Summa Theologiæ, Prima Pars, Questão 1, art. 8).

3. Parece mais adequado aproximar-se da verdade para eventualmente descobri-la, se nos for dada a revelação, tomando a verdade como algo que já existe; e não para cair em tentação da vaidade de construir algo e posteriormente declarar verdade. Pois os feitos divinos jamais poderiam ser reduzidos a uma obra humana. Por mais fosse uma obra humana bem-feita, não poderia estar debaixo de algum tipo de decreto humano. A fé cristã está baseada sobre a convicção de que o gênero humano não inventou Deus, nem Maria, nem Cristo. Convém, portanto, abordar o tríduo sem querer dispor cláusulas e decretos sobre eles, sem fingir que pudéssemos saber tudo deles, e sem querer determinar ou restringir o que podem ou não podem ser, o que podem ou não fazer.


4. No espírito da Dei Verbum, espera-se então revelação nas fontes divinas que nos foram legadas por pessoas que estão acima de nós, e não um conhecimento científico, a ser refutado, ou filosófico a ser elogiado. Limito também o escopo deste estudo: não busco elaborar um tratado de mariologia, ou de devoção a Maria, se bem a bibliografia nesse campo é vasta e muito útil. Segue, então, uma análise das dúvidas e argumentos que poderiam ser levantados em favor do reconhecimento de Maria, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, como co-redentora.


5. A este propósito parecem úteis, como ponto de partida, os argumentos favoráveis ao reconhecimento da capacidade co-redentora pelos apologistas de Maria. Utilizamos a compilação de argumentos de Padre Frederick William Faber, do Oratório de São Filipe Néri, intitulado “The Foot of the Cross: Or, the Sorrows of Mary”, edição de 1858, hoje um pouco empoeirada. E também o volume mais recente, “A mãe do Salvador e nossa vida interior”, de Garrigou-Lagrange, publicada em 1948.


6. Cumpre explicar, ainda, que do texto se faz intenção pela intercessão da Virgem Maria, pela conversão de um pecador, seu batismo e realização dos demais sacramentos que lhe faltam para cumprir bem sua vocação, a fim de que alcance conhecer e possa declarar grande felicidade. Não sendo um comércio, o milagre do amor de Maria por quem lança acusações contra ela, tornam-se possíveis naturalmente muitos milagres que antes não se cogitavam possíveis.


O primeiro erro: presumir que Maria, Mãe de Jesus, por ser criatura, poderia ser uma mulher igual a nós, ou igual aos Santos.


7. Os defensores de Maria co-redentora, reunidos sob Faber, indagam: seria um excesso de devoção magnificar o papel de Maria, ou presumir que ela não precisaria, como todos nós, de redenção? Para isso, assumem a hipótese de que Maria, por ser criatura, poderia eventualmente ser igual a todas as outras pessoas, limitadas pela natureza humana:


“Saints and doctors have united in calling our Blessed Lady co-redemptress of the world. There is no question of the lawfulness of using such language, because there is such overwhelming authority for it. The question is as to its meaning. Is it merely the hyperbole of panegyric, the affectionate exaggeration of devotion, the inevitable language of a true understanding of Mary, which finds common language inadequate to convey the whole truth? Or is it literally true, with an acknowledged and recognized theological accuracy attached to it? This is a question which has presented itself to most minds, in connection with devotion to our Blessed Mother, and there are few questions to which more vague and unsatisfactory answers have been made, than to this. On the one hand, it seems rash to assert of language used both by saints and doctors, that it is only exaggeration and hyperbole, flowery phraseology intended to startle, but without any real meaning hidden beneath it. On the other hand, who can doubt that our most Blessed Lord is the sole Redeemer of the world, His Precious Blood the sole ransom from sin, and that Mary herself, though in a different way, needed redemption as much as we do, and received it in a more copious manner and after a more magnificent kind in the mystery of the Immaculate Conception? (Faber, The Foot of the Cross: Or, the Sorrows of Mary, Londres, 1858, p. 447-8)


8. Este argumento se relaciona com a Divina Maternidade: de que os especiais atributos de Maria decorreriam do exercício da Divina Maternidade sobre seu Filho, ainda que lecionando a Ele apenas Natureza Humana – o que sabemos é improvável, tendo em conta que, naquele tempo, provavelmente Maria terá ensinado Jesus a ler e escrever, para realizar as leituras comunais e na sinagoga, ensinando a Ele também sobre a Natureza Divina, necessariamente. Daí se vê o orgulho incrustado, mesmo daqueles que a amam, no temor de reconhecer o maior valor de Maria.


9. De todo modo, não é possível seguir essa linha de raciocínio da Divina Maternidade, como se Maria fosse apenas um objeto, um vaso que ganha valor pelo valor do que contém. Deus a amou antes, quanto ela não continha nada. Além disso, para presumir esta hipótese, de que Maria seria uma mulher igual a todas as outras, para argumentar que seus especiais atributos decorriam exclusivamente da Maternidade Divina de Cristo, teríamos de renegar a nossa fé: teríamos de assumir que Cristo poderia ter nascido de qualquer outra mulher, fosse ela igual a todas as outras. 


10. Contudo, não foi assim que o Evangelista São Lucas nos relatou. Maria foi escolhida por Deus dentre todas as mulheres para ser a mãe de Cristo: “bendita sois vós entre as mulheres”. Nesta declaração bíblica, o significado que lemos é que ela se distingue de todas as demais mulheres que não foram escolhidas. Não se pode perverter nem perder este significado.


11. Estas são as palavras vocalizadas por Santa Isabel, traduzidas de sentimento proveniente de São João Batista, antes de que pudesse falar, quando ainda estava no ventre de sua mãe (São João Batista pulou de alegria no ventre da mãe ao ouvir a saudação de Maria).


“Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou de alegria em seu ventre, e Isabel ficou repleta do Espírito Santo.  Com voz forte, ela exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Como mereço que a mãe do meu Senhor venha me visitar? Logo que a tua saudação ressoou nos meus ouvidos, o menino pulou de alegria no meu ventre.  Feliz aquela que acreditou, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido! ” (São Lucas 1, 41-45).


12. São João Batista, conforme Nosso Senhor Jesus Cristo, é um homem crível e fiável: “Eu vos digo: entre todos os nascidos de mulher, não há ninguém maior do que João.” (São Lucas 7, 28= São Mateus 11, 11). Não se pode duvidar das palavras vocalizadas por Santa Isabel, que se originam na alegria de São João Batista, ao ouvir a voz de Maria: pois não apenas Jesus Cristo, mas o povo reconhece João Batista como profeta e Santo, a despeito de todo o esforço do governo de Herodes em suprimir o seu mérito. João Batista, dentro do ventre da mãe, ao simplesmente ouvir a voz de Maria, produziu na sua mãe, Santa Isabel, palavras que são repetidas hoje exaustivamente, sendo uma oração abundamentemente rezada na Santa Igreja.


13. Da escolha de Deus para que Maria assumisse a maternidade de Cristo, mãe do Salvador, filho unigênito de Deus, foi desposada, antes de ser mãe, por Deus; e certamente dessa escolha é que se presumem todos os decretos, encíclicas e concílios que têm concluído pelas grandes virtudes especialíssimas de Maria. Vide o Concílio de Éfeso, realizado no ano de 431, que declara o dogma de que Maria é a “Mãe de Deus”; dogma da Imaculada Conceição, no Denzinger-Schonetzer, Enchiridion Symbolorum, 2803; São Tomás de Aquino, Ciência dos Desejos, “In salutationem angelicam vulgo “Ave Maria” expositio”, São Paulo, 2024, p. 118-124; Antífona do Magnificat, nas Vésperas da festa de Apresentação da Virgem Santa Maria, “só vós agradastes plenamente a Nosso Senhor Jesus Cristo”; dogma da Assunção de Nossa Senhora em 1950, pelo Papa Pio XII; para citar algumas referências que são hoje consenso e que pertencem ao domínio de conhecimento de toda criança católica.


14. Também o sagrado Alcorão estabelece Maria como uma das quatro mulheres a quem Deus privilegiou com especiais atributos, dons e benefícios, ao lado da mãe adotiva de Moisés, Assya, da esposa e da filha do Profeta Mohammed, Kadhja e Fatima, respectivamente.


15. Entre os católicos, para negar o especial estatuto de Maria, por haver sido desposada por Deus, seria necessário negar que Nosso Senhor Jesus Cristo fosse o filho unigênito de Deus. E nisto se contraditaria o símbolo de fé dos Apóstolos. O ponto é que antes de que pudesse exercer qualquer Divina Maternidade, ela foi distinguida e escolhida das demais. A virtude dela, por ser escolhida e amada por Deus, antecede a finalidade, e também as virtudes que Deus irá suprir para o exercício da Maternidade Humana e Divina.


16. Maria se discerne das demais mulheres também em felicidade: “feliz aquela que acreditou”, afirma Santa Isabel, vocalizando o sentimento de São João Batista em seu ventre. A fé de Maria é perfeita, porque ela está feliz por acreditar.


17. Maria também se contrapõe a Eva nessa medida. Enquanto Eva não acreditou em Deus, duvidando do valor de seus planos de felicidade para ela e para o homem, O desobedeceu e caiu no pecado original; Maria, em uma antítese, acreditou em Deus. Não duvidou do valor dos planos de felicidade de Deus para ela e para todos os homens, e com Deus concordou, vencendo o pecado original. Eva, conforme São Tomás de Aquino (Ciência dos Desejos), se distinguiu pelo fruto do pecado; Maria, pelo fruto de seu ventre, Deus encarnado. A Divina Maternidade não lhe conferiu isto: a Divina Maternidade é um resultado de seus atributos especialíssimos de fé e obediência. Esses dons, fé e obediência, são concedidos por Deus: mas são concedidos a todos homens e mulheres. Contudo: nem todos os homens e mulheres se alegram e sentem felicidade com fé e obediência. A felicidade de Maria agradou a Deus, porque denota a sinceridade e autenticidade: a fé de Maria é íntegra, a sua obediência não se dá com má vontade. Ela extrai da fé e da obediência um gradiente sublime de felicidade com que se oferta para cumprir qualquer missão que Deus lhe dê. Portanto: antes de ser Mãe, Deus a toma como Sua esposa por seu interior, e também por sua expressão. Deus quer se encarnar, nascer e morrer no colo de uma mulher feliz, que n’Ele deposite fé e confiança em seu amor, que o ame e se alegre com o amor d’Ele. Sem a felicidade de Maria, não seria possível Deus se encarnar.


18. Não caberia presumir, portanto, mesmo apenas em hipótese, que Maria pudesse ser uma mulher comum, igual a todas as outras. A fé e a obediência dela precede a fé e a obediência de todas as mulheres que a sucedem: ela foi a única que recebeu o anjo Gabriel e ofertou os requisitos perfeitamente para o nascimento e encarnação do Salvador dos Homens (São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado de verdadeira devoção à Santíssima Virgem, passim).  Não fossem os seus atributos perfeitos,  de encontrar felicidade na fé, na consonância com a vontade de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo não teria nascido.


19. Também Maria se discerne das demais mulheres, e em especial de Eva, por uma conduta especialíssima de escolha da fonte de instrução. Presumimos que Eva, por ser posterior a Adão, recebeu de Adão a instrução divina de que não deveria comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal: pois a instrução é dada por Deus a Adão antes que Eva tivesse sido criada (cf. em Gênesis). A instrução transmitida pelo homem à mulher não teve a mesma eficácia que a instrução transmitida diretamente por Deus a Maria. Logo, Eva, caiu no pecado original, e teve de deixar o Paraíso.


20. No entanto, Maria não segue o caminho de se colocar sob o poder e autoridade de um homem, ou de uma mulher, como os demais homens e mulheres. Segue caminho diverso de Eva, de contentar-se em receber instruções divinas por meio de um homem. Maria estabelece um diálogo direto com Deus, por meio de um anjo. Do anjo Gabriel recebe diretamente a instrução de Deus, e cumpre perfeitamente a vontade de Deus, sem que a instrução perca sua eficácia por intermediários: “O Senhor é convosco”, afirma o anjo (São Lucas 1,  28). E São Tomás de Aquino nos recorda que, sendo a fé dela perfeita, “O ente santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus” (São Lucas 1, 35).


21. Não há outra mulher da qual tenha nascido “ente santo” a ser “chamado Filho de Deus”, na fé cristã. Dos demais, se poderia dizer somos todos filhos adotivos de Deus; que todos somos filhos de Deus, pelo amor de Deus; mas jamais iguais em natureza divina a Jesus Cristo, Salvador dos Homens, em cujo Amor confiamos, Amor por meio do qual nos fazemos filhos adotivos e nos reintegramos ao Paraíso como destino final.


22. Poderia-se questionar de outra forma que fosse Maria dotada de especiais atributos, virtudes ou favores diante de Deus: porque não constatamos que ela tivesse intercedido junto a Deus para salvar seu Filho da morte de cruz, de seu sacrifício. Efetivamente, nenhuma outra mulher, em sã consciência, seria capaz de ofertar o próprio filho em sacrifício a Deus: teria ao menos tentado impedir o evento, como São Pedro tentou e foi admoestado. Mas Maria não procede dessa maneira, conforme os Evangelhos.


23. Apenas Abraão precedeu Maria nesse feito: sacrifício de Isaque, seu único filho, o qual, no caso de Abraão, não se concretizou, por intervenção do anjo, para que seus descendentes fossem numerosos como os grãos de areia, e se cumprisse a promessa divina. Mas não se poderia comparar o sacrifício efetivo de Nosso Senhor Jesus Cristo com a oferta de sacrifício de Abraão, tendo cada qual seus propósitos e resultados distintos. O sacrifício do próprio filho, ofertado por Abraão, aceito por Deus e impedido pelo anjo, visava produzir uma descendência abundante também aos monoteístas; o sacrifício ofertado por Maria, cumprido por Jesus Cristo e aceito por Deus, visou produzir o efeito salvífico da alma de todos os homens e mulheres, o retorno ao Paraíso.


24. Maria, neste sentido, foi além da fé de Abraão: além de o ter ofertado no Templo, e de O ter acompanhado em seu percurso, ela tomou conhecimento, na Santa Ceia, de que “o Filho do Homem deveria ser entregue” para cumprir a profecia. Ela não impediu o sacrifício iminente, por quaisquer meios, embora pudesse interceder de um modo favorável junto às autoridades do Templo. Conforme a tradição do Alcorão, mensagem recebida pelo Profeta Mohammed de São Gabriel, Maria trabalhou no Templo, antes da Divina Maternidade; e no Templo mantinha importantes contatos. Também quando foi ter com seu Filho (São Mateus 12, 46-50= São Marcos 3, 31-35), acompanhada dos irmãos/primos de Jesus Cristo, quando se esperava ela, como toda mãe, manifestasse preocupação e intenção de demovê-lo de seguir apresentando críticas às autoridades  pelos fardos que impunham e defendendo o perdão dos pecados do povo, Maria se une a Jesus Cristo, em sua missão na vida adulta. Santiago, primo de Jesus, que a acompanhava,  concorda com ela vale a pena colaborar com Jesus Cristo e também se torna Apóstolo e autor de uma das cartas que integram a Bíblia (este martirizado enquanto rezava no Templo, após a morte e ressurreição de Cristo, e após a dormição e assunção de Maria). Maria não é, portanto, como toda mãe.


O erro do sistema fechado da finalística Maternidade Divina.


25. O Padre Réginald Garrigou-Lagrange, O.P., leciona que a hiperdulia (o especial reconhecimento de Maria, em precedência à importância dos Santos) se deveria à sua titulação, e não teme ser redundante: Mãe de Deus, Mater Creatoris, Mater Salvatoris, Sancta Dei Genitrix. Deus teria conferido méritos a Maria a fim de que ela se tornasse apta a ser mãe de Cristo. Isso, como argumentamos, parece diminuir o valor de Maria: considerar a história da salvação como um sistema fechado, pré-determinado por Deus. Há de se reconhecer que a realidade é recheada de incertezas e de decisões que precisam ser tomadas em tempo real, das quais nem sempre temos conhecimento pleno, ou quais resultados hão de advir. Deus não pré-definiu tudo, conforme lemos em Apocalipse (Ap 22, 10), e o gênero humano é capaz de intervir em seu próprio destino, clamando misericórdia e graças divinas. Tampouco se sabe nem se pode dizer ao certo, enquanto os eventos se transcorrem, qual é a vontade de Deus, antes de que ela aconteça e se revele; o que se pode é depositar fé de que a vontade de Deus é cumprida e que Deus revelará o que é necessário. Maria tem essa fé maior e consegue enxergar, na realidade, a vontade de Deus se realizando, em permanente diálogo que mantém com Ele, em oração e por intermédio dos anjos, extraindo dessa visão efeitos salvíficos universais para si e para todos os que ela ama em si.


26. Presumir que Maria não pudesse fazer nada além do que tivesse sido previamente determinado por Deus não seria compatível com a natureza humana, com a sua história e com o seu valor. Para reconhecer o inteiro valor de ter feito a vontade de Deus perfeitamente e haver ofertado perfeitamente Jesus Cristo, em sacrifício para redenção do pecado de todos os homens e mulheres, é preciso reter em mente que a realização da vontade de Deus necessita de uma entrega e renúncia de si mesma. As dores dessa renúncia não são relatadas no Evangelho, no qual lemos apenas a felicidade de Maria; mas a felicidade dela está conformada também de humanidade. Sobretudo pelo papel ativo que reconhecemos de seu Apostolado, após a morte e ressurreição de Cristo. Como ensina Tomás de Aquino, foi necessário o exercício do livre arbítrio dela, para que o Anjo desse prosseguimento à realização da concepção sobrenatural de Nosso Senhor Jesus Cristo. Antes de saber ou cogitar o que poderia vir a ocorrer, ela acreditou e acatou o desígnio dessa oferta e sacrifício para salvação de todos os homens, conforme instruiu o anjo; e, posteriormente, submeteu-se a seu Filho, a quem Deus deu autoridade. Sofreu e padeceu dores indenomináveis enquanto seu Filho sofria e padecia ao vê-la sofrendo e padecendo, num espelho de Amor interminável. Também na crucificação a obediência e a fé dela se dão em uma esfera ativa, pois o sofrimento dela não é metafísico; é físico e se transcorre em tempo real no qual ela vive, realidade incerta na qual tomamos parte, ao conhecê-la e reverenciá-la. O amor de Maria se assemelha ao Amor ilimitado de Jesus Cristo: 1) Ama primeiro, vai até Jesus Cristo ter com Ele e quer saber d’Ele, e passa a servir aos Apóstolos e à Igreja; 2) Ama enquanto somos “inimigos”: não abandona Cristo, mesmo quando Ele não a chama de Mãe, mas de Mulher, ou quando Cristo não lhe pode dar atenção direta; nem abandona os Apóstolos, ainda que não lhe possam dar atenção ou suporte; e 3) ama do início até o fim, se bem ainda não se vê o fim disto. Os mesmos três fatores distintivos do amor de Cristo e do amor divino estão presentes no amor de Maria.


27. Sabemos, ainda, que Maria atuou muito mais do que nas bodas de Caná. Durante a Paixão de Cristo, as mulheres e os Apóstolos eventualmente fizeram chegar a situação e invocaram José de Arimateia e Nicodemos, para interceder junto a Pilatos, em benefício de que Nosso Senhor Jesus Cristo fosse retirado da Santa Cruz, antes de completados os três dias, em função da Páscoa judaica. Os evangelhos não expõem nenhuma instrução de Maria para tanto, nem descrevem uma lágrima de Maria. Mas sabemos que sua lágrima e a angústia em seu coração bastariam para configurar instrução mais eficaz que qualquer decreto ou ordem humana expressa às mulheres e aos Apóstolos. Para conformar os planos de Deus, que foram se revelando ao longo do caminho, São João Evangelista, José de Arimateia e Nicodemos surgem para apoiá-la. As mulheres e os Apóstolos guardam proximidade com Cristo reunindo-se ao redor dela, ao acompanhá-lo em sua Paixão, Morte e Resssureição.


28. Mais além, é preciso adentrar não apenas o sentido literal e figurativo; mas também o místico e anagógico dos textos do Evangelho. O sentido literal e figurativo pode ser apreendido pela leitura das palavras, pela mente humana, pelo ruído da Palavra; mas o teor místico e anagógico dos Evangelhos descrevem o padecimento de Maria e dos Apóstolos, ao ver Cristo crucificado, , e nos faz sentir o mesmo padecimento. Isso se evidencia pelo silêncio da pausa da Palavra, e pelos efeitos desse silêncio sobre a alma humana, os quais dão a conhecer os sentimentos guardados no texto. Os quatro sentidos da exegese bíblica, a propósito, encontram correspondência nos quatro rios que cercam o Jardim do Éden, o lugar onde homem e mulher passeiam na presença de Deus, ser onisciente, onipresente e onipotente, sem nenhum pecado. O encontro dos cristãos com Maria se dá, portanto, também na lectio divina, ao encontrar a história e legado de Jesus Cristo que nos contam os Evangelistas. Sabemos, por meio de Eusébio de Cesareia, que os discípulos colheram dos relatos de Maria e de sua experiência de vida concreta,  da união da alma entre os que se amam, e da união ainda mais próxima da alma entre mãe e Filho, já que, por amá-lo com grande intensidade, ela se fez mais presente na vida de Cristo.


29. Recorde-se, ainda, que Maria se distingue dos demais Apóstolos por ter sido designada por Cristo como mãe dos Apóstolos que se sentem amados por Cristo. “Mulher, eis aí o teu filho; filho, eis aí a tua mãe” (São João, 19, 25-27). Cristo deixa de chamá-la de mãe, invocando-a como mulher, apenas, para deixar integralmente seu atributo de mãe ao discípulo que Ele amava – o que se sentia amado.


30. Se Maria é Mãe da Igreja, quem é o Pai? São Pedro recebeu designação de apascentar ovelhas e instrução de fundar a Santa Igreja; mas Cristo ensinou que deve-se chamar de Pai apenas a Deus, que está no céu:

“A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus.” (São Mateus 23, 9)      

Logo, a maternidade de Maria sobre a Igreja é definida por Cristo, assim como a paternidade da Igreja é de Deus. A paternidade da Santa Igreja não é do Sumo Pontífice. Carinhosamente nos referimos desse Papa, por ser o campeão de Cristo, de se esvaziar de si mesmo, e de quem se espera ouvir a Palavra de Deus, do Pai, e não as suas próprias. Mas as constituições do Vaticano II, que renovam as funções e atributos dentro da Igreja, nos ensinam a cátedra de Pedro jamais poderia estar no mesmo nível que a maternidade de Maria, a qual se torna também Mãe de São Pedro; em especial quando este passa a se sentir amado por Cristo, como São João se sente amado.


31. Maria, resumidamente, é única, em seus atributos, precedendo em virtudes as outras mulheres e demais homens, ao ter ofertado seu Filho – “ente santo” concedido por Deus – para a salvação do gênero humano. E também por ter estar ao lado de Deus Pai, da pessoa de Cristo, em maternidade.


32. “O mundo não reconhece essas coisas porque é inapto e indigno” (São Luís Maria Grignion de Montfort, 2028, p. 14). Inapto, porque não considera deve se sustentar a consistência da própria fé, ao proclamar Jesus Cristo o Filho de Deus, pessoa da Santíssima Trindade, que cristalizou em forma humana perfeitamente o Amor de Deus, ao não ouvi-Lo: Maria é Mãe, e Deus é Pai. Cristo é Filho de ambos. Eles se relacionam de um modo particular. Indigno, porque não suporta a maior dignidade de uma mulher que alcançou de Cristo e de Deus maiores méritos sobre os demais.


33. O mundo se torna inapto e indigno ao pôr fé nas expressões de poder e riquezas materiais, de toda sorte, que pouco dizem sobre os bens divinos e verdadeiras virtudes, fonte da verdadeira e permanente felicidade. Por isso o mundo não reconhece nela atributos superiores divinos: Maria é uma mulher que permanece simples e humilde, que não se volta nem reconhece o valor de bens e méritos terrenos, erguidos sobre a vaidade e orgulho humano. Os seus cuidados com a Igreja, no papel que lhe foi delegado de ser Mãe da Igreja, visam preservar os fieis dessas ilusões com que o diabo † faz perder as almas e fazer convergir para o que é essencial para a salvação; como Deus é Pai, e providencia o mesmo. Deus, Cristo e Maria igualam-se em propósito, porque Maria abraça completamente o propósito de Deus, sendo sua esposa e Mãe de Cristo.


34. Seria uma blasfêmia alegar que Maria seria então igual a Deus, sendo uma criatura? Uma criatura poderia se igualar ao Criador? O fato é que Cristo concedeu isso a ela, o estatuto de Mãe da Igreja, enquanto Deus é Pai. Mãe e Pai ocupam o mesmo degrau, do Antigo ao Novo Testamento. “Respeitai pai e mãe”. “E lhes era submisso”. Pai e mãe formam um casal que tem, para os filhos, um simultâneo efeito de jurisdição, apesar das diferenças na natureza de cada um.  Sobre São José, não se deveria discorrer o mesmo, então, estendendo a ele os mesmos atributos que Maria? Mas Cristo afirma Ela é Mãe nossa, como Deus é nosso Pai; salvo queiramos ser presunçosos e cair em pecado, não nos cabe questionar o que determina Cristo.


“De fato, devemos devolver a Deus quanto o defraudamos nos seus direitos. Ora, é direito de Deus que façamos a sua vontade, preferindo-a à nossa. Quando preferimos a nossa à dele, então o defraudamos de um direito seu, e nisso consiste o pecado” (São Tomás de Aquino, Catecismo, A Ciência dos Desejos, São Paulo, 2024, p. 107).


35. Sobre São José, devemos analisar seus atributos à parte. Convém, de todo modo, assinalar a diferença substantiva entre Maria e José: Maria atendeu ao anjo prontamente. José pensou em abandoná-la. Foi necessária uma intervenção divina, o seu sonho, para que José aderisse ao plano divino, e tomasse Maria como esposa.

36. Ressalte-se, ainda, que Maria se discerne de todos os outros homens, mulheres e Santos pelas forças superiores de resistir ao pecado:


"Existiram de fato alguns tão presunçosos a ponto de ensinarem que o homem é capaz de viver neste mundo conseguindo com as suas forças evitar o pecado. Mas isso nunca foi concedido a ninguém, a não ser Cristo, que possui o Espírito sem medida, e à bem-aventurada Virgem, que foi cheia de graça e na qual não existiu qualquer pecado, tanto que dela diz Agostinho: "Quando se fala de pecados, não quero que ela seja sequer nomeada"* **. (São Tomás de Aquino, Catecismo, a Ciência dos Desejos, São Paulo, 2024, p. 108, e Santo Agostinho, De Natura et Gracia, c. 36, 42).


37. Conforme Tomás de Aquino e Agostinho, apenas Jesus Cristo e Maria emprestam aos homens e mulheres a força necessária para resistência ao pecado.


38. Maria, portanto, se difere de todos os demais homens e mulheres por amar com amor de Deus, um amor distinto do amor humano, frágil e claudicante, que se recolhe rapidamente quando contestado. O amor divino visa guardar, fazer permanecer e dar vida aos homens e mulheres: não se retira mesmo debaixo de cruz.






Imagem: Nossa Senhora de Međugorje


O erro de reduzir o problema da co-redenção a uma questão linguística.


39. Faber, na sua tentativa de provar o que existe, e o que já sabemos, pelos seus próprios argumentos, nos brinda mais valiosos erros que servem como excelente material:


“ Saints and doctors have united in calling our Blessed Lady co-redemptress of the world. There is no question of the lawfulness of using such language, because there is such overwhelming authority for it. The question is as to its meaning. Is it merely the hyperbole of panegyric, the affectionate exaggeration of devotion, the inevitable language of a true understanding of Mary, which finds common language inadequate to convey the whole truth? Or is it literally true, with an acknowledged and recognized theological accuracy attached to it?  (…) Thus, so far as the literal meaning of the word is concerned, it would appear that the term co-redemptress is not theologically true, or at least does not express the truth it certainly contains with theological accuracy. We are distracted between the desire to magnify our Blessed Mother , the authority of the saints and doctors, and the supremely sovereign requirements of a sound theology. We certainly shrink from asserting that the language of the saints has no meaning, or is inadvisable; and at the same time we have no doubt that our Blessed Lady is not the co-redemptress of the world in the stric sense of being redemptress (grifo nosso), in the unshared sense in which our Lord is Redeemer of the world, but she is co-redemptress in the accurate sense of that compound word. But these are not times, in which it is desirable to use words, the real meaning of which we have not distinctly ascertained. Hence, (…)” (Faber, op cit., 447-448)


40. Retornamos ao mesmo parágrafo de Faber para identificar outro problema na coesão de seu argumento. Em primeiro lugar, afirma que o termo de “co-redentora” seria correto por um “argumento de autoridade” dos Santos, os quais se unem para chamá-la de co-redentora. Ora, a autora que escreve este texto não tem nenhuma autoridade, só coleciona pecados e fracassos. No entanto, está provado, nas Sagradas Escrituras, que o termo se aplica bem a Maria, já que ela foi colocada lado a lado a Deus Pai, tanto por Deus Pai, quanto pelo seu Filho. Haveria de se questionar o significado linguístico de “maternidade” e de “paternidade”, e não o termo “co-redentora”, para resultar qualquer dúvida a respeito do especial papel que Maria execeu e vem exercendo na salvação dos homens e mulheres.


41. Também parece algo confuso, afirmar que todos os Santos se unem em consenso chamando Maria de co-redentora, com amor ilimitado por ela, por unir-se ao amor ilimitado dela; e, ao mesmo tempo, alegar que, “não seria co-redentora no estrito senso”. Essa disputa ao redor do significado do termo “co-redentora” em um sentido geral e estrito não faz sentido algum. Os Santos convergem: Maria faz redimir homens e mulheres, colocando-os no caminho de Cristo, e Cristo é redentor dos homens e mulheres. Não há como escapar de uma bênção de Maria, porque a fé dela na bênção que vem de Deus, fazendo-se o meio condutor da bênção, alcançou a perfeição.


42. Mas se convergem os Santos sobre o papel co-redentor de Maria, não é por um argumento de autoridade: é porque os Santos constatam ela também lhes retira os pecados e retira os pecados do mundo, ensinando-lhes, com amor inefável, a observar o que dispõe Cristo. Ressalte-se que a palavra dos Santos tem, de fato, muito mais valor e autoridade do que o palavreado do mundo, porque experimentaram, na prática, o sabor de Cristo.


43. Mas São Tomás de Aquino ensina que antes de encontrar a verdade não vem a autoridade, vem a explicação:

Demais — se for argumentativa, há de sê-lo pela autoridade ou pela razão. Se pela autoridade tal não lhe parece caber à dignidade, pois fragilíssimo é o argumento de autoridade, conforme Boécio. Se pela razão, isso não lhe convém ao fim, porque, segundo Gregório, não tem mérito a fé onde a razão fornece a prova. Donde, não é argumentativa a doutrina sagrada. Mas, em contrário, diz a Escritura (Tt 1, 9) a respeito do bispo: Que abrange a palavra fiel, que é segundo a doutrina, para que possa exortar conforme à sã doutrina e convencer aos que o contradizem. SOLUÇÃO. — Como as outras ciências não argumentam para provar os seus princípios, mas, com estes, raciocinam para demonstrar outros pontos, assim também, não argumenta esta doutrina para provar os seus princípios ou artigos da fé, senão que destes procede para mostrar outra verdade.” (Summa Theologiae, art. 8, Questão 1, Prima Pars, “Sobre a doutrina sagrada”).


44. Também se ensina que sobre o argumento do teólogo ou expositor da sagrada doutrina se impõem certos limites, os limites da verdade.


“Na doutrina sagrada, os fatos individuais não são tratados principalmente, senão apenas introduzidos a título de exemplo prático, como nas ciências morais; ou também no intuito de apurar a autoridade dos homens que nos transmitiram a revelação divina, na qual se funda a Sagrada Escritura ou doutrina”. (Summa Theologiae, art. 8, Questão 1, Prima Pars, “Sobre a doutrina sagrada”).


45. Conforme São Tomás de Aquino, os Santos convergiram para o fato de que Maria é co-redentora; mas eles são Santos, na realidade, por causa disso. Não seriam Santos se não tivessem reconhecido a pureza e os atributos de santidade de Maria. Maria não é co-redentora porque os Santos teriam usado esse termo, como quer sugerir Faber. Ela é co-redentora porque santificou os que constatam ela é co-redentora. A autoridade dos Santos vem da santidade. E a santidade vem disto. Encontrar a verdade sobre Maria, na revelação das sagradas escrituras,  e defender a verdade, é algo que produz um efeito santificador.


46. Quais Santos chamaram Maria de co-redentora, pelo termo ou pelo seu significado de fato, de propiciar o que é suficiente para encaminhar homens e mulheres para a redenção por Deus Pai; e qual sentido deram ao termo? Encontramos aqui, neste breve exercício, já o anjo Gabriel, São João Batista, Santa Isabel, Nosso Senhor Jesus Cristo, Ele o próprio Santíssimo, São João Evangelista, todos os Apóstolos que a declaram Mãe, e têm Deus por Pai, todos os Santos da Igreja consistentes e cientes dos seus próprios dogmas de fé, inclusive São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, São Luís Maria Grignion de Montfort, e até mesmo o próprio Faber,  e Garrigou-Lagrange, em busca de encontrar os argumentos por detrás de seus sentimentos. E tantos mais Santos e teólogos que ainda não apareceram, mas que vêm a surgir a qualquer momento.


47. Poderia-se questionar com Santa Teresinha, doutora da Igreja, que Maria não seria co-redentora? Santa Teresinha de Lisieux afirma que


“Sabe-se que a Santíssima Virgem é Rainha do céu e da terra, mas ela é mais Mãe do que rainha, e não devemos crer (como eu tenho ouvido muitas vezes) que por causa de suas prerrogativas ela eclipsa a glória de todos os Santos, como o sol, ao levantar-se, faz desaparecer as estrelas.”


48. Contudo Santa Teresinha neste trecho não está argumentando que apenas Deus seria comparável ao Sol, ou que Maria não seria comparável ao Sol. Ela ressalta que Maria é Mãe, como Deus presumidamente é Pai. Ela argumenta que Maria não faz eclipsar nem deixar de ver as estrelas, os Santos. Seria, então, Maria, como a lua? Não, porque São João Evangelista refere-se a ela como “a mulher vestida de Sol” (Apocalipse 12, 1-18). O Sol tem atributos de brilho próprio, que o distinguem da lua, um pedaço de pedra no espaço vazio, semelhante ao ser humano em sua solidão e vazio de sentido, que é iluminado pelo Sol. Além disso, São João Evangelista afirma, em sua visão do Apocalipse, que a mulher vestida de Sol “tem a lua debaixo dos pés”. A mulher sobre quem ele discorre, que vence o dragão, não é, portanto, uma lua.


49. Também nas palavras do Evangelista, observa-se que o Sol empresta a Maria uma luminosidade própria a ela: ela brilha como o Sol, mas não faz apagar as estrelas descritas no Apocalipse. Maria está além da alegoria do Sol e da Lua, e dos corpos celestes, o que o autor de Apocalipse tenta expressar como “vestida de Sol”. E a doutora da Igreja, Santa Teresinha acrescentou: sem eclipsar as estrelas. Mas Santa Teresinha assevera, em diversas ocasiões, que Maria tem brilho próprio, em seu poema para Maria, obra especificamente destinada a celebrar os atributos maiores de Maria:

“Se eu viesse a contemplar o teu fulgor sublime/ Que supera de muito o dos anjos e santos,/ Não poderia crer que sou tua filha (…) O inefável, luzente ouro da Virgindade. / (…) Pois o trilho do céu nos tornaste visível, /Vivendo cada dia as mais simples virtudes”. (Poema de Santa Terezinha para a Santíssima Virgem).


50. Para Santa Teresinha, também, observamos que Maria tem “fulgor sublime”, é “luzente”, “o trilho do céu nos torna visível”. Maria é brilhante e se reveste de um grande e imenso brilho; portanto, não pode ser a lua, pedra opaca que não tem brilho algum, sendo apenas iluminada pelo brilho do Sol. A lua é satélite sem dúvida lindo, mas ilumina pouco, ao refletir o brilho do Sol pela noite. Mas Maria brilha como o Sol de dia e pela noite, sem ofuscar as estrelas. Melhor a expressão do Apóstolo: “vestida de Sol”, porque participa da onisciência, onipresença e onipotência divinas para atender aos seus Filhos em qualquer lugar, inclusive nos piores lugares, nos piores poemas. E bem colocado por Santa Teresinha: um Sol que “não faz desaparecer as estrelas”.


O erro de transformar o debate sobre uma verdade inequívoca em um debate sobre disputa de poder


51. Considerar que Maria poderia ser magnificada por nós presume ela pudesse ser igual ou menor do que nós.  Mas a grandeza de Maria não está em ostentar poder humano conforme concebemos. Ela pode ser pequena, imperceptível, e ainda assim maior do que nós perante Deus, em sua humildade. Para alguns teólogos, seus atributos são nefastos para os homens poderosos, por orgulho e narcisismo.  Mas a sequência desse raciocínio teológico, de exaltá-la para diminuir os homens orgulhosos, é ruim: então os atributos que a tornam comum e igual a todas as outras mulheres, dotando-a de maior humildade, precisam assim ser “remediados” por uma exaltação?Os que assim procedem talvez tenham equivocadamente o que é virtude e pecado. Não têm em conta o que seja um grande amor, ou o que é grande virtude, para Deus, dando maior atenção aos modos e atividades dos poderosos e aos ricos do que aos humildes e pobres. Talvez assim raciocinem por não conhecer a Deus, não tendo se aproximado, ainda, de Sua Palavra para efeitos práticos. O amor e valor de Maria não precisam ser magnificados, porque já são algo magnífico ao máximo. O que se pode fazer é simplesmente tentar relatar.


52. Dessa percepção que se equivoca, entretanto, se tomaria como necessário, exaltar Maria para que ela possa estar à altura de ser mãe de um Cristo poderoso do juízo final, que envia pecadores ao inferno e os que o temem aos céus… Esse erro, de transformar a Maternidade Divina em argumento de finalidade, baseado sobre um Cristo poderoso como um rei humano, inventado como imagem de artifício pelos homens e mulheres para ser adorado pelo seu poder, encontramos semelhante ao erro daqueles que nutriam expectativas de que o Messias esperado por Israel seria um rei rico e poderoso, conquistador e triunfante à frente de um governo temporal.


53. Nisto repetiríamos o erro dos sacerdotes do Templo, ao menos daqueles que não foram capazes de reconhecer a bondade infinita e a perfeição inigualável da vida de Cristo dentro do contexto a que veio, para produzir e tornar inesgotável a salvação humana em todos os contextos; dos que não foram capazes, ainda, de reconhecer os desdobramentos inefáveis que se produziram da vida de um homem nascido em uma manjedoura e crucificado como um bandido, guardando apenas inocência e perfeição; ou os efeitos salvíficos que se originaram em seus passos e decisões.


54. Nisto Faber concorda, expressando não como erro, mas como uma distração:

“We are distracted between the desire to magnify our Blessed Mother (grifo nosso), the authority of the saints and doctors, and the supremely sovereign requirements of a sound theology.” (Faber, op. cit. p. 448)


No entanto, não parece sã a teologia que exige algo assim.


O erro de excluir os protestantes do debate sobre os atributos de Maria


55. Não se menciona como relevante o papel de Maria na fé protestante, mas conviria evitar a diatribe nefasta que faz dividir a Igreja de Cristo em católicos e protestantes, acusando os protestantes de recusar ou negar o brilho próprio de Maria. Lutero não declara Maria seria menor ou menos importante, nem os príncipes que firmaram a Declaração de Fé de Augsburgo, em 1531. Tampouco diminuíram o valor e mérito dos Santos, o que foi asseverado nesse documento e reasseverado na Apologia de Melâncton (vide meu texto sobre a Paz de Augsburgo). Nestes documentos, os Santos, inclusive Maria, são elevados por apontar ser maior a misericórdia de Cristo, e concluem mais conveniente que Cristo seja invocado, antes de todos os Santos. Nisto coincidem com Maria Santíssima.


56. Caem em grande erro os católicos que presumem equívocos numa doutrina de fé supostamente viciada dos protestantes, ao invés de compreender o erro de desprezo ao amor de Maria como uma negligência individual dos fieis das Igrejas protestantes; algo que deve ser particularizado e sanado – e não generalizado a uma suposta doutrina de Lutero contra Maria. A fé dos protestantes nasceu no seio da Igreja Católica. Tem se mantido intacta, a despeito das disputas de poder e acusações diversas que se lançaram contra eles. Parece muito difícil cogitar que negligenciem a importância das obras de caridade em suas atividades – o que garante, para todo efeito, o que São Tiago propugna e os católicos exigem, uma fé que se demonstre em obras.


57. Diversas cláusulas da Declaração de Fé de Augsburgo se baseiam na obra de Santo Agostinho e nas cartas de São Paulo, encontrando-se hoje incorporadas nas encíclicas e constituições da Igreja Católica, como analisamos anteriormente em outra ocasião (Dei Verbum Cap. I, § 2, Lumen Gentium 11 e 12). A mesma insistência de Lutero sobre a fé ser o componente salvífico essencial é declarada por Nosso Senhor Jesus Cristo abundantes vezes (“a tua fé te salvou”, São Lucas 7, 50; 8, 48; 17, 19; 18, 42; São Marcos 5, 34; 10, 52; São Mateus 9, 22); pelo salmista: “Volta-te, Senhor, livra a minha alma; salva-me por tua benignidade” (Salmos 6, 4); por São Paulo (Segunda Carta a Timóteo, 3, 15) e por Santa Teresinha: se bem ela declara que “o amor se prova por meio de feitos”, também conclui que “Jesus não pede grandes feitos: apenas entrega e gratidão”. E ainda: “Eu asseguro a vocês que Deus é muito melhor do que acreditam. Ele se contenta com um olhar, um suspiro de amor” . As convergências entre católicos e protestantes são visíveis, à medida que o ano de 2031 se aproxima. E, neste particular, sendo Maria a prócer da importância da fé – feliz aquela que acreditou – resultam também convergentes as atitudes dela com as atitudes dos protestantes, em preferir invocar Cristo, para toda e qualquer necessidade.


58. Muitos protestantes amam Maria à sua própria maneira, e não deixam de estar inspirados na fé de Maria, ao ter cautela para não praticar idolatria, nem diminuir a atenção em Cristo, nas virtudes que estão contidas nas verdades da fé, preferindo a Palavra ao poder da atração de uma imagem.  Não se deveria cair no erro de julgar ou condenar a fé dos protestantes: pois dificilmente há maior amor por Maria do que ser como Maria, como se fazem os protestantes, preferindo recorrer e olhar diretamente para a Palavra de Cristo, para colocá-la em prática. Além disso, se sentem ser amados por Deus, Maria certamente os tem também como Filhos, ainda que não a chamem de Mãe, como Nosso Senhor Jesus Cristo, mas de Mulher. Não há pecado em chamar Maria de Mulher, pois Cristo a chamava assim, pondo e reconhecendo nela antes a condição humana de todas as mulheres.


59. A Confissão de Fé de Augsburgo, firmada por Lutero e pelos nove príncipes/nobres para alcançar unidade da Igreja, assevera que Cristo é o Filho de Deus, toma-o como nascido da pura Virgem Maria e que guarda duas naturezas, divina e humana, em uma única pessoa. Em seguida, Lutero também afirma o Symbolum Apostolorum sobre Cristo (Confissão de Fé de Augsburgo, art. 3). Esse documento não toca nem adentra quem é “a pura Virgem Maria”, nem seu especial estatuto para ser citada por esse documento à parte dos crentes e dos Santos, do que se nota um sinal de respeito. Afirmando o Credo Apostólico, Lutero reconhece Maria, acrescentando um adjetivo ao credo: “pura”. Os católicos afirmamos que Cristo nasceu da “Virgem Maria”; mas Lutero e os príncipes/nobres protestantes afirmam que Cristo nasceu da “pura Virgem Maria”. Os protestantes se preocuparam em acrescentar uma adjetivação adicional para ela no sinal de fé.


60. Além disso, a obra de Lutero está baseada sobre Santo Agostinho, e Santo Agostinho afirma: “As orações de Maria Santíssima junto a Deus têm mais poder junto da Majestade Divina que as preces e intercessão de todos os anjos e Santos do Céu e da Terra.” Parece equivocado supor que Lutero não guardasse de Santo Agostinho o que disse respeito a Maria, merecedora de uma especial veneração. Ele e os príncipes/nobres diferenciam, ainda, os Santos dos crentes (Confissão de Fé de Augsburgo, Art. 8, Que é a Igreja) e afirmam, ainda, que os Santos fazem parte de um grupo que ressuscitará para julgar os ímpios (Confissão de Fé de Augsburgo Art. 17, Da volta de Cristo para o Juízo). Se os protestantes distinguem e incluem os Santos no julgamento final para proferir sentença sobre os ímpios, estão observando nisso, necessariamente, a capacidade dos Santos em colaborar para conceder a redenção.

60bis. Em contradição com o que os protestantes afirmam respeitosamente de Maria, Faber, entretanto, em seu prefácio ao Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, afirma:


“Aqui na Inglaterra, Nossa Senhora não é bastante pregada e conhecida. A devoção que lhe consagram é fraca, escassa, mesquinha, transviada pelos escárnios da heresia. Dominada pelo respeito humano e pela prudência carnal, desejaria fazer da verdadeira Maria uma Maria tão pequena que os protestantes se pudessem sentir à vontade junto dela. Sua ignorância da teologia tira a Maria toda a vida e dignidade; ela não é, como deve ser, o caráter saliente da nossa religião; não tem fé em si mesma. E é por esta razão que Jesus não é amado, que os hereges não são convertidos, que a Igreja não é exaltada; almas que poderiam ser santas desfalecem e degeneram; os sacramentos não são frequentados como o deveriam ser; as almas não são evangelizadas com o entusiasmo do zelo apostólico; Jesus não é conhecido, porque Maria é deixada no esquecimento; perecem milhares de almas, porque Maria delas está distante”. (Faber, Prefácio ao Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem de 1862, São Paulo: Vozes, 1961, p. 11).


60ter. Por que duvidar do amor dos protestantes por Maria, se ela está presente no Símbolo Apostólico que eles afirmam com especial atributo? E como deixar de enxergar que os protestantes se separaram da Igreja por decisão do Papa Leão X, de excomungar Lutero? O que Lutero afirmou na Confissão de Fé de Augsburgo, de 1531, foi afirmado pelos atos de Maria, nas Sagradas Escrituras, que se deve recorrer antes a Cristo do que a qualquer outro Santo, e que se deve ter fé antes na salvação, para perseverar nas boas obras, do que na condenação, para evitar a desistência; e como vimos, boa parte do que ele pregou está hoje na doutrina da Igreja Católica, depois do Concílio Vaticano II.


61. Não parece haver sentido em fazer uso de Maria, portanto, para dividir a unidade cristã, ou inseminar discórdia sobre as verdades da fé, já que a divisão e a discórdia não se incluem nos motivos de Maria. Uma tal veneração, feita para aprofundar divisão ou discórdia na unidade cristã, não produz frutos agradáveis ao paladar, mas de amargo sabor, e se encaixaria no que São Luís Maria Grignion de Montfort advertiu:


“(…) é preciso, mais do que nunca, fazer agora uma boa escolha da verdadeira devoção à Virgem Santíssima, pois, como jamais, pululam falsas devoções a Maria Santíssima, as quais passam facilmente por devoções verdadeiras. O demônio †, como um moedeiro falso e um enganador fino e experimentado, tem já enganado e perdido inúmeras almas, inculcando uma falsa devoção à Santíssima Virgem, e todos os dias vale-se de sua experiência diabólica †  para lançar outras mais à eterna condenação, divertindo-as e acalentando-as no pecado, sob o pretexto de algumas orações malrecitadas e de algumas práticas exteriores que lhes inspira”. (São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado de Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, Petrópolis, 2024, 90, p. 55).


62. Deveríamos nos pôr de acordo, leigos, sacerdotes e teólogos, que um protestante poderá produzir uma devoção muito mais saborosa em sua alma em silêncio, contemplando a pureza de Maria, apenas meditando brevemente sobre suas qualidades sublinhadas, pura e virgem, respeitando sua pureza e virgindade, e obter disso frutos e benefícios, reconhecendo e incentivando essas virtudes em outras mulheres; do que longas ladainhas que não se revestem de uma devoção sincera, se não se traduzem em respeito e incentivo a esses atributos em outras mulheres. E vice-versa: apenas Deus conhecendo o que está dentro do coração dos homens e mulheres. Constatamos que também se pode ser breve em uma mentira, e sincero em uma longa verdade.


62bis. Mas o coração que se obriga a ser sincero, por meio de penalidades ou depreciações que se impinge, dificilmente poderia estar em sintonia ou proximidade com o coração de Maria, ou de Cristo. “Maria disse: ‘A minha alma engrandece o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada’.” (São Lucas 1,47-48). Maria se alegra e se vive feliz, como uma bem-aventurada, a despeito de todas as dificuldades que São Máximo nos relata ela passou em sua vida. Recorde-se a tentativa dos mestres da Lei e dos sacerdotes do Templo em impedir o funeral de Maria, pelos Apóstolos, e os grandes sacrifícios que ela fez para suprir necessidades e permanecer próxima aos Apóstolos, em sua biografia mais antiga, “A Vida da Virgem”.


63. Deveria-se também evitar debater o papel de Maria na Igreja como se pudesse haver disputa de poder entre Maria e os Santos, ou entre Maria e os leigos, sobre quem ocupa mais alta posição. Isso seria profanar o papel co-redentor de Maria como Mãe da Igreja. Faber se explica neste ponto:


“Her merits have a sort of infinity as compared with theirs. Their martyrdoms and dolours are little more than shadows, when placed by the side of hers. Thus in their own sense of co-operation, she exceeds them in degree immeasurably, so that her co-operation with our Lord almost throws theirs into shade. On this account she might be called co-redemptress with a truth, which would be far less applicable to the saints. (….) In a secondary dependent sense, and by participation, all the elect co-operate with our Lord in the redemption of the world”. (Faber, op. cit. p. 449).


64. Parece não fazer tanta diferença, pelos elementos que trouxemos das Sagradas Escrituras, deixar de discernir os atributos que diferenciam Maria dos Santos, e que a aproximam em maior medida de produzir, com eficácia, o desígnio salvífico encarnado em Nosso Senhor Jesus Cristo; pois suas virtudes fazem os Santos declararem, em consenso, como a primeira dentre eles e também Mãe deles, na concórdia de que ela faria muito mais jus a esse termo.


65. Faber prossegue na sua tese elucidando os maiores méritos e mais extensos atributos de Maria pelos elogios que lhe faz. Certas imagens de Maria também ensejam esse efeito, como a imagem de Guadalupe: tanto maior beleza e miríade de significados se encontram nas abordagens a Maria: quanto mais se olha, e mais profundamente se sente. Tanta pulcritude se encontra, quanto maior a meditação.



Nossa Senhora de Guadalupe, surgida no manto de estopa do índigena Juan Diego Cuauhtlatoatzin (1474–1548), em cena registrada por suas pupilas, após análise de imagem fotográfica pela Kodak.
Nossa Senhora de Guadalupe, surgida no manto de estopa do índigena Juan Diego Cuauhtlatoatzin (1474–1548), em cena registrada por suas pupilas, após análise de imagem fotográfica pela Kodak.


Outras questões pertinentes para conhecer a potencialidade de Maria em redimir os homens e mulheres


66. Sobre outras questões pertinentes que poderiam ser levantadas e analisadas, para avaliar os atributos de Maria que potencialmente poderiam satisfazer o uso do termo co-redentora, e não apenas primeira entre os Santos. Algumas encontramos resolvidas na Suma Teológica: o consenso de que Maria é um ser humano distinto dos demais, por não ter pecado; de que tem livre-arbítrio, como toda pessoa, por mais sua ausência de pecado resultasse em obediência perfeita. Ela não poderia dizer não ao Anjo, mas isso ocorreu pelo seu próprio arbítrio.


67. Outras questões mereceriam aprofundamento: o serviço de Maria em redimir pecadores, por seguir o caminho de Cristo, e encaminhá-los assim a Cristo, produz resultado tão perfeito quanto os pecadores que buscam ser diretamente resgatados por Cristo? Ela é a que mais serve, dentre os Apóstolos, sendo a última, conforme instrui Cristo? A sua presença e o seu serviço ensejam, de um modo especial, a reunião dos discípulos, conforme lemos nos Atos dos Apóstolos? “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali eu estou no meio deles” (Mt 18,19-20). As palavras de Maria são perfeitamente eficazes e suficientes para propiciar, em Cristo, a redenção? A presença de Maria no mundo, sinalizada em diversas aparições, previne a destruição do mundo, já que Deus não poderia destrui-lo, estando Maria, sua esposa, presente nele? Diferenças biológicas entre homens e mulheres ensejam a necessidade de uma co-redentora capaz de assumir as particularidades de um papel feminino? Aos homens convém imitar Cristo, e às mulheres é necessário encontrar respaldo em um modelo a ser imitado, compatível com a natureza biológica e com a condição feminina? As aparições de Maria, em locais nos quais a dignidade humana foi mais profundamente aviltada, guardam evidências de sua atuação co-redentora?


68. E, por fim, a questão mais importante. Tendo o consentimento de Maria sido necessário, como condição sine qua non, para o nascimento de Cristo, o que Faber concede, não é necessário desenvolver este montante, reconhecendo ela é também co-autora e co-geradora do mistério de Cristo? Deus pede consentimento a Maria, ao informá-la antes de fazê-la conceber, e aguarda sua reação antes de fazê-la conceber. Ainda que, sendo Deus, antecipe a resposta dela será positiva e que ela receberá a notícia com muita felicidade, Deus, o Criador do universo, submete o seu plano de nascer, antes, ao consentimento de Maria. Deus é um cavalheiro.


68bis. Recordamos que, se bem é verdade que ela exerceu a jurisdição de parentalidade sobre Cristo, como salienta Faber e outros autores, recordamos essa não foi apenas uma prerrogativa de Maria, já que Jesus também se submetia a São José, quando criança (“e Ele lhes era submisso”, São Lucas 2, 51). Mas ao longo da vida de Cristo, é privilégio dela se fazer plenamente co-partícipe, pois Deus permite ela esteja presente mais tempo, e que O siga como mãe, tendo dentre os Apóstolos. Ela tem com Jesus Cristo a maior proximidade possível, porque o engendrou, criou e acompanhou; e, ao fim, ela se torna o nosso legado como presente de Cristo, nossa Mãe, aos que se sentem amados por Ele, por determinação divina.


69. Santa Edith Stein aprofunda esta constatação, afirmando que Maria não gerou apenas Cristo, mas todos nós, por consequência de gerar Cristo: “Maria nos gerou segundo a vida da graça, dando-se totalmente, de corpo e alma, para ser a Mãe de Deus”. E Santa Teresinha completa reconhecendo em Maria, nos seus versos, uma “grandeza suprema”: a alma de Maria contém todo o oceano do amor de Jesus.


Conclusões sobre o amor de Maria, de atributo redentor e salvífico; e questões concretas para a Igreja hoje


70. Do erro de juízo sobre o estatuto de Maria na Igreja, negando o amor dela seja capaz de redimir pecados, ou modulando que seu exemplo em seguimento da vontade de Deus, como discípula do Filho, seja menos perfeito que Cristo, deduzem-se muitos outros erros que precisam ser sanados, para que o mundo possa expiar os pecados e elevar o espírito ao Amor puríssimo, a fim de colher os benefícios de sentido na vida, felicidade, satisfação e bem-estar.


71. Ao se amar uma mulher como se ama Maria, ou ao buscar inspirar um amor na esposa, filha, mãe, tia, avó, que seja compatível com as virtudes de Maria, a fim de que as mulheres possam se identificar com ela, é preciso ter em conta quem é Maria, o que é o amor de Maria, e como amar Maria, para experimentar as suas propriedades salvíficas. Negligenciar o seu papel de co-redentora prejudica essa função. Maria provê bendições, bons desígnios, bem-aventuranças, identificação com o amor ilimitado de Cristo, atenção, realização da providência, felicidade em engrandecer e santificar o nome de Deus, comunhão com os Apóstolos, concede a história do nascimento e vida de Jesus Cristo concedida aos Evangelistas e suas comunidades, e muitos outros benefícios que concorrem para a salvação completa de toda alma. Deixar de lado o seu papel de co-redentora, ou deixar de dar atenção à sua importância, é afastar-se do bom caminho.


72. Para esse efeito, surge incompatível com o Amor de Deus, como vimos, que se acuse em Maria pecados, ou mesmo que se diga seu nome quando se fale de pecados, como sugerem Tomás e Agostinho. Do mesmo modo, se desejamos as mulheres tenham as virtudes de Maria, não devemos acusar nelas pecados, ou dizer o nome delas, quando se fala em pecados. Além disso, se Deus pede consentimento a uma mulher, antes de determinar qualquer novo evento em sua vida, também os homens e mulheres devem consultar uma mulher, antes de fazê-lo. Ensejar nas mulheres o amor de Maria enseja compreender melhor esses atributos de Maria que ensejam uma prática de respeito benéfica para cumprir bons desígnios. Para amar uma mulher como se ama Maria, é preciso distingui-la de todas as demais, compreender suas circunstâncias à luz do amor que Deus tem por cada mulher, e ver nela esposa do divino Espírito e mãe do Cristo que nascerá em si, antes de vê-la como a própria esposa, ou a própria mãe.


73. Efetivamente o mundo se enche de um péssimo orgulho ao profanar mulheres, dizendo haver nelas pecados; ao cobrar-lhes disciplina, antes de disciplinar a si mesmo. As acusações abundam até mesmo naquelas que se mantêm, com a ajuda e graça de Deus e Maria, no estado de castidade, ou de virtudes, ou com a confissão e obrigações em dia. Denunciam, assim, os pecadores, seus próprios pecados, estando cheios de interesses profanos por essas mulheres. O mundo, cheio de interesse em inserir o que é profano nelas, busca enxergar algo profano nelas e assim corrompe a bondade e a beleza que deveríamos cultivar nas mulheres. Do mesmo modo se poderia falar do interesse perverso em degradar a dignidade dos homens. Também para este mérito, ensejar o amor de Maria, a fim elevar a dignidade dos homens e preservá-los da culpa, seria muito benéfico, conhecendo melhor suas propriedades: pureza, sinceridade, alegria, felicidade, inocência. O lançamento de culpas e de acusações causa distúrbios e transtornos que agitam as almas, impedindo o gozo completo da felicidade de amar como Maria. Por isso os homens não andam tão felizes, não vencem a resistência do orgulho para entregar a si mesmos e a um pleno gozo de um amor gratuito, sem restrições nem preocupações.


74. Sabemos, contudo, que é um atributo especialíssimo de Cristo e, tendo sido por ele eleita, também atributo de Maria, tirar e sanar os pecados do mundo, por meio de um grande mistério que vai filtrando e purificando as águas em que nos fazemos imersos. O desgaste que o mundo tenta caracterizar em Maria para desprezar a sua capacidade de redimir pecados é passageiro, e a sua presença continua ensejando proteção e felicidade, havendo sido designada para ser Mãe da Igreja. O sofrimento, o desgaste e os insultos passam; o amor dela, não. O amor de Maria está consolidado sobre o amor de Cristo, que toma o sofrimento dos demais para si, em busca de oferecer remédio das palavras de amor, comunhão, compreensão, boas ações e precaução.


75. Maria ama não para que os homens tenham interesses profanos, mas para curar sofrimentos diversos, de solidão, abandono, dúvida, enfermidade, desesperança: para que, se sentindo amados por ela, sejam fortalecidos na missão de amar, e para que amando, não pereçam: permaneçam. Do mesmo modo, é de se esperar que, para inspirar amor de Maria nas mulheres, deve-se ter em conta o motivo do amor de Maria, que é mesmo motivo do amor Deus: guardar a vida dos homens, dar vida aos homens e mulheres, redimir os erros.


76. Parece, portanto, muito saudável, necessário e urgente que a Igreja católica e os movimentos cristãos, em geral, venham a apreender e preservar o sentido e papel co-redentor do amor de Maria, para conhecer e contemplar a capacidade ilimitada que ela empresta de Deus para transmitir um amor transbordante, necessário para que a intercessão dessa Santa tenha uma grande eficácia em toda boa causa.



Bibliografia:


Augustana.


Bíblia Sagrada, tradução da CNBB, 2024.


Concílio de Niceia, 431.


Confissão de Fé de Augsburgo, Lutero et alii, 1531.


Constituição Dogmática Dei Verbum, 1965.   


Denzinger.


Faber, Padre Frederick William, do Oratório de São Filipe Néri, “The Foot of the Cross: Or, the Sorrows of Mary”, edição de 1858. Disponível em : <https://books.google.rs/books?id=BfwCAAAAQAAJ&pg=PA448&dq=co-redemptress&ei=BELhR4LwDKDSigHR1fEr&redir_esc=y#v=onepage&q=co-redemptress&f=false >


Garrigou-Lagrange, O.P., Réginald. A Mãe do Salvador e nossa vida interior. Campinas: Ecclesiae, 2017.


Lumen Gentium, 1964. “A bem-aventurada virgem Maria Mãe de Deus no mistério de Cristo e da Igreja (52-69)”.


Santa Teresinha do Menino Jesus, Pourquoi je t'aime Ô Marie. Poema disponível nos arquivos do Carmelo de Lisieux, em <https://archives.carmeldelisieux.fr/archive/pn-54/>.


São Luís Maria Grignion de Montfort. Tratado de Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, Petrópolis: Vozes, 2024.


São Tomás de Aquino. Summa Theologiæ e Catecismo, Ciência dos Desejos.


* Pseudônimo literário de R. P. Alencar, cientista política, poeta e diplomata. Foi aluna de Teologia do Instituto São Boaventura em Brasília.

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