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o amor bíblico


A rainha de Sabá ante Salomão, por Tintoretto, 1555, Museo Nacional del Prado.



Ofereço a meus leitores um rascunho de exegese sobre o amor bíblico, descrito no Salmo 45 e no Cântico dos Cânticos.


Boa leitura e bom feriado!




Exegese

Salmo 44(45) e Cântico dos Cânticos

por Ana Paula Arendt*


Na cultura cananéia antiga, o casamento era celebrado com tabuinhas de poesia ugarítica, feita de mitos, contos e lendas, que datam ao mesmo período de compilação dos Salmos, tendo sido encontrados paralelismos entre alguns salmos e poemas ugaríticos. Davi teria incorporado parte da poesia ugarítica adaptando os termos e versos em uso naquele tempo para que fossem compatíveis com o monoteísmo e culto a YW-H, como os salmos 29 e 82.

2. O Salmo 45 não contém correspondências com a poesia ugarítica, mas eventualmente poderia ter servido como um texto que pudesse ser lido no lugar do poema ugarítico mais popular na região durante as bênçãos de bodas, que versam sobre o casamento de Yarikh, deus da lua, e Nikkal, mãe do Sol. A placa desse poema ugarítico abre com a descrição de uma lua no crepúsculo abraçando Nikkal (e os deuses circundantes) e pedindo a seu pai Harhab que lhe dê sua filha, ao mesmo tempo que promete uma grande recompensa. Harhab o examina e sugere que ele se case com outra mulher, mas Yarikh insiste. Então a lua dá o mohar (o dote do noivo ao pai da noiva) na frente de toda a família, que o examina. É preciso que o noivo insista e demonstre capacidade de sustentá-la. Na parte seguinte da tabuinha, separada da anterior por uma linha horizontal, alguns historiadores afirmam encontrar um trecho de salmo kosher; e também é feita menção a El, o rei dos deuses mesopotâmicos, que alude a dar a bênção dos deuses ao casal. Infere-se de sua popularidade porque a tabuinha contém um espaço para preencher o nome dos noivos.

3. Diferentemente da tradição mesopotâmica, em que o noivo tem a iniciativa junto ao pai da noiva, a núpcia hebraica se origina, no Salmo 45, pela atração da noiva pelo noivo: pela sua beleza e pelas suas virtudes que evocam bens divinos, a esposa deseja a beleza do noivo para si, tornar-se um com ele. Quem ama não consegue deixar de dizer ao amado que o ama; e disso as palavras “transbordam”, espontaneamente (v. 2). Num primeiro momento, a noiva tenta expressar o que sente descrevendo o que vê de especial em seu favorito, com rapidez, ela tem pressa, necessita da agilidade de um escriba; para em seguida aprofundar de onde surge nele o que a encanta. Vendo o que a encanta, ela deseja ainda tornar maior o que a atraiu, louvando e prestando homenagens: os louvores produzem as fragrâncias de “mirra, aloés e incenso”. O ambiente se transforma pela presença do amado, tornando-se um espaço sagrado em que a noiva se dirige ao noivo, onde não cabem interferências externas.



Imagem: David e Bathsheba, Escola neoclássica do Século XIX


4. No fundo, temos o que parece um ascendente do epitalâmio romano, onde consta um canto com melodia de instrumento em forma de lírio e letra de núpcias (coempção). Do latim nuptiæ, a boda é traduzida como o gesto de cobrir com um velo, um tecido fino: acostar-se. O Salmo no original em hebraico refere-se não a um canto de núpcias, como consta traduzido na Bíblia Ave Maria; mas a uma canção de amor, de amizade ( שִׁיר יְדִידֹ , Shyr Yëdidot). Diferentemente do que a cultura romana e ocidental, este texto sagrado não constitui um canto nupcial que tem galarim na união carnal em leito legítimo. O Salmo 45 se volta para o bem-querer, sentimento na alma que se retro-alimenta entre os noivos e os conduz ao altar numa celebração de vida conjunta. Disto a palavra Yëdidot, que pode significar tanto amor, quanto amizade, companheirismo. Em português, a boda (do latim vota, promessa) se exprime de um modo diferente, pela palavra matrimônio: de mater, da constituição da mulher como mãe, do estabelecimento de um lar e dos preparativos necessários para os filhos. Na cultura luso-brasileira, o casamento se volta muito mais para a mulher como o centro da celebração, e menos para o sentimento que une e embeleza os esposos, como nesse Salmo e na cultura hebraica.

5. Este Salmo evoca elementos para traduzir em palavras um grandioso sentimento que os esposos têm um pelo outro. Os elementos simbólicos presentes são: 1) o lírio como instrumento de toda a canção: a pureza, castidade, ser um para o outro; 2) as vestes, o ouro, o metal mais valioso, aquele que se prefere a todos os demais, evocado na imagem das vestes esplendentes de ouro de Ofir, o ouro sem impurezas (também recordamos do velo de ouro, buscado por Jasão e os argonautas, o que demanda de Jasão a demonstração de virtudes e confere o amor devocional da esposa, Medeia); 3) na mirra, os óleos e fragrâncias, o que transformará o ar ambiente em um espaço sagrado, que não deve ser conspurcado por questões menores; 4) a lira, a palavra melodiosa, voltadas para o deleite de quem as ouve, sem espinhos ou maus presságios, tudo voltado para o sentimento entre os nubentes; 5) o marfim, notoriamente conhecido naquele tempo por adornar as paredes do Palácio de Acabe (1 Reis 22:39), sugerindo que é valioso o lugar e o momento em que os noivos celebram uma união.

6. O marfim talvez recorde, ainda, a juventude da compleição dos noivos, pois se casavam jovens: a santificação do lugar onde eles se encontram é também a santificação dos corpos. As superfícies de terracota e pedra se tornam brancas, lisas e refinadas: o lugar onde eles estão se torna, com o amor, um templo sagrado. Já os sons da lira são a melodia que produz na alma um vínculo pela revelação: desde milhares de anos, a lira, ou a tuba canora, é o instrumento com que os poetas da Antiguidade revelavam os pensamentos dos deuses para que disso os homens soubessem o desígnio. O desejo do toque corporal é o pensamento divino que torna as coisas concretas.



Imagem: David e Bathsheba, por Paris Bordone, 1540-1549, The Walters Art Museum


7. No Salmo 45 se lê também uma preferência manifestada que cobre o noivo de alegria; um atributo divino por ter sido escolhido como preferido pela noiva por desígnio, dentre os amigos que ele considera igualmente dignos. Conforme afirma São Tomás de Aquino: homem e mulher preexistiram numa realidade criada por Deus. Se bem se fascina, sem poder explicar o motivo da preferência, o noivo permanece considerando seus iguais dignos, pelo que retém o cetro real da equidade (v. 7).

8. Não parece haver um rito predefinido na substância do que os noivos sentem, mas uma espontaneidade que, mesmo repetindo passos antes já seguidos, preenchem o momento tornando-o único e eterno (“bênçãos eternas”, v. 3), pelo um deleite mútuo (v. 9). É a escolha e devoção da mulher ao herói (v. 4) que dá início à canção de amor. É herói porque o noivo a salvou alimentando seu desejo de verdade, justiça e feitos gloriosos (v. 5). As forças do mundo tentam dissipar esse alimento, trazendo adversativas, ressalvas, salientando defeitos (v. 6). Mas sequer são mencionados: apenas se vê o amor apaixonado da noiva pelo noivo, o que produz nele vitória sobre as críticas, sem que os ataques tenham qualquer efeito (“aguçadas são as vossas flechas”). Ele se torna ainda mais atrativo, por superar essas dificuldades com um espírito ativo, buscando dissipar o que poderia diminuir o sentimento e interesse dela.

9. Neste ponto, apesar de não se mencionar um dote, como no poema ugarítico utilizado nas bodas, o noivo demonstra o seu mérito. Mas o amor do homem, nesse Salmo, é permitir-se ser amado e lutar para continuar sendo amado pela mulher, vencendo as oposições que surgem a isso. A noiva reputa a Deus a vitória, ao tê-lo escolhido (o que recorda, em parte, a insistência de Yarikh e a bênção de El); pelo que o noivo senta em um trono eterno como aquele que irá dominá-la e regê-la (v. 7). Com a mulher que o ama, ele não é mais apenas um homem: ele se torna um rei.

10. Nos versículos 8 e 9, parece haver um encontro de transição do canto, da noiva para o noivo, onde os versos se confundem e já não se pode distinguir a qual deles pertence a voz do canto. Houve uma fusão da alma de ambos numa só alma? Já não se sabe quem escreve o Salmo, se o lado feminino ou masculino. Nisso se recorda os pontos de união dos triângulos, na estrela de Davi: o triângulo voltado para cima, representa o lado masculino, e o triângulo voltado para baixo, representa o lado feminino. Unidos eles formam uma estrela. A gematria do Salmo em hebraico mereceria um estudo à parte, para analisar se nisto há uma intenção do autor.



Gilbert Sheedy / King David and Bathsheba / Stained glass / 1950, Sacred Heart and St Teresa, Coleshill


11. Na segunda parte do Salmo, no entanto, o olhar se volta do noivo para a noiva, a fim de corresponder à primeira parte do canto; pois de intensidade, a noiva se exauriu de ter entregado seus desejos por completo. Mas depois de ter dado o primeiro passo declarando seu amor, ela se sente insegura de enfrentar o desconhecido e de abandonar quem a nutriu e protegeu inicialmente (v. 11). O noivo então busca assegurá-la para que ela não se entristeça no sacrifício de deixar a casa paterna e o seu povo, para unir-se em casamento com quem tanto ama. A noiva se sente ainda mais uma vez insegura e vacila: pois não se julga bonita, apesar de ter sido também escolhida em uma correspondência: tem modéstia interior (v. 12). Novos acontecimentos alvissareiros são antevistos no horizonte para encorajá-la: ela terá um papel importante ao lado do amado, partilhando de sua vida; o louvor que ela prestou se transformará em reciprocidade, e de seu mérito haverá gratuidade de presentes; ela será colocada pelo noivo acima dos próceres, dos fundadores da sua Pátria, de seus pais. Depois de casar, ela também não será apenas uma mulher: se tornará rainha – e pelos pedidos que receberá dos próceres, será rainha também dos pais do noivo. É um texto bastante diferente e muito mais completo, quando comparado a todos os outros poemas e epitalâmios de boda.




Imagem: Marc Chagall, David et Bath-Schéba na Bíblia, 1958


12. Os passos vacilantes da noiva superados pelas promessas servem para demonstrar o interesse do noivo por ela. Suas vestes estão bordadas em ouro novamente porque é a favorita e o seu favoritismo não cessa, sendo o ouro resguardado para os campeões e campeãs (v. 14); vestes multicolores, porque não enfada, pois o noivo a examina no altar e vê nela aspectos de beleza que não havia percebido antes (v. 15); acompanhada de virgens, porque suas companheiras não lhe sabotam a preferência nem competem (v. 15); estão felizes por ela. Suas amigas permanecem virgens porque o noivo apenas tem seu olhar para a noiva, somando um completo domínio de si e sua maturidade, por causa do amor dela.

13. Ao fim, o Salmo canta o propósito da união entre noivo e noiva: dar continuidade e fazer sucessão à vida, proporcionando uma beleza sublime estendida às próximas gerações, por meio de louvores (v. 17 e 18). Será tarefa deles repetir esse momento para os seus descendentes, “príncipes sobre a terra”, precedentes e especiais entre todos, porque nasceram de um amor perfeito, legítimo e autêntico, e devem dar continuidade a ele.




A Rainha de Sabá visita o Rei Salomão, Lucas de Heere, 1559


14. Já o Cântico dos Cânticos, mais longo, é mais rico em imagens poéticas, as quais buscam descrever a beleza inigualável e deleite indizível de amar e se saber amado. É reputado ao Rei Salomão, e também se inicia pela voz da mulher. É mais longo que o Salmo, porque fala de todas as fases de um relacionamento entre esposos. Nos textos bíblicos o amor de um casal é sempre marcado por banquetes: Jacó disse a Labão, para desposar Leia: “ “Traga minha mulher, porque meus dias estão completos, e voltarei para ela”. E Labão reuniu todo o povo daquele lugar e fez um banquete”. (Gênesis, 29, 21-22); “E ali Sansão fez um banquete, porque é isso que os jovens fazem.” (Juízes, 14, 1, 7-8, 11). Na cultura greco-romana, Cadmo é considerado o primeiro a realizar uma cerimônia de casamento, descrita na literatura como festa de harmonia, com muitos deuses participando dela. Tanto na cultura hebraica, quanto na cultura greco-romana, a comida e a bebida têm uma especial importância na celebração do amor entre os noivos/esposos; daí talvez a abundância de imagens poéticas que evocam comida e bebida em diversas passagens do livro.

15. Os versículos do livro de Jeremias (Jer 33:10-11), “A voz da alegria e a voz da alegria, a voz do noivo e a voz da noiva” foi integrado ao texto da sétima bênção em sete bênçãos, e se tornou uma das leituras mais populares em casamentos judaicos hoje. No Cântico dos Cânticos, se faz notar também a presença da voz da noiva e da voz do noivo ao longo de todo o livro; e em todos os trechos, reportam expressões de beleza e alegria.

16. O primeiro capítulo se inicia com uma paixão nupcial fulminante. Tudo é excessivamente mais arrebatador do que se possa descrever. O amor, além de poético, também se manifesta de um modo carnal entre eles. Um banquete para a alma, lugar de prazeres e de união onde a alma se deleita.

17. No segundo capítulo, os esposos enamorados, ainda ébrios de felicidade, dialogam em versos; vêm as estações, a repetição dos modos e das coisas; e o casal, em comunhão de versos que se alternam, escapam dos perigos, mesmo estando meio a espinhos, e à mercê de predadores, o amor representado na vulnerabilidade das corças.

18. No terceiro capítulo, o esposo some; a esposa tem de procurá-lo e o vê dedicado a outros afazeres, relacionados ao combate contra adversários; e ele se encontra numa liteira, protegido por uma complexa combinação de forças de governo, inclusive mulheres. Está fechado para ela. A esposa, no entanto, não se deixa abalar pelo abandono, nem pelo ciúme; e encoraja que as “filhas de Sião” não o incomodem e o agradem, contemplando-o e louvando-o. Isso irá se repetir mais duas vezes.



Piero della Francesca- Lenda da Verdadeira Cruz - a Rainha de Sabá conhecendo Salomão, 1452-1466


19. No capítulo 4, o esposo, vendo seu despojamento e a perfeição de seu amor, se re-apaixona por sua esposa. Ela ganha novas feições sublimes e, permanecendo sua parceira, é agora também irmã (v. 9-10). O esposo também quer reconquistá-la, ao perceber sua fidelidade sem mancha (v. 7), delirando por constatar que ela se somou a ele em seus esforços, mesmo quando isso a excluía. Há os “frutos deliciosos” (v. 16) de uma relação de amor que, mesmo nos momentos de distância e de ausência, persiste.

20. No capítulo 5, há o conflito e as vicissitudes. O amado já não se encontra mais disponível para gozar das delícias do amor; e o amor da esposa por ele é rechaçado pelos seus guardas como algo indesejável, que o vulnerabiliza; as amigas já não querem ajudá-la a trazê-lo de volta para junto de si, por não ver nele nada de diferente dos outros homens. Entretanto a esposa não se sente usada e está totalmente dirigida à memória que retém do esposo, que para ela é mais viva e a verdadeira imagem dele, face ao presente de agrura e dificuldade. De não conseguir ver o rosto do amado: “Dizei-lhe que estou enferma de amor.” (v. 8). Mas o amado não quer mostrar a ela seu rosto, sem poder lhe dar algo digno da memória que ela retém dele.

21. No capítulo sexto, as amigas se comovem, já que a esposa não quer mais ninguém além do amado; e a ajudam a encontrá-lo. As amigas passam a louvar as virtudes da esposa; o que atrai de volta a atenção do esposo a ela, mais do que os seus problemas. O amado reconhece então na sua esposa virtudes militares, de lutar pelos seus objetivos, até que eles sejam atingidos completamente, sendo ele vencido pelo seu amor. Conhecendo a temperança da esposa, ele se dá conta da volubilidade de sua mente e de seus desejos, ao afirmar ter colocado sua alma nos carros de Aminadab (v. 12). É estabelecida entre eles uma relação de confidência das próprias fraquezas.

22. No sétimo capítulo, o esposo percebe que para conquistar tudo o que mais deseja, precisa antes conquistá-la: “Eu sou para o meu amado o objeto de seus desejos.” (v. 11). Amando-a, ele fez tudo que era seu dela. Agora, para gozar e dispor do que tem, precisa antes desejá-la. Quando ele ofega por problemas de saúde, ela lhe traz mandrágoras, para curar seu espírito (v. 14). Se estabelece uma parceria motivada pelo amor mútuo e pela partilha integral do melhor e do pior.



Pintura da Rainha de Sabá do século 17 d.C., em uma igreja em Lalibela, Etiópia e agora no Museu Nacional da Etiópia em Adis Abeba.

Por A. Davey from Where I Live Now: Pacific Northwest - The Queen of Sheba. Uploaded by Elitre, CC BY 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=21918820


23. No oitavo e último capítulo, a relação de amor se estende publicamente; a noiva deseja que o amado fosse irmão, para que tivesse menos preocupações, e não precisasse se proteger dos demais homens, retendo a exclusividade do amor apenas ao esposo. Contudo, ele quer permanecer esposo, e não irmão, para continuar satisfazendo suas expectativas; é necessário proteger então a noiva, fazendo com que ela permaneça dentro de um lugar murado com torres bem protegidas, para que a cidade não seja invadida. Também para dispor da felicidade (o vinho) o noivo deve cuidar da vinha; e a vinha da noiva não pertence ao noivo, mas a ela mesma, que com soberania decide oferecer ao noivo, para dispor dela. Outros amigos são necessários, entretanto, para cuidar da vinha e protegê-la; receberão atenções, se bem em muito menor medida que o noivo. Essa atenção se dá por meio da felicidade em ver a felicidade do casal prosperar; pelo que a noiva convida o amado a amá-la, a fim de inspirar os demais, e agradecer pela proteção que receberam. O amor dos noivos, por ser espontâneo, dócil e desarmado como as corças, é vulnerável; precisa de constante esforço de proteção e de coadunação mútua. Não há fim nesse trabalho de amor, mas ao final, ele foi preservado.

24. As imagens sacras e poéticas no Salmo 45 se voltam para o momento da boda, da celebração, da decisão dos noivos. Já o Cântico dos Cânticos demonstra o trabalho constante que existe no esforço da esposa e na abertura do esposo para manter o amor vivo em um relacionamento. Os elogios mútuos e a devoção um ao outro, expressa em louvores, preferência e reencontros, o cuidado mútuo, conduziu a relação dos dois a um equilíbrio duradouro, que demanda constante supervisão um do outro; mas que encontra nisto o motivo de grande satisfação.

25. A beleza dessas duas grandes jóias da literatura universal, bastante populares na Sagrada Escritura, não está apenas no seu conteúdo, entretanto. Se bem, num primeiro olhar, a figura feminina sobressai em protagonismo em ambos os textos, existe uma beleza também fora dos textos: pois o lado masculino é que teria pensado e narrado os versos sublimes no qual elas são as protagonistas fazendo tudo que é necessário para o amor durar e perseverar. De não ter incluído reclamações, nem retido nada espinhoso, nos diálogos que os noivos e esposos mantêm um com o outro, o lado masculino sobressai como o autor que guarda recordação e registra apenas o que é doce e belo no amor entre eles. O que parece infinitamente ingênuo, açucarado e romântico é, portanto, o resultado de um esforço inexplicável e quase sobrenatural de quem ama, de esquecer de tudo que não esteja contido na felicidade de ambos. O resultado da perfeita renúncia de si mesmo são textos de amor sublime, eterno, sagrado. Cristo não está nesses textos: mas já transparece nos autores.

26. No Talmud se encontra uma interpretação do casamento de Salomão no Cântico dos Cânticos. De acordo com o comentário do Rabino Akiva (? d.C.-132 d.C.), tanaíta hebreu que introduziu da Halachá (lei oral) a Mishná (registro da lei oral), o Cântico dos Cânticos é "o Santo dos Santos” e tudo o que está escrito nele seria uma parábola e não uma simples descrição. Conforme o Rabino, o livro não se referiria ao casamento do Rei Salomão, mas sim a uma metáfora para o “casamento” do povo de Israel, quando recebeu a Torá no Monte Sinai. O paralelismo que se faz entre Maria, no Evangelho de Lucas, e a Arca da Aliança, no Livro de Samuel, produz também grande riqueza de imagens se acolhemos essa interpretação rabínica: no Novo Testamento, a mulher se faz, com sua presença amorosa e disponibilidade, uma referência e constante lembrança dos mandamentos de Deus e de sua misericórdia. Depois de Cristo, como sugere São Lucas, a mulher se torna a arca da Lei.



* Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata brasileira.

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