O vazio da superioridade
- Ana Paula Arendt
- há 6 dias
- 10 min de leitura
O vazio da superioridade
Ana Paula Arendt*
“Evil comes from a failure to think. It defies thought for as soon as thought tries to engage itself with evil † and examine its premises and principles from which it originates, it is frustrated because it finds nothing there. That is the banality of evil”. Hannah Arendt.
Três fatos me chamaram a atenção recentemente, os quais penso merecem uma análise um pouco mais detida de nossa parte, ainda que tenhamos o custo da pausa das nossas atividades criativas e mais necessárias.
Nas relações interpessoais, na política e na arte, precisamos estar atentos às ideias que se encontram na origem da expressão e da manifestação de certas pretensões, e esta é uma recomendação antiga: ”vigiai” (São Mateus 25, 13).
O primeiro fato que deveríamos vigiar é a deportação de uma doutoranda brasileira, Márcia Rodrigues, pesquisadora da USP, que se encontrava em Portugal, em situação legal e com visto de estadia para cursar seu doutorado. Em seus dias livres resolveu visitar a França (notícia publicada no Portal Metrópoles hoje, 12/06/2025, em <https://www.metropoles.com/sao-paulo/quem-e-doutoranda-deportada-franca>). Ela relata ter sido coagida pela autoridade migratória a assinar papeis e ter sido deportada. No que talvez seja sua primeira experiência, ficou com medo: não ligou para a autoridade consular brasileira mais próxima de sua localidade na França, nem se recusou a assinar algo sem antes chamar o superior do funcionário para obter melhores explicações, não exigiu o direito ao apoio de um advogado.
O detalhe que falta, para que o leitor entenda, não parece estar no texto nem na documentação. Seria necessário visualizar a cor da sua pele, pois ela é negra. Ora, não está claro por que outros estudantes ou pessoas com visto, em condição similar, poderiam circular no espaço Schengen, e ela não. O Itamaraty colocou-se à disposição da cidadã; mas ainda não manifestou, ao menos até o momento, um pedido de esclarecimento à autoridade francesa. Todo e qualquer cidadão brasileiro deveria esperar que essa situação constrangedora não venha a ser normalizada, e confio que os meus colegas não deixarão de atuar para esclarecer a situação, prevenir condutas danosas e buscar restabelecer a dignidade da vítima. Por que a cidadã brasileira, detendo um visto que em tese permitiria circulação no espaço Schengen, e tendo vinculação com uma universidade em Portugal, mesmo tendo sido informada sobre a legalidade de fazê-lo, foi barrada e deportada? Por que o tratamento dado foi diferente, àquela pesquisadora? A lei não se aplica a ela, não teria direito aos mesmos direitos? A Hannah Arendt original, que homenageio, bem nos recorda que o fundamento dessa negação de ter direito aos direitos é uma das principais característas cerne do pensamento totalitário. A negativa de direitos em função de cor, etnia ou raça era o cerne do nazifascismo. O Estado francês não é nazifascista, naturalmente. Então, por que a doutoranda da USP deveria ser tratada como alguém inferior, por que não teria direito aos mesmos direitos? Qual a justificativa? Não tem, ainda? Como lemos em epígrafe: assim é o mal. † Lança o vazio e quer impor que todos se contentem, como se fosse algo inexorável.
O segundo fato concomitante surge no domínio político, a declaração de uma personalidade pública, deputada federal brasileira licenciada, tendo sua pena de prisão decretada em território nacional, ainda em fase de recurso, haver se deslocado até à Itália. Afirmou ela que em solo europeu seria “intocável”. O pressuposto detrás desse pensamento é assustador: o de que os europeus não se importariam em que uma cidadã italiana praticasse atos ilegais, quando eles tenham ocorrido noutro território. Seria uma cidadania muito estranha, essa em que se pudesse cometer quaisquer atos, mesmo reputados ilegais ou criminosos em outros países, ou contra cidadãos de outros países, sem ter de ao menos explicar-se. “Intocável” significa isso: ela não teria sequer de se explicar. Problemas e conflitos acontecem em qualquer situação, sobretudo na política; mas afirmar que, por ter cidadania, o indivíduo seria inimputável, seria o equivalente a dizer que os cidadãos de outros países são inferiores, ou desprezíveis. Ora, as autoridades europeias não se importariam, então, com os atos cometidos por seus cidadãos contra outros povos, em outros territórios? É óbvio que sim, se importam: ser europeu não implica em laissez-faire para desrespeitar a lei em outros países. É preciso responder às autoridades, dentro do devido processo legal, ainda que existam diferentes ponderações sobre a natureza desses atos, para disso resultar um remédio, pacificação, ou mesmo penalidade a ser cumprida. A ideia contrária, de que ser europeu coloca uma pessoa em condição inimputável, contudo, parece estar embasada numa visão de superioridade: por ser europeu, se estaria acima da lei de outros países – povos inferiores.
Era comum considerar assim apenas quando, há muito tempo, havia pressuposto nazista de “raças” superiores, etnias e nacionalidades. No fundo, é o auge da estupidez: não porque disso resultará ou não resultará uma punição. Mas porque se baseia num pensamento sem qualquer justificativa. De novo, o mal. † Nada indica que um europeu seja superior a um brasileiro. O contrário talvez fosse admissível: nós, que somos brasileiros e amamos nossa Pátria, deveríamos ainda mais nos creditar nosso próprio valor! Então por que presumir que ser europeu concederia um status superior? As leis brasileiras, por oportuno, foram estabelecidas pelos europeus. E no Brasil vigora o sistema de Direito romano! O Brasil adotou o mesmo sistema jurídico. Nada indica, ao menos até o momento, que as autoridades europeias tenham sucumbido à ideia de que seus cidadãos estejam acima de quaisquer leis de outros países, pelo mero fato de ser europeus. Pelo contrário: o fim da II Guerra Mundial selou no continente europeu a derrota desse tipo de pensamento colonialista, racista, muito perigoso e que se revelou extremamente danoso e arbitrário, durante as guerras.
Poderíamos acrescentar a este evento, também, a ideia muito ventilada de que os Estados Unidos deveriam exercer autoridade sobre a democracia brasileira: como se pelo mero atributo de ser norte-americano, houvesse garantia de conduta democrática. Tampouco é assim. Muitos povos guardam tradições de consulta e representatividade, e mesmo as sociedades tribais africanas podem ser muito democráticas, quando se ouvem todas as pessoas na tribo; quando há respeito entre os cidadãos na expressão das divergências políticas. A ideia de que as democracias mais antigas teriam maior hierarquia é completamente incompatível com o estudo da História e com os próprios princípios de um regime democrático.
Certo: se visitarmos Políbio, veremos quantas vezes Roma desviou de seus próprios estatutos e quantas vezes os cidadãos de Roma tiveram de deixar a cidade, para exigir que os costumes fossem respeitados. Muitas vezes o povo romano exigiu que os governantes aceitassem dosar o poder, e preservasse os tribunos da plebe. Sim, é útil, sem dúvida, que se exija o respeito à lei e o direito à defesa não apenas na retórica, mas na sua implementação; e é lícito que para isto se busque todo meio – um juiz honesto certa vez ensinou a seus alunos que se deve buscar o Direito onde quer que ele esteja. Mas não se deveria deduzir disso que os atributos de determinada nacionalidade, ser americano, ou europeu, pudessem ser sinais suficientes de uma autoridade hierárquica, para fazer cumprir a lei, ou a democracia, dentro de outro País. Entre as democracias deve prevalecer uma relação fraterna de respeito mútuo, para que não se restabeleça um sistema colonial primitivo, predatório e intimidatório. Se fosse assim, estaríamos ainda mais distantes de uma democracia. Não é isto um arrazoado lógico? Pois é de pensar com lógica que deduzimos.
Defender uma hierarquia sujeitará o deputado licenciado a permanecer subjugado, empenhado em valer essa situação de domínio: será útil apenas enquanto contribuir para que o acirramento entre forças permaneça. E esse lugar político desconfortável é precisamente o contrário da liberdade que ele quer defender. Sem essa real liberdade que pertence ao domínio do espírito, como se pode fazer política?
E vale lembrar ainda a tragédia desse desenrolar de eventos, os quais decorrem do problema do vazio dos pressupostos Dizia-se: “Deus acima de tudo. Brasil acima de todos”. Não está teologicamente equivocado, ao contrário do que afirmam alguns sacerdotes: São Paulo, em sua carta aos Filipenses (2, 9-11), João (3, 31), Crônicas, muitos profetas afirmaram muito antes e muito bem que Deus está acima de tudo. Mas agora, então, o Brasil não está mais acima de todos, os EUA estão acima de todos? A Itália está acima de todos? São perguntas que precisamos enfrentar para corrigir o nosso pensamento, para não basear normas de governo sobre princípios excludentes. O fato é que ninguém, nem no Brasil, nem na Itália, nem nos EUA, está acima da lei, do que visa estabelecer o bem comum, correções factíveis e o bom convívio. Uma frase que se defenda para governar deve ser verdadeira em sua ponderação sobretudo para si mesmos.
Por fim, no domínio da arte sacra, me pareceu também necessário refletir sobre esse tema, o erro da superioridade, não apenas como resolvemos questões afetas ao indivíduo e questões poíticas sobre democracia, mas também sobre a nossa forma de conceber o que é divino. Explico que o notável artista Raul Berzosa preparou três grandes pinturas para a Catedral do Sul, em Pequim, na China, retratando Nossa Senhora, o arcanjo Gabriel e o arcanjo Miguel. Até aí, nenhum problema: eu mesma considero os quadros deste artista espanhol simplesmente maravilhosos e deslumbrantes.
Mas se observarmos em maior detalhe essas obras, veremos que Santos e anjos estão retratados com características europeias: brancos, traços caucasianos. Sabemos que Jesus e Maria dificilmente poderiam ter tido olhos azuis e tez branca, tendo nascido em Belém, na região da Palestina, pertencendo ao povo hebreu. Mas muitas vezes é retratado assim. E quanto aos anjos? Parece claro que tampouco se poderia assumir que os arcanjos tivessem um aspecto europeu, nas suas características, sobretudo considerando que são seres espirituais.
O leitor me dirá que isto não importa para Deus, e que está dentro do arbítrio do artista imaginar como bem entender anjos e Santos. Mas eu levantaria a necessidade de uma reflexão teológica mais aprofundada antes de concordar com isso. Talvez importe, sim, para Deus. A expressão do elemento divino na pessoa humana ocorre em estreita intimidade com a pessoa humana na qual o elemento divino se expressa.
Ora, por causa disto que parece lógico que, no México, Nossa Senhora de Guadalupe tenha características em sua imagem similares àquele povo; que no Brasil, Nossa Senhora Aparecida seja negra; e em Lourdes, Nossa Senhora tenha traços das francesas. Por que, então, na China, Nossa Senhora, assim como os demais anjos e Santos, não deveriam ter traços chineses? A expressão espiritual se dá na carne dos fieis chineses. Mesmo que a Catedral tivesse encomendado as obras de arte buscando as características artísticas que evocam Michelangelo, Rafael, da Vinci, e digamos, todos os artistas italianos mais célebres que fizeram de Roma um ponto de convergência da fé católica, é difícil evitar a impressão de que, ao contemplar imagens de pessoas com características europeias, os fieis chineses estarão direcionando sua fé a um elemento visual externo, estrangeiro. E Deus não é um estrangeiro.
Deus é um Deus que assume a nossa própria condição humana, e deste atributo do amor máximo decorrem todas essas variações que vemos nos retratos e imagens de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora, dos Santos e anjos venerados pela Igreja Católica. Como reza Santa Clara em uma de suas cartas: se queres ver Deus, olha no espelho… (Terceira carta de Santa Clara a Inês de Praga). E é precisamente do evento em que Deus assume a nossa própria condição que advém a sua glória. O que nos faz emocionar e compreender a sua grandiosidade é que, havendo tantos bilhões de seres humanos no mundo, sendo cada ser humano algo tão ínfimo, Deus se faz presente em nossa carne, exprime e revela o Seu amor por meio dos nossos atos. O que é tão grandioso? O amor, a tal ponto de nos dignificar para que seja possível contemplar Sua presença.

Sabemos de tudo isto, este conhecimento está consolidado dentro da Igreja, pelos sacerdotes, pelo sensus fidei. Então por que enviamos imagens de anjos e Santos com características europeias à Catedral de Pequim, como se os anjos e Santos fossem europeus? Não tem resposta? De novo parece nos acenar o mal †: neste caso, mais sutil. E observemos a mensagem que a imagem de Maria europeia transmite: ela aparece como a fonte de bênção e graças para as mulheres retratadas como chinesas, menores, mais comuns e menos gloriosas… Por assim dizer, os fieis chineses surgem em papel passivo, e Maria retratada como europeia, consta em papel ativo… Mas não foi assim, ao menos não nos Evangelhos, que Deus nos convocou, por meio de um emissário estrangeiro. O Apóstolo Paulo, ao pregar aos gentios, coloca os seus destinatários no primeiro plano, a glória da fé deles é a plenitude do Apóstolo, não o contrário. E não é Paulo o melhor modelo de evangelização?

Alguns insistiriam que todos estes seriam meros detalhes insignificantes, já que Deus não tem cor, já que os anjos não têm corpo e podem ter qualquer forma, na realidade espiritual, isto não importa. Que a arte deve ser livre e sempre foi livre para fugir da imposição da figura do Jesus histórico e que a beleza é maior na diferença. Também poderíamos ignorar a fala da deputada brasileira licenciada, já que o nome dela acabou sendo incluído, tristemente, na lista da Interpol. Poderíamos lembrar da verdade e nos tranquilizar: não existe um suposto estatuto privilegiado em qualquer cidadania para que se possa praticar quaisquer atos ao arrepio da lei, fora do seu país de origem, sem ter de dar explicações à autoridade judiciária. Recorde-se, ainda, que a autoridade judiciária no Brasil está em permanente construção, evoluindo para corrigir condutas e reparar danos, ao invés de contentar-se apenas em punições – com o que aumenta a sua voz junto aos pares e autoridades correspondentes. Do mesmo modo, poderia se dizer que seria pouco importante olhar o erro da aplicação de uma regra migratória a um único caso específico, como no caso da doutoranda brasileira: erros e abusos de autoridades migratórias ocorrem também com brasileiros brancos, e em toda parte. Por vezes autoridades migratórias querem demonstrar serviço, e não deveríamos fazer grande caso disto, nem deveríamos extrair disto grandes reflexões filosóficas sobre a natureza humana conforme nacionalidades… Pois tem prevalecido em nós a convicção de que europeus e brasileiros somos todos iguais em dignidade, sendo essa a regra.

Imagens: pinturas do altar da Catedral de Pequim, China, elaboradas por Raul Berzosa.
Entretanto penso que não deveríamos deixar de notar que, apesar de todos os méritos do Estado francês em seu legado de um ordenamento jurídico igualitário, do êxito político de uma deputada obter muitos votos, da inegável beleza dos quadros de Raul Berzosa que fez a Catedral de Pequim se entusiasmar pela sua arte…. Temos de ter muito cuidado para não recair no vazio das premissas que dispõem a superioridade. A falta de pensamento resulta no mal †, recorda-se na epígrafe.
Mas se não afrontarmos o mal †, confrontá-lo com o seu vazio de premissas: o mal † se instala com grande facilidade, e espalha-se com uma rapidez assustadora. Assumir maior mérito dos atributos físicos europeus é repisar uma suposta inferioridade das características de outros povos. Seria um retrocesso completo na nossa maneira de pensar a dignidade e o protagonismo de cada povo, no curso da sua própria história de vida. Além do que se perderia o valor da diversidade que faz o mundo um lugar extremamente inesgotável e mais bonito.
A poesia também precisa se preocupar e se ocupar em combater o mal †, para que não se perca o valor e beleza do seu objeto. Para guardar a liberdade, é preciso exercer a liberdade, construir uma comunidade baseada sobre princípios políticos seguros e consistentes, não sobre o vazio. É o que penso.
* Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata.
Comentários