O Amor nosso de cada dia
Ana Paula Arendt*
Muita discussão leio na imprensa ao redor do artigo 142 da Constituição Federal: e com alguma frequência se atribui ao Dr. Ives Gandra Martins a ideia de uma inarredável função moderadora das Forças Armadas, quando nenhuma outra opção restasse para restabelecer a harmonia entre os Três Poderes. Entendo que ele discorda da leitura que fizeram de sua tese.
Apesar da minha ridícula formação jurídica, certamente ínfirma, perto da dele, sigo pensando que, mesmo em última instância, as Forças Armadas não poderiam ajudar com o art. 49, XI: pois não se trata de um exercício de natureza militar, defender uma atribuição legislativa. E existem muitas forças e opções concebidas dentro da Constituição Federal que poderiam atuar como fator de re-equilíbrio, como plebiscito e referendo, algo já feito no passado. Recordei a ele no auge da discussão Marco Lucchesi, no poema “As astúcias de Clio”: “A História não guarda tesouros latentes à espera de um resgate unívoco.”
De modo que tampouco pretenderia que a minha perspectiva intuitiva pudesse ser leitura definitiva, havendo tantas possíveis leituras do que desejava o Constituinte. Um regime político dependente de intervenção militar sendo talvez o último cenário que se pudesse cogitar, já que a Constituinte se prestava a deixar essa realidade para trás.
No entanto, não é, nem de longe, a tese do D. Ives Gandra Martins sobre o artigo 142 ou qualquer outro dispositivo constitucional o seu escrito mais valioso. Os meus leitores precisam saber do grande tesouro que mesmo os melhores juristas do mundo jamais teriam produzido. Tesouro que tive a honra de receber e guardar.
Trata-se dos seus livros de sonetos escritos para sua esposa. Remeteu-me ele o seu valioso livro, “Sonetos de amor para Ruth Ausente”. Eu o li em um dia, apenas!
A dor inconsolável. O choro. A solidão. O amor verdadeiro. A cura pelo mesmo amor. O amor católico, dos tempos antigos. Do qual nos fala Michel Zink, secretário perpétuo da Academia Francesa, o canto pastoril de guardar a pessoa amada, o casamento por amor que se dava no tempo medieval, guardado nos escritos de Jean Froissart, o amor que decorre de se ter consigo um arbusto da juventude. Ah! Os meus leitores merecem abrir este livro, também.
É rico de detalhes. Começa já nas abas, o primeiro detalhe: sem comentaristas. Como deve ser o poeta: a mais pura solidão. Apenas a epígrafe:
“Nos céus, Deus a recebe como santa,
De lá a todos nós protegerá.
A Virgem cobrirá com sua manta,
Mais bela que a da bela de Sabá”.
Para quem ama livros e poesia, e guardou a delicadeza de ter sensibilizado aos detalhes das leituras… Surge o silêncio solene, logo de início. Depois, as imagens do casal, de quando se conheceram. O nítido afeto, o corpo consciente, o amor no seu auge. As mãos que tinham os meus pais, na foto mais bonita e saudosa que guardam, de quando eram jovens.
É um livro para chorar, chorar copiosamente, demais, demais, com a perda da mulher amada - ainda que seja uma perda para Deus, com o que tenho escrito a ele, que não deve haver sofrimento em perder alguém para Deus… Mas quando se é poeta e se conhece a dor de escrever um soneto, quando se vive o sentimento que o poeta teve e oferece em suas linhas, em expiação de suas dores… É um abismo, mas um abismo do qual o poeta recupera o leitor, à medida que vai se consolando.
Depois de se recuperar da dor, apenas. É que o leitor pode voltar a pensar na magia, na coisa tão rara de se encontrar nestes tempos: o casamento bem vivido, de amor e fidelidade entre os esposos.
Nos contos de fadas, a felicidade é o fim: e viveram felizes para sempre. No casamento, a felicidade, entretanto, é apenas o começo. Como ser feliz com a mesma pessoa a cada dia, todos os dias? Parece impossível. Não haverá dias infelizes em um casamento? De solidão? De aborrecimento? Todos os dias não será algo excessivo? E o convívio contínuo, ininterrupto, não seria mais fadado ao fracasso, ainda?
Tantos advogados bem reputados consideram que o divórcio é o rumo natural da degeneração de um relacionamento que se paute na proximidade. Mas neste livro de Dr. Ives se demonstra o seu extenso trabalho de sonetos ao longo da vida: ele prova que é possível, sim. Ele viveu um grande amor, no casamento! Os versos estão todos impregnados de um amor verdadeiro, da fragrância singular, inesgotável, da fé no amor.
E nisto pensei em trazer aos leitores uma breve reflexão sobre a monogamia em nosso tempo. O casamento católico, feito de Sacramento, talvez pudesse ter tido algum efeito benigno nesse resultado positivo? Talvez o Sacramento explicasse como um homem poderá amar apenas uma mulher ao longo de sua vida, e esquecer de todas as demais que se encantaram por ele? O amor nosso de cada dia nos dai hoje… O pão da vida.
Ora, existindo tantos casamentos católicos que não resultaram em amor entre os esposos, e ainda aqueles que foram anulados, poderia-se dizer que o amor monogâmico em um casamento não seria algo feito na Igreja: quem sabe uma loteria.
Talvez Dr. Ives pudesse servir de inspiração para melhores conselhos. Se bem os conselhos servem sobretudo para a experiência de quem viveu, e sendo cada pessoa tão particular em sua trajetória, talvez não pudessem ser transplantados… E eu me pergunto o que uma mulher terá feito para cativar a tal ponto um homem, de amá-la perdidamente, e apenas a ela, fazendo-o ter o privilégio de sentir completamente a sua ausência, e coroar o amor perfeito, depois da morte?
Ele escrevia um soneto para a esposa a cada semana, religiosamente aos sábados, como se vai à missa religiosamente aos domingos, sem faltar uma semana… Na pauta de assuntos de seus sonetos, as coisas mais simples que se vivem em casa. As rimas e melodias. O rigor do amor esponsal, como ele disse: o amor de “black-tie”. Tudo o que faria uma mulher se elevar às alturas, e se aferrar com tamanho vigor ao seu dever conjugal e à sua virtude, para honrar esse mérito: um soneto de amor por semana em sua homenagem.
Hoje os papeis estão bastante invertidos, e os casais já não seguem mais o roteiro típico do amor cortês, iniciado pelo homem. A mulher tem que conquistar o homem, e seduzi-lo de modo a retê-lo. Muitas mulheres se exaurem nesse processo e perdem a beleza que tinham - muitas vezes redundando na falta de êxito. Mas esse formato do amor romântico, em que o homem fornece à mulher os subsídios para que o amor dela sobreviva e empreenda…. Palavras doces… Que aparam arestas, reparam danos, regeneram. Não terá sido mais vantajoso e mais bem-sucedido?
Quando se escreve, quem escreve? Quando se ama, a ponto de perceber ser apenas metade de um só. Não é o poeta que escreve, mas o amor que escreve por meio dele.
E Dr. Ives e sua esposa tiveram muitos filhos. Poucos casais sonham ainda ter muitos filhos. Simula-se a juventude eterna e vivenciam então apenas o namoro, a disputa de atenções e os jogos de sedução, sem aprofundar nos abismos que residem no cotidiano, nas pronunciadas montanhas do distanciamento, nas curvas que exigem criação, recriação, perseverança e idealismo. E fazem carreira em alta velocidade por medidas estipuladas por outrem, alguns por vezes sofrendo acidentes em disputas, outros saindo da pista… Para atender a algo que não nos pertence, realmente.
O relacionamento que não se aprofunda precisa ser alimentado continuamente por conquistas e provas, sinais exteriores. Arriscaria dizer que um relacionamento baseado num jogo de interesses sexuais que ora se coadunam, ora entram em conflito, para retroalimentar-se, por mais resultasse em um vínculo longo, não poderia de modo algum ser reconhecido como um casamento. Pois o matrimônio católico está num sacrifício bem mais sublime, bem mais prazeiroso.
O amor em banho-maria, aquele em que o ego vai sendo despido e dilapidado, dia após dia, por viver no mesmo espaço, nas mesmas circunstâncias e as mesmas dificuldades, resulta sendo mais doce. O interesse um pelo outro no seu sentido original: a necessidade de conhecer mais do outro e trazer mais da vida do outro para si: interesse por “ser entre”, “ser junto de si”. O amor de todo dia nos eleva para além do espaço, das circunstâncias e das dificuldades, num mundo exclusivamente criado pelo casal e para o casal… O jardim exclusivo… Partilhado e partilhável com todos ao redor.
Neste livro de sonetos mais recente de Dr. Ives, aparece o amor em seu estado mais puro e inefável, algo diáfano, leve como os anjos são leves. E ele conta a ela, após sua morte, em seu diálogo:
“À espera do tempo X
Curta viagem
Somos meros passageiros
Em curtíssimo trajeto,
Num mundo com atoleiros,
Atrás de um caminho reto.
A vida passa depressa,
Sem sabermos se julgados
Por nossos atos Quem meça
Seremos por nossos fados.
Penso, Ruth, que somente
Teu amor nesta passagem
Tornou muito diferente
Pela existência, a viagem.
Mesmo assim o coração
Bem sente a separação.
À espera do tempo XI
Aniversário de casamento
Há sessenta e três anos, neste dia,
Nossas vidas unimos para o eterno
Vivemos, até pouco, na alegria
De amor primaveril e sem inverno.
Separados, porèm em nossa vida,
Consola-me somente esta saudade,
Na certeza que teu olhar, querida,
Pousar em meu olhar, em fulgor, há-de.
Somos dois, mas um só há muito tempo.
Deus nos deu um querer que não tem fim,
Pois d’Ele teve a bênção no seu templo,
Que se tornou p’ra nosso jardim.
Embora agora, estando separados,
Na eternidade, estamos nós casados.
À espera do tempo XII
O soneto sabatino
Todo sábado sigo o mesmo rito
De lembrar-te, compondo-te um soneto,
Meu amor é mais amplo que o infinito
Mas no Coral cabendo de um coreto.
Nos tempos de passeios pelas praças,
O namoro era puro e respeitoso
E de Deus recebia muitas graças
Num querer cada vez mais luminoso.
Saudades, todas são inspiradoras,
Embora rasguem sempre o coração,
Nos meus versos eternas cantadoras,
Que afugentam em mim a solidão.
Como é duro dormir sem ter-te ao lado,
No leito, nosso templo de casado.
À espera do tempo XIII
Nossa luta pela Pátria
Continuo, querida, em plena luta
ultimamente, como cidadão
A paz é pouca gente que desfruta
E são muitos que assaltam a Nação.
Quando nós dois cursávamos Direito,
Procurávamos viver democracia,
Sonhávamos que fosse bem perfeito
O poder, tendo o povo na alegria.
As ambições, porém, colateral
efeito apenas dão à sociedade
E como cupins, comem catedral,
onde se presta culto à liberdade.
Querida, volto ao tempo do passado,
Quando, os dois, batalhamos, lado a lado.
Ives Gandra Martins, p. 38 -41, op. cit.
Nisto adentro o problema do Sacramento, para tentar responder à dúvida se fez grande diferença ser católico.
Afinal, não sou proselitista, nem acho que tudo gire ao redor de uma instituição. Sendo por certo a Igreja um corpo místico, muito além dos aspectos institucionais com que reconhecemos materialmente da sua existência, teríamos forçosamente que estender esse corpo a todo aquele provido de retas intenções em se aproximar de Deus.
E se é possível ser católico e não atentar para observar e respeitar o Sacramento do matrimônio, talvez objetivamente, pelas evidências, isso não faça a menor diferença? Para o poeta, isso faz visivelmente diferença: “Pois d’Ele teve a bênção no seu templo,/ Que se tornou p’ra nosso jardim”.
Se há matrimônios bem sucedidos de casais que não são católicos, talvez conviesse analisar se, no fundo, não estão fazendo o que alguns casais católicos deixam de fazer. Certamente a importância do Sacramento vem da observação e respeito, não necessariamente de ostentá-lo. “Somos dois, mas um só há muito tempo”, diz o poeta, pela fé católica. Homem criado como um só, unidade feita de dois: macho e fêmea. Pela fé católica, existe uma mulher especialmente preparada para saciar completamente um homem, de gozo, de delícias, de vida eterna. E vice-versa. Alguém que torna muito diferente “Pela existência, a viagem”.
Para quem ainda não tem familiaridade com o Catecismo: existem sete Sacramentos a ser observados na Igreja Católica, nem todos simultaneamente, nem por todos, mas que invariavelmente demandam atenção de todos. O batismo, crisma (confirmação) e eucaristia são os alicerces. Os demais, penitência, unção dos enfermos, ordem e matrimônio. Todos exigem uma constante vigília, para ser observados, compromissos dos quais manam graças; mas dois desses Sacramentos demandam a continência - a ordem e o matrimônio.
A nossa psiquê se volta para a juventude, constantemente atrás de novidades arrebatadoras, de prazeres desconhecidos, de sabores ainda não experimentados. Mas o que fazem de especial os padres e os casais que conseguem ser continentes no exercício de seus Sacramentos? Como conseguem aprofundar o convívio em suas vocações, de maneira a extrair bens espirituais, com grande abundância, a ponto de partilhá-los?
E trago a minha experiência errante, o meu contra-exemplo. Fui triste demais em minha tentativa de dominar a mim mesma. Para não entrar nos detalhes de minhas dificuldades, o fato é que, depois de debater-me tanto, apenas depois de desistir simplesmente, Deus me provou possível a continência. Confirmo o que disse Santo Agostinho: é pela graça divina que se consegue observar e respeitar um voto, ou um Sacramento. Não é pelo nosso esforço ou mérito. Alguém tem de nos conceder essa graça, sobretudo quando a pedimos sinceramente. Sempre que confiei meu propósito à minha própria conduta: foi uma desgraça. Quando a pedi com toda a minha força e toda a minha alma: o zelo que experimentei de outrem foi imenso.
Muitas ocasiões houve, em todos os espaços e lugares, nos quais eu teria, pelas minhas fraquezas, abandonado por completo a esperança. Entretanto, sempre algo ocorreu que me preveniu de cair, ou abandonar por completo a virtude, algo me trouxe de volta ao estado que eu ardentemente desejava. A natureza fidelíssima não está em nós, essa me pareceu a descoberta do que tenho vivido até o momento. Todo Sacramento é, por concepção, um grande mistério. Tanto mais se pode dizer, quanto mais se olha para ele.
Então por que Deus não concede a graça sempre, por que em certas ocasiões, mesmo quando lhe pedimos, isso não ocorre? Penso que temos um problema de ilusão, de cegueira. Achamos que pedimos. Mas não pedimos. Ficamos nos cobrando a si mesmos, em dúvida de nossos méritos, para que, nos colocando em uma posição dúbia, se possa antever, numa brecha, o gozo do pecado – do agir contra a própria consciência. Sabemos que o gosto é amargo, e a sensação de cair é péssima. E por que se fica à espreita nessa brecha? Na paróquia onde fui catequista, havia uma frase de Freud - o pároco, ex-reitor de um seminário em Veneza, permitiu estendê-la. “Ser inteiramente honesto consigo mesmo é um bom começo”. (“The Complete Letters of Sigmund Freud to Wilhelm Fliess, 1985”).
Além de abandonar a sinceridade consigo mesmo, fica-se com maior frequência à espreita nessa brecha por não ter encontrado, ainda, o grande amor de sua vida, aquela metade criada para nós de perfeito encaixe, que se deseja ardentemente e cada vez mais: é o que acho. O amor verdadeiro é aquele dirigido à pessoa pela qual nos tornamos Cristo: feridos e resignados. Mas cheios de paixão. Perdoando tudo. Como encontrar então a pessoa pela qual somos capazes desse amor radical? Ou saber que encontramos. Quando se encontra, sim, algo arrebatador deve se passar, sinais incontornáveis da comunhão de uma mesma alma, apesar de todas as diferenças. O amor pulsando tanto de um lado como do outro, e aumentando com o tempo…
Parece então que saber depende de buscar para encontrar: o núcleo fundamental do amor absoluto, capaz de se resignar e abençoar, mesmo ferido e humilhado, indo ao encontro de quem precisa, para fazer-se a vítima expiatória e sagradora de uma vitória do amor; ainda que o amor seja tido por tantos como algo tolo e desprezível. Talvez seja um aprendizado que depende da proximidade com a natureza fidelíssima de um Ser Maior, capaz de estender esse atributo a quem bem queira.
Muitas pessoas vão em busca do sagrado, ainda que não o saibam. Querem um Sacramento. Por isso eu discordo de Freud: não é apenas pelo valor simbólico, ou pela necessidade de cultura, que se desenvolve a religião. A religião se desenvolve por uma necessidade imediata de experimentar o que é sagrado: porque é mais saboroso. A alma humana precisa delimitar certos territórios sagrados no qual se torna capaz de experimentar sensações mais sublimes. De Santa Teresa d’Ávila se dizia tinha êxtases. E a êxtase vai muito além do orgasmo. A delícia da companhia. A segurança do amor gratuito. Tudo isso leva a um gozo sem limites que celebram os Santos. O poeta canta a saudade desse tempo seguro, de um amor escoltado por Deus: “E de Deus recebia muitas graças/ Num querer cada vez mais luminoso.”
Como obter a proximidade com esse núcleo do amor radical? A religião ajuda? Eis a grande questão. Nas missas e na vida pública, muitos querem se parecer com Cristo, simular a êxtase. Em certo ponto, isso também se traduz por vezes no casamento civil, a posição social. Mas quantos católicos gostam efetivamente de ser como Cristo, entre quatro paredes? Essa honestidade que se transcorre na vida privativa, íntima, longe dos olhos dos pares, da família e da sociedade torna o Sacramento do Matrimônio coisa muito sublime, muito intensa. Ou se tem ou não se tem.
Os meus pais e todos os meus tios são casados e felizes: e apesar de contar com alguns Sacramentos, não são católicos religiosos. Vendo-os numa tamanha consonância de viver juntos radicalmente, o que se torna ainda mais intenso pelos filhos, tudo indica que serão casados até à morte. Poderiam ser ainda mais felizes, sendo mais religiosos? Eu os observo quotidianamente.
Talvez o casamento possa ser comparado a um campo, como já foi outrora comparado o reino dos céus ao campo em que se sabe haver um tesouro: vende-se tudo o mais para comprá-lo (São Mateus 13, 44). Um campo fértil pode produzir muito, modestamente, ou pouco, ou talvez nada, a depender do esforço e atenção que se empenha em cultivá-lo. Mas Cristo fala de um campo onde existe um tesouro: algo que não depende de nosso esforço, uma vez comprado o campo. E para comprar, é preciso vender todo o resto que se tem.
Gosto dessa parábola do campo: porque consiste em atribuir um maior valor, valor de tesouro, ao campo que corresponde ao “reino dos céus”, digamos, nesta analogia, um amor verdadeiro que se tenha, um amor que correspondente ao nosso afeto; e deixar de lado todo o resto. Assim são os meus tios e os meus pais: não se interessam tanto pelos demais campos, “vendem” e “trocam” tudo o mais, para padecer no paraíso de minhas tias, minha mãe. O sabor da comida, o vai e vem dos filhos e netos pela casa, o movimento de cada dia. O amor nosso de cada dia. “E de Deus recebia muitas graças/ Num querer cada vez mais luminoso.”
Parece também um amor que demanda desarmar-se em uma proximidade ativa, diária, ininterrupta, ainda que apenas em pensamento e intenções. É extremamente cansativo, mas também revigorante, pensar que isso pode ser possível. “E de Deus recebia muitas graças/ Num querer cada vez mais luminoso.”
No aprendizado do Sacramento do matrimônio, contudo, tantas características particulares do ser humano têm de ser consideradas para não ferir o amor: não fazer adentrar terceiros, não extrair trechos de um diálogo para um árbitro visível ou invisível, não relatar algo que pertença ao domínio conjugal com vistas a fazer defesa de si mesmo, não causar dano no outro esponsal, não agir sem consentimento, não profanar o corpo do outro, que passa a ser o seu… Manter um agir solícito frente à necessidade, socorrer a outra metade… Condutas sem as quais se viola o Sacramento, e o matrimônio não prospera, nem ganha significado. E eu diria ainda que se aplicaria não apenas ao matrimônio, mas a todo relacionamento baseado no afeto.
Muitos nãos e proibições para manter a sanidade numa rotina diária rendundariam em cansaço? O trânsito também tem muitas proibições. Mas o que seria do trânsito sem as proibições? Cansaço mesmo, meu amigo, é não respeitar o Sacramento, com os bons modos. A falta de bom senso desde Napoleão foi incomensurável, ao suprimir paulatinamente o que demanda o Sacramento do matrimônio, e determinar ao bel-prazer do mais forte tudo que se pode consumar: pela força de uma legislação, o que seria lícito. Então o trânsito se torna caótico e imprevisível, já que cada um decide o que deve ou não ser respeitado, na conduta ao volante, conforme uma interpretação legal, ou uma determinação própria… E o vínculo jurídico, seja ele à moda antiga, ou nos novos formatos de associação, não reflete a realidade sublime do amor que tudo transcende.
Meus pais e meus tios não são religiosos, mas cresceram imersos em uma cultura católica, religiosa, nas cidades e na família. Tiveram uma vantagem desde o início. Meu tio mais velho conta de um modo muito especial, com poucas palavras e com os olhos brilhando, fixos num lugar distante, que seus pais, meus avós, dançavam todas as noites. Essas delícias de crescer debaixo de uma árvore, dos pais se amando em palavras e carinhos são, ao mesmo tempo memórias benditas. Por outro lado, um fardo. Ao não se encontrar algo assim, para celebrar e levar adiante a experiência dessa segurança, a vida parece incompleta. As novas gerações haverão de corrigir essa lacuna. Mas e quanto à nossa?
Hoje temos então a situação em que sistemas de direito civil e canônico convivem paralelamente, o casamento civil/companheirismo; e o religioso. Mas é o sentido religioso, de respeito ao que é sagrado, que garante a harmonia e o aprofundamento dos vínculos em um convívio, e não uma interpretação legal do contrato de um casamento.
Sou também da opinião de que, sem o casamento religioso, o casamento civil se torna muito mais instável e susceptível a brechas que o Estado tolera, ou nas quais simplesmente não interfere: sempre em desfavor da mulher. Quando se fala em casamento civil, fala-se em contrato, mas o que se tem diante de si num Sacramento não é um sistema de incentivos e punições. Esses sistemas se aplicam bem para os animais, sistemas que em não funcionando, se dizem anomalias… Mas o ser humano é muito mais complexo do que o corpo que o anima. Tem alma. Ama. E quer amar profundamente, aprofundando o amor, para encontrar propósito e sentido. O respeito a um Sacramento demanda um conjunto de práticas que convergem para elevar a importância do compromisso, o que leva ao aprofundamento do sentimento conjugal, produzindo as melhores colheitas no campo que se comprou. O gozo de um tesouro escondido. Só os esposos que venderam tudo o mais para ter esse campo sabem do valor dele.
Certos votos não deixam de ser, para todo efeito, um casamento, já que emprestam características parecidas, em especial a fidelidade. De observar o que deu certo, e o que tem me mantido em estado esplêndido nos meus votos, deixo para o leitor estes dois sonetos, um diálogo com Vinicius. Vinicius, herói das paixões, poeta que se entregava com muita convicção e afinco, sobretudo depois que a mulher anterior lhe abandonava. Ele não perdia a esperança no amor, e soube amar como ninguém!
Eu me lembro quando, no templo, onde deveriam ser celebrados os votos esponsais, ouvi na homilia uma imprecação de Vinicius – o padre teve essa infelicidade: condenar alguém que alegrou a minha infância, que amou profundamente, e que foi abandonado, e se entregou às paixões. Na religião católica, quem celebra os votos são os esposos, não o sacerdote. Uma homilia do que seja o amor, sem ser uma das partes que ama: pouco recomendável, se me permitem anotar.
Tendo sentido o coração de Vinicius tantas vezes, e o consolado em pensamento, e tendo estado tão resistente com a ideia de prosseguir em uma celebração que eu não havia preparado, penso, no entanto, que tudo se transcorreu de um modo perfeito, para uma maior ilustração da vida, dos sentimentos, da plenitude, para compreensão de si própria e de quem se ama. Hoje Vinicius é citado pelo Papa: Francisco aborda o casamento como lugar de alegria e prazer entre os esposos, na carta encíclica Amoris Laetitia: "a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida". É preciso aumentar a compreensão da condição humana, para bem vivê-la.
Soneto de Fidelidade
Ana Paula Arendt
Por ti não terei nenhuma fidelidade:
se me deixares sequer por um instante,
sairei livre em busca de minha felicidade
e minha vida será perfeita como era antes.
Por ti não perderei nenhuma noite de sono
E seu meu peito doer, irei à poesia, ao bar, ao médico…
Recordarei das tuas palavras módicas,
quando eu te entreguei os meus sonhos.
Mas se então me amares muito e de verdade
a ponto de responder sempre amor de volta
E me entregares no teu jornal sem avarias
as coisas que dizemos com liberdade,
fazendo dos meus sentimentos escolta,
me obrigarás a ser fiel todos os meus dias…
Soneto de Gostar Muitíssimo
Ana Paula Arendt
Eu quero gostar muito de você.
Por isso pedi o seu consentimento.
Quero me pergunte sempre o porquê
de tanto amor que lhe juntei por dentro.
E quero amar ainda muito mais:
que seja o único por mim amado.
Quero o meu rosto seja desviado
se não for seu rosto, a paixão desfaz.
E quero conhecer apenas seu cheiro:
toda essência outra me seja estranha.
Só os seus olhos saibam a senha
de abrir os meus olhos por inteiro,
guardando coisas em memória tamanha
de ser meu amigo, amor e obreiro.
*Pseudônimo literário de R. P. Alencar, cientista política, poeta e diplomata.
Comments