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Todas as almas serão salvas?




Imagem: Cristo Pantocrator, Coroa Mistérica de Andrei Rublev, Século XV


Prezados amigos,


de uma conversa entre colegas surgiu a dúvida: todas as almas serão salvas? Para alguns, dizer que o inferno está vazio é uma heresia. Para outros, o inferno não existe, porque Deus é apenas bondade, e a Igreja se serve do inferno para criar discursos de poder. Sem pretender nenhuma autoridade, nem chegar a nenhuma conclusão sobre o post mortem, lugar que ainda não conheço, compartilho entretanto com vocês uma breve pesquisa que fiz nas Sagradas Escrituras e nos textos dos Santos da Igreja para poder refletir sobre esse assunto. Pois nos livros sagrados há material abundante para elucidar um pouco mais a questão.


Tomei a liberdade de pensar respostas para a questão em artigos, afirmações e respostas, à maneira clássica e mais lógica possível, da qual se valia São Tomás de Aquino, para ficar divertido.


Feliz ano novo e boa leitura!


Com o carinho de


Ana Paula Arendt.



Questão: Todas as almas serão salvas? 

(para São Tomás de Aquino e os seus)

Ana Paula Arendt*


Artigo 1 – Parece que o inferno existe, mas cabe indagar por que existe 


Primeira afirmação. Alguns dizem heresia afirmar que todas as almas serão salvas e que o inferno estará vazio. Para tanto recordam Cristo declarou alguns pecados são imperdoáveis, aqueles contra o Espírito Santo (São Marcos 3, 9); que haverá choro e ranger de dentes e serão expulsos do paraíso os maus (São Lucas 13, 28); e ainda se narra que havia um conviva rico com a alma no inferno, a quem Deus negou refrigério, por ter desprezado Lázaro (São Lucas 16, 25). E na parábola do Rei justo, Cristo ensina, ainda que para os que ignoram pobres, perseguidos e necessitados, o Rei “se voltará em seguida para os da sua esquerda e lhes dirá: ‘Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio † e aos seus anjos.(São Mateus 25, 41). O paraíso estaria reservado apenas para os bons e o inferno, para os maus: “E estes irão para o castigo eterno, e os justos, para a vida eterna.” (São Mateus 25, 46).


Segunda afirmação. Que é parte de uma ideologia da teologia da libertação dizer não existe inferno, ou que o inferno estará vazio; que o Papa Francisco, sendo simpatizante do comunismo, teria dito não existe o inferno; e que em se questionando algo que enseja dúvidas tem semeado discórdia e confusão na Igreja. 


Resposta à Primeira. Efetivamente, os pecados da humanidade são muitos; e Deus criou o livre arbítrio. Portanto, ainda que Deus possa, e Deus queira, restaria então o problema do consentimento humano em ser salvo. No entanto o consentimento de cada ser humano sobre si mesmo não permanece completamente isolado e alheio dos esforços dos demais seres humanos. Se bem Cristo afirma que existem pecados imperdoáveis, Ele também afirmou que tudo o que pedirdes em meu Nome o Pai vo-los concederá: “E assim, seja o que for que vós pedirdes em meu Nome, isso Eu farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho. Se vós pedirdes algo em meu Nome, Eu o farei. (São João 14, 13-14). “Pois Eu verdadeiramente vos asseguro que, tudo o que pedirdes ao Pai, Ele o concederá a vós, em meu Nome.” (São João 16, 23).  Em se tendo pedido com fé, em nome de Cristo, que todas as almas sejam levadas para o céu, Deus não pode faltar com a Palavra que nos foi transmitida por Cristo: de que cumprirá o que pedirmos em Seu Nome. Como seu Nome existe para salvar o mundo, e Deus quer salvar todos os homens, a jaculatória que rezamos durante o Rosário, em que pedimos instantemente “levai todas as almas para o céu, e socorrei as que mais precisarem de vossa misericórdia” está em perfeita consonância com a vontade divina que as Sagradas Escrituras revelam. Além disso, a denúncia do pecado contra o Espírito Santo, o choro e ranger de dentes e a parábola do rico no inferno fazem parte dos ensinamentos de Cristo: servem para que os homens e mulheres não caiam em pecado, ou que do pecado se arrependam; e escapem do inferno. Não eram necessariamente uma realidade descrita por Cristo, mas tinham um propósito salvífico de fazer cessar o pecado e salvar as pessoas que, de outro modo, seriam condenadas a esse inferno. A doutrina deve estar conforme com a piedade: "Quem ensina de outra forma e discorda das salutares palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, bem como da doutrina conforme à piedade, é um obcecado pelo orgulho, um ignorante, doentio por questões ociosas e contendas de palavras. Daí se originam a inveja, a discórdia, os insultos, as suspeitas injustas, os vãos conflitos entre homens de coração corrompido e privados da verdade, que só veem na piedade uma fonte de lucro. Sem dúvida, grande fonte de lucro é a piedade, porém quando acompanhada de espírito de des­prendimento. (…) Ó Timóteo, guarda o bem que te foi confiado! Evita as conversas frívolas e mundanas, assim como as contradições de pretensa ciência.” (Primeira Carta de São Paulo a Timóteo, 6:3-6; 11). Tanto a misericórdia e a pregação para a salvação é o Espírito de Cristo quanto o Espírito que falou antes nos profetas. São Jeremias ensina que esse Espírito visa fazer com que o povo de Deus renuncie aos seus maus procedimentos. As profecias e ensinamentos que desviam dessa finalidade e que visam depositar fardos e condenar o povo de Deus tout court devem ser recusadas: "Houvessem eles assistido à minha deliberação, e seriam minhas as palavras que haveriam de proferir, fazendo que meu povo renunciasse à perversidade de seu procedimento." (…) "Ludibriam com mentiras e fatuidade" (…) Quando esse povo ou algum profeta ou sacerdote vier perguntar-te: “Qual o novo fardo do Senhor que anuncias?” tu lhe dirás: “Fardo? És tu esse fardo, e dele me alijarei – oráculo do Senhor”.” (Jeremias, 23 :22; 32-33).

 

Terceira afirmação. Acusa-se então de heresia que Cristo tenha falado de inferno apenas em parábolas ou metáforas, com propósito de ensinamento e salvação; que cogitar o inferno seria apenas uma metáfora seria faltar com a verdade.  


Resposta à terceira. Mas é o próprio Cristo que declara e explica o efeito didático a quem Ele prega, e não a autora, nem uma interpretação dos evangelistas ou de teólogos. “Em verdade, em verdade vos digo: quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não incorre na condenação, mas passou da morte para a vida. Em verdade, em verdade vos digo: vem a hora, e já está aí, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus; e os que a ouvirem, viverão. Pois como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também deu ao Filho ter a vida em si mesmo, e lhe conferiu o poder de julgar, porque é o Filho do Homem. Não vos maravilheis disso, porque vem a hora em que todos os que se acham nos sepulcros sairão deles ao som de sua voz: os que praticaram o bem irão para a ressurreição da vida, e aqueles que praticaram o mal ressuscitarão para serem condenados. De mim mesmo não posso fazer coisa alguma. Julgo como ouço; e o meu julgamento é justo, porque não busco a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. (São João 5, 24-30) Mas a vontade de Deus Pai, que enviou Cristo, como vimos, é a de que nenhum se perca e todos sejam salvos. E Cristo acrescenta a razão pela qual fala do juízo final: “Digo-vos essas coisas, a fim de que sejais salvos”. (São João 5, 34). Se bem alguns discípulos recusaram ter parte com Cristo, ao recusar comungar de seu corpo e sangue – “A partir daquele momento, muitos discípulos o abandonaram e não mais andavam com ele.” (Jo 6, 66) – Cristo continua pregando sobre os perigos mortais da alma no Juízo final. No entanto, o resultado é que, convencidos de que em Cristo se manifestava a vontade do Pai, e crendo nas suas admoestações, tendo receio de não encontrar mais Cristo, muitos se converteram: “Vós me procurareis e não me encontrareis. E lá, onde eu estou, vós não podeis ir.” (Jo 7, 34). “De novo, Jesus lhes disse: “Eu me vou, e vós me procurareis; mas morrereis no vosso pecado. Para onde eu vou, vós não podeis ir”. (Jo 8, 21). “Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou sozinho, porque eu sempre faço o que é do seu agrado”. Como falasse estas coisas, muitos passaram a crer nele.” (Jo, 8, 29-30). 


Solução. O inferno, portanto, existe e não é apenas uma metáfora nem parábola, se bem esteja presente nos ensinamentos de Cristo também nas parábolas; mas tal ensinamento sobre a verdade serve ao propósito de salvação e conversão das almas à misericórdia divina: para que as almas se unam a Cristo. Conforme disse o profeta Jeremias: as visões e profecias que Deus proporciona servem para salvar o homem, para que abandone o pecado. Assim Deus fez secar a planta que deu um pouco de sombra a Jonas, quando Jonas quis morrer, pela falta da planta, para provar que a ação divina não encontra sua finalidade em condenar ou destruir o que pode ser salvo: “Essa planta cresceu numa noite e na noite seguinte desapareceu. Você nada fez por ela, nem a fez crescer, mas mesmo assim tem pena dela! Então eu, com muito mais razão, devo ter pena da grande cidade de Nínive, onde há mais de cento e vinte mil crianças inocentes e também muitos animais!” (Jonas 4, 6-11). 


Resposta à segunda. Coisa muito diferente de dizer que o inferno não existe é dizer que todas as almas serão salvas. Assim, quando Leonardo Boff afirma, em entrevista a Marcelo Tas, que o Papa Francisco teria afirmado que o inferno não existe, isso vai contra o que afirmou o próprio Papa Francisco em março de 2015: “O inferno é querer afastar-se de Deus porque não quero o amor dele”; ora, se o inferno é afastar-se de Deus, então, para o Papa Francisco, o inferno existe como uma possibilidade concreta. E afirmou ainda o Papa Francisco aos mafiosos, em março de 2014, em missa em favor das vítimas do crime organizado: “O poder e o dinheiro que vocês têm agora, de tantos negócios sujos e crimes mafiosos, um dinheiro ensanguentado, um poder ensanguentado, vocês não poderão levar para a vida eterna. Ainda há tempo para vocês se converterem e não terminarem no inferno”. Novamente o Papa afirma que o inferno existe, se bem há tempo para se salvar dele. Nas catequeses sobre o discernimento, ainda, Praça São Pedro, em 26 de outubro de 2022, o Papa Francisco explica que a desolação é “ter o inferno no coração”. Em 30 de outubro de 2014, afirmou ainda o sumo pontífice que “esta geração têm sido levada a acreditar que o diabo † é um mito, uma figura, uma ideia, a ideia do mal. Mas o mal existe e devemos combatê-lo”. Em entrevista a Fabio Marchese Ragona, contida no livro Exorcistas contra Satanás †, o Papa Francisco afirma também que “é verdade, como disse são Paulo VI, que o diabo † também pode entrar no templo de Deus, para semear a discórdia e colocar uns contra outros: as divisões e os ataques são sempre obra do diabo †”. Logo, o mal e o inferno parecem existir e haver um consenso sobre isso. No entanto, também existe o consenso de que Deus permite o mal para que o desígnio da salvação possa se cumprir. Conforme Santo Agostinho: “Deus não permitiria o mal se não pudesse tirar desse mal um bem infinitamente maior”. A discórdia pode servir ao propósito de ceder lugar ao esclarecimento do pensamento e das ideias sobre o assunto. Dessa acusação, surge o esclarecimento de que os ensinamentos do Papa Francisco diferem do que afirmam a seu respeito os partidários da teologia da libertação. Não se deve confundir o pensamento jesuíta, voltado estritamente para a fé na salvação de todos, com o pensamento da teologia da libertação, que nega a existência do inferno.  


Artigo 2 – Se há consenso que o inferno existe, provado estaria que o inferno estará cheio? 


Primeira afirmação. Não parece possível cogitar que o inferno esteja vazio, já que diversos Santos afirmam ter visto o inferno, e alguns deles afirmam ter visto o inferno cheio. Isidoro diz: “perpetrar um crime é a morte da alma; mas desesperar é descer ao inferno”. São Leonardo de Porto Maurício pondera, ainda que são poucos os que se salvam, citando muitos Santos pregressos e trechos bíblicos em que apurou isso, inclusive nas palavras do próprio Jesus Cristo, quando afirma que “Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela” (São Mateus 7, 13-14). E afirma São Tomás de Aquino: “como se vê na Escritura (Jó 24, 19): o inferno passa das águas da neve para um excessivo calor. Por onde, no inferno não há verdadeira eternidade, mas antes, tempo, conforme a mesma Escritura (Sl 80, 16): E durará o tempo deles por todos os séculos.”   (São Tomás de Aquino, Summa, Art. 3, Questão 9, Prima Pars). Assim se afirmaria cair em contradição quem dissesse o inferno existe apenas como possibilidade, já que estes Santos reconhecidos pela Igreja não poderiam estar mentindo, tendo afirmado ser muitas as almas que escolhem padecer no inferno. 


Mas em contra, o próprio Cristo ensina aos discípulos que não veio para condenar o mundo, e sim para salvá-lo: “Se alguém ouvir as minhas palavras e não obedecer a elas, Eu não o julgo; porque Eu não vim para julgar o mundo, mas sim, para salvá-lo.” (São João 17, 3). A condenação e a entrada pela porta da perdição não é o fim da História. E Cristo está acima de todos os Santos: “O discípulo não está acima do mestre: todo aquele, porém, que for bem instruído será como seu mestre” (São Lucas 6.40). Não se pode tomar uma visão do inferno como uma visão definitiva da realidade: os Santos contemplaram a antevisão do sofrimento na Terra, antes de ter participado na eternidade de Deus e antes alcançado o tempo de duração por todos os séculos.   Não se deve tomar a realidade de que muitos preferem a perdição como uma realidade definitiva nos últimos tempos. No Apocalipse, revelação de São João, eram incontáveis aqueles que foram salvos; havia, ainda, aqueles de vestes brancas, alvejadas no sangue do Cordeiro; e aqueles que serviam dia e noite ao Senhor debaixo de sua tenda. Mas não apenas os Santos que anteviram o inferno podem ter tido uma visão parcial, de um momento anterior à revelação final; como dois dos Apóstolos também se equivocaram e foram corrigidos pelo Mestre. Também quando São João e São Tiago desejam condenar uma cidade que rejeitou o Evangelho, e provocar a desolação dos pecadores, Jesus os repreende severamente por isso: “Vendo isso, Tiago e João disseram: “Senhor, queres que mandemos que desça fogo do céu e os consuma?”. Jesus voltou-se e repreendeu-os severamente. [“Não sabeis de que espírito sois animados. O Filho do Homem não veio para perder as vidas dos homens, mas para salvá-las.”]” (São Lucas, 9, 54-56). Assim, é parte de ser discípulo ser corrigido pelo Mestre; não fosse assim, não teria havido a necessidade da encarnação do Verbo, para esclarecimento de todos. Também os Santos, uma vez elevados aos céus, serão capazes de ter maior discernimento sobre os planos de Deus de salvação de todos. 


Segunda afirmação. Mas a Palavra de Cristo ali semeada poderá não ter alcançado seu propósito nem crescido nos terrenos áridos, como Ele mesmo afirma na parábola do semeador. No solo árido não terá crescido nem se desenvolvido a misericórdia divina e os homens terão continuado a se acusar e condenar mutuamente, conforme o próprio Cristo afirma sói ocorrer; de modo que as cidades serão condenadas pelos seus próprios pecados, e por não crer na misericórdia divina. 


Resposta à primeira.  Em Efésios, ainda, São Paulo dá testemunho de que o objetivo de Deus é salvar não apenas alguns, mas todos os homens; e todas as coisas se cumprem em Cristo. Parece importante que Deus queira reunir não apenas alguns, mas todos consigo: “Há um só Deus e Pai de todos, que atua acima de todos, por todos e em todos” (Ef 4, 6); “e a todos manifestar o desígnio salvador de Deus mistério oculto desde a eternidade em Deus, que tudo criou” (Ef 3, 9). “Ele nos manifestou o misterioso desígnio de sua vontade, que em sua benevolência formara desde sempre, para realizá-lo na plenitude dos tempos – desígnio de reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na terra.” (Ef 1, 9-10). E o próprio Cristo afirma: “Todo aquele que o Pai me dá, virá a mim, e quem vem a mim eu não lançarei fora, porque eu desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca nenhum daqueles que ele me deu, mas os ressuscite no último dia.” (Jo 6, 37-39). E também Cristo afirma: “Está escrito nos Profetas: ‘Todos serão discípulos de Deus’” (Jo 6, 45). Tanto assim é que, como afirmamos anteriormente, com devido fundamento, rezamos na jaculatória do Rosário: “levai as almas todas para o céu”. Não apenas algumas: “todas”. E até mesmo São Leonardo de Porto-Maurício afirma: “Ninguém se condena se não peca mortalmente, isso é de Fé; ninguém peca mortalmente se não quer, é uma proposição teológica incontestável. Logo, ninguém vai ao inferno se ele não quer. A consequência é evidente. Isso não é suficiente para vos consolar? Chorai os pecados passados, confessai-vos bem, não pequem mais no futuro, e vós sereis todos salvos. Por que, pois, tanto se atormentar, desde que é certo que para ir pro inferno é preciso pecar mortalmente, e que para pecar mortalmente, é preciso querer, e, por consequência, não vamos ao inferno somente se queremos? Isso não é uma opinião, mas uma verdade incontestável e bem consoladora; que Deus vos faça compreender e vos abençoe.” Até mesmo São Leonardo ensina que Deus vem em socorro de quem não quer se condenar, e que por causa dessa verdade consoladora não é necessário se atormentar. 


Resposta à segunda. O solo árido pode ser irrigado e arado de maneira a que as sementes que ali tenham caído possam dar fruto. Sempre é tempo de arar, semear e de irrigar para os Apóstolos e seguidores de Cristo. Hoje aquelas cidades contam com serviço dos seguidores de Cristo, de modo que talvez tenham escapado à condenação: a aridez não foi absoluta, de modo a ter permanecido eternamente a repulsa à mensagem do amor de Cristo. De algum modo pode muito bem se tornado solo propício, o solo que antes era árido, ainda que depois de muito tempo; de maneira que não se deve condenar antes do tempo uma cidade que não tenha acolhido o Evangelho logo de início, como Cristo, vimos, corrigiu os Apóstolos Tiago e João. A parábola do semeador serve precisamente a isso: a compreender que não basta apenas semear, é preciso trabalhar para que o solo seja macio, fértil e ali brote a vida, regando com atenção aqueles lugares mais áridos, a fim de que a Palavra cresça.  As parábolas de Cristo não servem para descrever como deve ser a realidade e encerrar todo ser humano no que supostamente não seria passível de mudança; mas para indicar como é e como pensa o mundo; e cogitar como deveria ser nossa vida e forma de pensar, contemplando uma mudança. Pois conforme Isaías 43, 19: "Vou fazer uma coisa nova, agora mesmo vai brotar. Vocês não o percebem? Vou abrir um caminho no deserto e fazer rios correrem na terra seca." Mesmo os que estavam “nas trevas e na sombra da morte, por se haverem revoltado contra as contra as ordens de Deus e terem desprezado os desígnios do Altíssimo”, pelo sofrimento, em sua angústia clamaram então para o Senhor: “e ele os livrou de suas tribulações.Tirou-os das trevas e da sombra da morte, quebrou-lhes os grilhões.(Salmo 106, 10-14) . E não foram apenas os que estavam nas trevas e na sombra da morte: “Outros, enfermos por causa de seu mau proceder, eram feridos por causa de seus pecados. Todo alimento lhes causava náuseas, chegaram às portas da morte. Em sua angústia clamaram então ao Senhor; ele os livrou de suas tribulações. Enviou a sua palavra para curá-los, para os arrancar da morte”. (Salmo 106, 17-20).   “Converteu o solo fértil em salinas, por causa da malícia de seus habitantes. Mudou o deserto em lençol de água, e a terra árida em abundantes fontes. (…) Quem é sábio para julgar estas coisas e compreender as misericórdias do Senhor?” (Salmo 106, 34-5; 43). O pecado e a revolta levaram à aridez, a dificuldade, o sofrimento e a angústia, mas então tudo isso serviu para proporcionar a misericórdia de Deus: portanto o salmista nos convida à sabedoria, contemplar a ação divina. 


Solução. Deus é onipotente; e Deus quer salvar a todos. Logo, não se pode insistir que uma parte dos homens irá para o inferno e para danação eterna, sem duvidar da competência total de Deus e da bondade infinita de Cristo, os quais pelo Espírito Santo e fazendo discípulos buscam salvar todos, até mesmo aqueles que mataram Seu Filho. Tanto Cristo é irresistível, e completamente puro, que basta conhecer Cristo para deixar de pecar: “Sabeis que (Jesus) apareceu para tirar os pecados, e que nele não há pecado. Todo aquele que permanece nele não peca; e todo o que peca não o viu, nem o conheceu. (Primeira Carta de São João, 3, 5-6). Toda a potência em Cristo torna impossível o pecado a quem se mantém junto d’Ele. Portanto, a quem Cristo se revelar, será impossível permanecer no pecado, pelo poder incomensurável da bondade e pureza de Cristo. Nem se pode cogitar que o inferno está cheio sem faltar com a sinceridade na oração e fé no que pelo nome de Jesus Cristo tantas vezes pedimos: que todos sejam salvos. “O amor seja sincero. Detestai o mal, apegai-vos ao bem”. (Rm, 12,9) Se cremos na competência e verdade das palavras de Cristo, e que para Deus nada é impossível, cremos então que Deus poderá atender a esse pedido feito em seu Nome a despeito de parecer a salvação de todos algo impossível aos homens. Tanto é assim que, houvesse apenas um homem justo numa cidade perversa, Deus deixaria de destrui-la. De modo que ensinou: sede perfeitos como o Pai é perfeito, que faz o bem tanto aos bons quanto os maus, a fim de que os maus possam também encontrar a Deus, sentir-se atraídos por Deus, e salvar-se. É perfeitamente possível, ainda, que Deus, podendo tudo, salve todos e o venha fazendo precisamente concedendo a visão da existência do inferno: como Cristo concedeu aos homens, durante sua passagem na Terra, a visão do inferno por meio de parábolas, para que os homens cessassem o pecado. Deus pode ter concedido aos Santos a visão da possibilidade real de um cenário lúgubre no inferno, para que se empenhassem em reverter essa realidade negativa, envidando esforços na salvação dos homens com ainda maior afinco e para que, por meio do testemunho dos Santos, os homens se arrependam, para não vir a ter esse terrível destino. Assim, o inferno poderá ter sido uma visão da realidade que poderá se concretizar apenas se não nos unirmos a Deus e Cristo para nos empenhar em salvar todas as almas. No entanto, quando Cristo se revelar, e a quem se revelar – a todos – não haverá mais possibilidade alguma de pecado. 


E ainda. Deus, sendo o Sumo Bem, quer salvar todos; e sendo Deus, tudo pode, e inclusive pode ser irresistível em seu chamado a todos os homens para o Bem: e o Criador do mundo, não precisa obedecer às regras do mundo que dispôs para as suas criaturas. Se o mal e o inferno existem apenas para produzir um bem infinitamente maior, conforme Agostinho; não parece conveniente querer circunscrever que o bem inefável não possa ir além do que pode conceber a mente humana. Se a mente humana está limitada por desejar a punição eterna aos maus, e o paraíso apenas para os bons, Deus não pensa assim: Ele ouve também os maus e os resgata de seus pecados. Diante da consequência do pecado, grande luminosidade de Deus, e do terrível cenário da punição eterna, pelo distanciamento de Deus, uma alma não hesitará escolher outra opção senão aquela de se arrepender de suas maldades, e preferirá seguir o chamado que contém todos os bens divinos mais inefáveis. Feito à imagem e semelhança de Deus, o homem é capaz de reconhecer progressivamente o sumo Bem que está contido em Deus e em mais nada; a natureza humana feita à semelhança divina faz com que cada ser humano se sinta irresistivelmente atraído a Deus e progrida, por meio de seus passos, rumo a Ele. Nesse caso, parecem cair em mais grave pecado aqueles que desejam afirmar o que Deus pode e não pode fazer, como se Deus fosse uma criatura limitada pelo universo que dispôs, buscando no subterfúgio de de um escrúpulo, dizer que tudo já foi decidido; e que não caberia ter fé e esperança de que todas as almas serão salvas, ou de que o inferno estará vazio. Deus pode dispor o universo de outros modos possíveis, para alcançar a salvação de todos os homens. Efetivamente, diz-se que Cristo desceu à mansão dos mortos no sábado para salvar todas as almas que ali estavam.  Se pôde salvar as almas que morreram antes de Si, poderá tanto mais salvar as almas que terão morrido depois de Si, já que Deus Pai, e o Filho unido a Ele, participam da eternidade ainda com maior visibilidade, após esse resgate. Apenas podemos concluir, portanto, que parecem estar em grave contradição aqueles que rezam a jaculatória do rosário pedindo a salvação de todas as almas sem ter efetivamente a fé de que isso seja possível. Se não creem que para Deus isso seja perfeitamente possível, os que rezam o Rosário, que todas as almas sejam salvas, então por que pedem isso a Ele?  


Artigo 3 – Se ninguém está no inferno, então não se pode provar que o homem tenha livre arbítrio


Primeira afirmação. Considere-se ainda que Santo Agostinho afirma que Deus salva, mas que não o faz sem ter consentimento. É preciso que homens e mulheres consintam antes ser salvos por Deus; e não se poderia negar que há muitos homens e mulheres que recusam de Deus a salvação.


Segunda afirmação. Dirá ainda aquele resistente em crer possível a salvação de todos os homens que a jaculatória no rosário é um mero desejo humano: não significa que Deus irá cumpri-lo, se os homens a ser salvos assim não quiserem; consideram a vontade de Deus em salvar todos os homens não seria suficiente para salvar o homem, pois Ele próprio criou o livre arbítrio, por sua Vontade divina; e continua tendo necessidade de consentimento do homem para salvá-lo. Pelo que o diabo † reivindica aqueles que diz ser os seus.


Terceira afirmação. Afirmam então os filósofos que, se o homem não pode recusar Deus, nem ir para o inferno, e se caminha irresistivelmente para Deus, faltando quaisquer homens e mulheres no inferno… Então não existe verdadeiramente o livre arbítrio, nem a possibilidade de ser si mesmo. Afirmam os filósofos, então, que para haver um perfeito livre arbítrio, seria necessária a possibilidade concreta de ter ido para o inferno pelo menos um homem, a fim de prová-lo. 


Resposta à primeira. Deus quis necessitar do consentimento humano, a fim de cumprir com o livre arbítrio. Mas apenas permitiu isso, antes de mais nada, porque Deus poderá obter o consentimento humano. Deus é irresistível. E ainda que não fosse irresistível, a angústia e o sofrimento decorrentes do pecado fariam todo ser humano voltar-se, em algum momento, para Deus, abandonando seus pecados, e preferindo Deus, quando ouvir Sua voz lhe chamando. 


Resposta à segunda. Se o pedido com fé dos discípulos de Cristo não for suficiente para que Deus conceda o que eles pedem, de salvação de todos, conforme Cristo afirmou, então não se pode crer em Cristo; pois Cristo afirmou que o que fosse pedido em Seu Nome, o Pai concederia. Não crendo em Cristo, nem em Deus, portanto, não haveria necessidade de questionar ou se incomodar se existe ou não o inferno, se o inferno estará cheio ou vazio…  A pretensão de que o inferno não está vazio é sobretudo ilógica.  


Resposta à terceira. Como afirma Voltaire, “é difícil libertar os tolos das correntes que eles veneram”. Pela própria lógica que estabelece a filosofia, uma planta na sala não precisa morrer para que esteja provado que existe uma planta na sala. De modo análogo, não é necessário que exista alguém permanentemente no inferno, para provar que existe o inferno. Cada ser humano caminha por meio de seus próprios passos em busca de si mesmo e do que deve ser, de suas vontades e de uma vontade maior que se aproxima dele; e assim o livre arbítrio de cada um vai produzindo em cada alma as diferenças que lhe tornam única. O livre arbítrio não serve apenas para escolher entre salvação e condenação, nem precisa resultar no inferno: o livre arbítrio excede esse juízo de valor sobre salvação e condenação, pois serve para produzir indivíduos distintos uns dos outros, já que as almas não se dissolvem nem se nivelam em absoluta conformidade com um padrão único, ao caminhar para Deus. Conforme São Boaventura, nas próprias singularidades é possível contemplar a Deus: “Portanto, se todas as coisas cognoscíveis têm a virtude de gerar uma imagem de si mesmas, é evidente que em todas elas podemos contemplar, como através de um espelho, a eterna geração do Verbo, Filho e Imagem de Deus, eternamente emanado do Pai”. (SÃO BOAVENTURA, Itinerário da mente para Deus, II, 6).  E ainda: “Fala-nos igualmente da perfeição de Deus a plenitude das coisas, porquanto a matéria está cheia de formas por causa de seus princípios de desenvolvimento latentes. A forma está cheia de atividades potenciais, e a potência está cheia de efeitos segundo o exercício de sua  atividade”. (SÃO BOAVENTURA, Itinerário da mente para Deus, I, 14). Também para Bento XVI Deus o arbítrio do homem está nessa diversidade: “A partir da Igreja de Cristo surge sempre de novo para o indivíduo a exigência de dar a própria alma, para que seja novamente concebida em sua novidade e peculiaridade”. (BENTO XVI, 2012, Natureza e Missão da Teologia, II, 3, p. 51).  Cristo ressuscitado, ao se revelar aos Apóstolos, reteve todos os seus aspectos singulares, inclusive as chagas. Também cada ser humano que a Cristo recorre e contempla, suas singularidades são mantidas, ganhadas ao longo de um caminho trilhado por livre arbítrio.  


Do que se pode concluir. Assim, o livre arbítrio não foi instituído por Deus por meio da escolha entre paraíso e inferno, no juízo final. O livre arbítrio foi estabelecido por meio do pecado original – não da condenação no juízo final. Deus não colocou no jardim do Éden a árvore da morte eterna, nem da danação eterna, ou do inferno; mas apenas a árvore do conhecimento do bem e do mal, que tornou homem e mulher mortais. O pecado original, por assim dizer, surge como o benefício de vacina para que homem e mulher não venham a cair no pecado muito mais grave da morte definitiva e danação eterna, duvidando do amor de Deus uma segunda vez. Tendo provado os sofrimentos e as dores deste mundo, o ser humano se tornou capaz de ponderar que Deus disse a verdade, e não a serpente; e a sua imagem feita à semelhança divina permitem-lhe compreender quem é Deus – autoevidente, como afirma São Tomás de Aquino – e tornar de volta a Deus pela reconciliação, tendo Deus oferecido, pelos benefícios incomensuráveis de Cristo, todos os remédios necessários e suficientes para que todos possam alcançar, em algum momento e por mistério, a salvação. 


É preciso cogitar, ainda, que Cristo fez o primeiro movimento, mas outros seguem produzindo o resultado pelo qual veio. No Apocalipse, os Santos se encontram sob a tenda do Senhor, servindo a Ele, em suas idas e vindas na Terra (Apocalipse 7, 14-16); e mais Santos vão se reunindo e sendo chamados para concretizar o propósito divino de que todas as almas sejam salvas. Conforme São Tomás de Aquino, entre a eternidade e o tempo, existe o evo; e o evo é o tempo retirado da eternidade. “Um dia de Deus é como mil anos para o homem”.  Nesse tempo eterno os Santos, unidos por Cristo, novos Santos vão sendo convocados, reúnem-se e trabalham incessantemente pelo encaminhamento de todas as almas e consciências em direção a Deus. Se bem São João fala na revelação de Sete Flagelos, de grandes tormentos, da Prostituta, da Babilônia, da restituição dos mortos pelo mar, ele também afirma que há uma sucessão nos eventos. “Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra desapareceram e o mar já não existia” (Apocalipse 21, 1). Já não existir: no desfecho, o mal já não existe, na sucessão dos eventos guiados por Deus. O expurgo do mal leva o mal a não mais existir. Conforme ensinou  ainda Cristo a São João, no Apocalipse: “Não seles o texto profético deste livro, porque o momento está próximo.” (Apocalipse 22, 10). O final ainda não está definido no Apocalipse, pois o livro não foi ainda selado. E ainda: “Quando a mulher está para dar à luz, sofre porque veio a sua hora. Mas, depois que deu à luz a criança, já não se lembra da aflição, por causa da alegria que sente de haver nascido um homem no mundo. Assim também vós: sem dúvida, agora estais tristes, mas hei de ver-vos outra vez, e o vosso coração se alegrará e ninguém vos tirará a vossa alegria. Naquele dia não me perguntareis mais coisa alguma”. “Em verdade, em verdade vos digo: o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo dará.” (Evangelho conforme São João 16, 21-3). 


Artigo 4 – Se todos serão salvos ao final, por nossa oração, resta em aberto. Mas ainda que pudéssemos obter a salvação de todos, como poderíamos rezar pelos mais ímpios que insistiram no mal? 


Primeira afirmação. Deve o cristão, então, rezar para que sejam salvas as almas dos pervertidos que comemoram e comandam a morte de inocentes, como Hitler e Stálin? O que pensar, então, daqueles que viveram sem partilhar de nenhum propósito divino, fazendo o mal na Terra, preferindo o próprio arbítrio, tendo recusado a Deus; e o que pensar sobre aqueles que cometeram o pecado imperdoável contra o Espírito Santo? Aqueles que praticaram o mal e não deram mostras de arrependimento algum poderão, então, entrar no paraíso, já que todas as almas serão salvas? Cristo afirmou sobre Judas o traidor: melhor seria que não tivesse nascido. Portanto, não estará Judas no inferno?


Resposta à primeira. É preciso tomar três pontos que parecem suficientes para explicar por que alguns perseveram em atitudes incompatíveis com Deus para herdar os bens divinos. 


Como primeiro ponto, temos o horizonte pneumatológico: por meio do Espírito Santo são justificados os pecadores e a eles é ofertada a infinita misericórdia de Deus, para se redimir de seus pecados, mesmo aqueles mais graves, mediante o arrependimento, ao longo de um tempo que não podemos medir e de ocasiões que, em nossa limitação como criaturas, não conseguimos penetrar. Portanto, as maldades que vimos poderão, após o arrependimento, constituir uma verdade que se presta à salvação da humanidade: poderão servir de farol que permitirá ao ser humano navegar em águas turbulentas, ascender de sua condição degenerada a uma condição mais elevada e mais próxima de Deus, tendo esses indivíduos demonstrado o pecado gravíssimo a ser evitado por todos os homens. Conforme o Apóstolo, Deus permitiu que se cegasse o entendimento dos incrédulos (II Cor 4, 4) para que possa resplandecer a mensagem do Evangelho. 


Como segundo ponto, temos que não convém aos discípulos de Cristo julgar, pois assim serão julgados, nem deixar de perdoar, porque assim os pecados lhes serão retidos. Apenas Deus, por meio de sua onisciência, tem completo conhecimento sobre o que se passa em cada alma humana, e apenas Deus pode julgar a consciência de cada ser humano e as suas circunstâncias. Apesar de ter discernimento sobre o que se afasta de Deus, nas obras de cada um, não deve o bom cristão por causa disso tomar para si a prerrogativa de pronunciar-se sobre quais ou quantos estão ou estarão definitivamente no inferno, porque não temos conhecimento completo sobre o arrependimento de cada um. O inferno poderá estar vazio, ao contrário do que homens e Santos esperam, se Deus assim quiser providenciar ou revelar. Conforme o Santo Cura d’Ars, convencendo uma mulher de que o seu marido, um suicida, já estava salvo, afirmou esse Santo que no breve espaço entre uma ponte e um rio existe a infinita imensidão da misericórdia de Deus. Para o Santo Cura d’Ars, os pecados humanos são como minúsculos grãozinhos de areia perto do imenso oceano da misericórdia divina. Portanto, é perfeitamente possível que mesmo o pecado mais grave seja perdoado, pois mesmo no último milésimo segundo, é possível contemplar o arrependimento e a salvação. 


Como terceiro e último ponto, temos que infelizmente alguns homens, insistindo em distribuir o mal no mundo e negar a Deus, Cristo, o Espírito Santo, Maria e os Santos, a dignidade de todos os homens, perdem a própria alma; logo, se não existe mais a alma, não há como salvá-la, porque esses já não a têm; por isso alguns seres humanos “morrem como animais” (Salmo 49, 20, Eclesiastes 3, 9). Reduzidos à condição de bestas selvagens, enxergam o próximo como um outro animal, ou como alimento; e seguem matando, julgando, condenando e prejudicando seus iguais, sem conseguir ponderar neles próprios, nem no próximo, a própria alma humana. Por assim dizer, não alcançam a compreensão humana e admiração diante das muitas formas por meio das quais Deus se manifesta e nos alcança, “o que diz Dionísio: É impossível alumiar-nos o raio divino sem ser circumvelado pela variedade dos véus sagrados.” (Prima Pars, Questão 1, Art. 9). É preciso então recordar que não existiam apenas Adão e Eva como criaturas humanas, quando Deus soprou uma alma no ser humano; se bem estes foram criados por Deus à Sua imagem e semelhança, havia outras criaturas humanas fora do jardim do Éden, com as quais foi conviver Caim, após cometer homicídio contra seu irmão, Abel. Mesmo assim, Deus pode insuflar e restituir nessas criaturas humanas uma nova alma, ou a alma perdida, mediante Sua vontade divina, o arrependimento e o pedido pela oração, o que parece matéria para o arbítrio divino; de modo que essa possibilidade não deveria ser limitada nem descartada pelo juízo humano. Temos a exortação do Salmista de que “louvem a Deus todas as criaturas, em todo lugar onde Ele reina” (Salmo 103, 22). Portanto não parece o fim que o ser humano tenha perdido a alma e tenha um destino semelhante ao dos bichinhos, se o ser humano retiver a capacidade de louvar a Deus, ainda que tornado um bicho, apenas uma criatura. 


Para o diácono e teólogo Antônio Lopes Ribeiro, PhD, contudo, a mensagem de Cristo de amar os inimigos é radical: do que considera ser possível deduzir de Sua mensagem o dever de rezar pela salvação das almas de genocidas e perversos que ordenaram a morte de milhões de pessoas: mesmo Stálin, Hitler e quaisquer outros genocidas. Nisto parece ser apoiado por São Paulo: “Pois a mensagem da cruz é loucura para os que estão sendo destruídos, porém para nós, que estamos sendo salvos, é o poder de Deus.” (Primeira Carta aos Coríntios 1, 18). 


Artigo 5 – Se todos serão salvos, o inferno perderia então sua eficácia como advertência para que todos sejam salvos 


Primeira afirmação. Diz-se assim, que sabendo o inferno está vazio, talvez o homem não se preocupe mais em fazer boas obras; já que tanto aquele que pecou a vida inteira, quanto aquele que fez o bem a vida inteira, hão de merecer o céu. Se todos tivessem certeza de que não haverá ninguém no inferno, assim o mal e o inferno perderiam o propósito para o qual foram permitidos, de produzir, pelo temor de Deus e remorso dos pecados, a salvação de todos.  Cogita-se, em um cálculo, que assim aumentariam os pecados e sofrimentos na terra sobre os justos, já que todos vão salvar-se. 


Resposta à primeira. O inferno não é uma ameaça, nem o paraíso é um suborno, como afirma Jorge Luís Borges. O remorso e arrependimento de um pecado que se dê simplesmente esperando receber uma recompensa, ou por medo do inferno, não pode ser um remorso e arrependimento sincero. "O inferno não é nem um espaço nem um lugar: o inferno é o estado da alma que está longe de Deus, no ódio e em contraste com Deus", explica padre Athos Turchi, professor de Filosofia na Faculdade Teológica da Itália Central; e o Papa Francisco, durante a missa de 25 de novembro de 2016, explicou que o inferno "não é uma sala de tortura. O inferno consiste em estar afastados para sempre do "Deus que dá a felicidade", do "Deus que tanto nos ama”. Os animais também podem ser domesticados e ter melhor convívio e conduta por meio de recompensas e punições: e isso não garante aos animais ir ao paraíso nem ao inferno, porque não é nisto que consiste a liberdadade e a escolha da alma, nem do espírito. Ter uma boa conduta e se arrepender dos pecados apenas porque disso poderá resultar um ganho para si, e não por um sincero sentimento do dano que se causou a Deus e ao próximo, parece a melhor definição do ser humano reduzido à sua característica animal. Evitar o pecado, portanto, não é um suposto sacrifício que se faz, abstendo-se de algo prazeiroso, para obter algo melhor posteriormente. Como o ser humano tem alma e espírito, não apenas natureza animal, arrepender-se e fazer boas obras apenas pela recompensa que poderá ganhar para si parece resultar mais na hipocrisia e na simulação que levam ao inferno, do que efetivamente no caminho que leva ao paraíso. Considerar que as pessoas passariam a pecar mais, ao cogitar que serão salvos ao fim, não é um raciocínio razoável porque o pecado não é algo bom, e não produz nenhum benefício para quem peca. O pecado faz mal: fazer mal ao outro faz mal a si mesmo. E fazer bem ao outro, por outro lado, faz bem a si mesmo. Tanto é assim que Cristo afirma a São João no Apocalipse: “O injusto faça ainda injustiças, o impuro pratique impurezas. Mas o justo faça a justiça e o santo santifique-se ainda mais. Eis que venho em breve, e a minha recompensa está comigo, para dar a cada um conforme as suas obras. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Começo e o Fim”. (Apocalipse 22, 11-3). O pecado leva ao pior sofrimento interior e toda pessoa em sã consciência quer evitar o sofrimento; o caminho natural de quem peca será evitar o pecado, tendo experimentado o sofrimento. Nem todos percebem tão rapidamente essa verdade; mas para isto, o próprio Cristo ensinou a parábola dos trabalhadores: aqueles que chegaram apenas ao fim do dia fizeram menor trabalho, mas receberam do patrão generoso a mesma boa paga: Deus é generoso quando um pecador se arrepende. “Sendo assim, toma o que é teu, e vai-te; pois é meu desejo dar a este último tanto quanto dei a ti.” (São Mateus 20, 14). A fé, a esperança e a caridade se dirigem, portanto, à busca de que todos compareçam, ainda que alguns tardem. 


E ainda. A percepção de que todos serão salvos, havendo encontrado tantos subsídios nas Sagradas Escrituras que sinalizam essa possibilidade ao alcance de Deus, poderá, pelo contrário, contribuir para um convívio mais fraterno entre os homens e mulheres: pois percebendo como certo que ao final todos estarão juntos no Paraíso, há de se respeitar em maior medida cada pessoa como alguém de quem se gozará da companhia no convívio eterno; e há de se compreender que nos encontramos em diferentes estágios de entendimento, em diferentes passos de ritmo numa caminhada conjunta, ajudando-se mutuamente na correção do pensamento, dos sentimentos e do rumo. Não caberia antecipar um juízo excludente ou depreciativo sobre o outro, tendo outros como menores, compreendendo que todos passamos por um processo de aprendizado, correção e de melhora de entendimento sobre a Justiça e vontade divina. 


Solução. Um bom cristão não deve lamentar nem temer que todos possam, após o fim dos tempos, alcançar o paraíso: deve se empenhar, comemorar e se alegrar que tanto aqueles que trabalharam muito, quanto aqueles que não trabalharam quase nada, e ao final foram parar no céu pelo arrependimento, ou pela eventual restituição da alma. Também na parábola do filho pródigo, Cristo ensina que as almas que passaram seus dias na Terra fazendo o bem estiveram junto de Deus de um modo perene, por mais longo tempo do que aquelas almas que apenas descobriram o valor do Reino de Deus depois de muito sofrimento. Os pecados se traduziram em um sofrimento indenominável para o filho pródigo; e os benefícios do filho mais velho e leal foram são maiores, porque os que optaram por fazer o bem desde o começo puderam usufruir muito antes de todos os privilégios e bens divinos do Pai: “Replicou-lhe o pai: Filho, tu sempre estás comigo, e tudo o que é meu é teu” (São Lucas 15, 31). Os bons que ganharam o paraíso antes dos maus não passaram, em seu tempo na terra, pelo mal e sofrimento que resulta do pecado. Em resumo. Deve o bom cristão alegrar-se com a notícia e a possibilidade de que Deus terá ouvido e atendido seu pedido sincero na jaculatória do Rosário, e que todas as almas terão alcançado, por mistério inefável, por arrependimento, penitência, revelação, ou outra maneira, os bens divinos. Conforme Cristo prometeu que o que seus discípulos pedirem em seu nome será concedido, quanto mais pessoas orarem pela salvação de todas as almas, pelo contrário, assim se produzirá menos pecado no mundo, do que se ninguém tivesse orado pela salvação de todos os pecadores. O consentimento humano necessário para a salvação pode ser obtido pelo livre arbítrio daqueles que resgatam os recalcitrantes. 



Artigo 6 – Se é contrário aos dogmas da Igreja cogitar que o poder divino é mesmo invencível, irresistível e formidável, a ponto de salvar todas as almas



Primeira afirmação. No entanto, ao cogitar que todos serão salvos, não se poderia presumir que o erro e o pecado acontecem devido à falta de poder de atração divino.  Tanto é assim que Adão e Eva pecaram no Paraíso, quando nada lhes faltava, e Deus se fazia presente. Mesmo Deus sendo invencível, irresistível e formidável, Adão e Eva preferiram dar ouvidos à serpente (ao diabo ) e duvidar do amor divino. Logo, não depende da virtude e qualidade divina a escolha do homem pelo pecado, ou a permanência e expulsão do paraíso. 


Segunda afirmação. Caim cometeu crime gravíssimo, fratricídio, e foi banido para terras ermas por Deus (Gênesis 4, 11-12). Mesmo Deus amando os homens como Filhos, não pôde aceitar em seu convívio um homicida. E como todo aquele que odeia seu irmão é um homicida (1 São João 3, 15), resultaria que muitos homens, odiando uns aos outros, são excluídos por Deus de Seu convívio divino. 


E ainda. Terceira afirmação. Poder-se-ia afirmar que Deus guarda em Si qualidade de perfeita Justiça. E ainda que ame todos os homens e tenha engendrado cada alma em Seu coração, não poderia ser Deus, se não fosse justo, punindo aqueles que persistirem no mal e trazendo para Si aqueles que persistirem no bem. Cita-se então, do Antigo Testamento, que “Aquele que justifica o ímpio, e aquele que condena o justo, um e o outro são abomináveis ao Senhor.” (Provérbios 17:15).


Quarta afirmação. Que a existência do inferno é um dogma de fé da Igreja Católica Apostólica Romana constante no catecismo e que afirmar estaria vazio não faz sentido, já que sem função de ser lugar de padecimento eterno, não faria sentido existir o inferno. Que as doutrinas ao redor da apocatástase, de Orígenes, manifestando ideia similar, foram censuradas pelo Concílio de Constantinopla; que os seus desenvolvimentos teológicos posteriores, de Hans Urs von Balthasar, de que se bem o inferno existe, devemos esperar esteja vazio, não foram incorporados de nenhum modo à doutrina da fé católica. Além disso, há sacerdotes da Igreja que afirmam o inferno existe, naturalmente está cheio e que isso seria um dogma de fé da Igreja. 


Resposta à primeira. De fato, por um breve momento a instrução de Deus não prevaleceu sobre a sugestão da serpente, mesmo sendo Deus em tudo superior ao diabo ; e pela ambição de ser como Deus, homem e mulher foram expulsos do paraíso. No entanto, perante Deus, Eva descobriu-se enganada pela serpente: “A serpente enganou-me – res­pondeu ela” (Gênesis 3, 13). E em seguida, mesmo expulsos do Paraíso, não ficaram desamparados por Deus: “O Senhor Deus fez para Adão e sua mulher umas vestes de peles, e os vestiu.” (Gênesis 3, 21). Recorde-se, ainda, que Adão e Eva ofertaram Sete, o terceiro filho do casal, bem como sua posteridade, a Deus: "Adão conheceu outra vez sua mu­lher, e esta deu à luz um filho, ao qual pôs o nome de Set, dizendo: “Deus deu-me uma posteridade para substituir Abel, que Caim matou”. A Sete também nasceu um filho, e ele o chamou de Enos. Naquela época os homens começaram a invocar o nome do Senhor."  (Gênesis 4, 25-26). O poder divino permanece invencível, irresistível e formidável: a despeito dos esforços do diabo para perder os homens, Deus continua ensinando e atraindo para si os seres humanos infalivelmente, apesar das falhas de decisões dos seres humanos, quando cedem ao mal. Deus não abandonou Adão e Eva nem a sua posteridade à danação eterna.  


Resposta à segunda. O autor de Hebreus afirma que "Pela fé Abel ofereceu a Deus um sacrifício superior ao de Caim. Pela fé ele foi reconhecido como justo, quando Deus aprovou as suas ofertas. Embora esteja morto, ainda fala por meio da fé.” Do mesmo modo, embora Caim tenha padecido a punição divina em vida, seu contra-exemplo ainda fala por meio da fé, permitindo aos irmãos aprender sobre a gravidade desse crime. Ao fim de sua vida e depois de sua morte, não se poderia afirmar taxativamente, apenas pelo texto bíblico, se Caim alcançou a redenção ou foi degredado ao inferno. Além disso, recorde-se novamente que se Deus o baniu a terras ermas, não o condenou à morte em vida: “Eis que me expulsais agora deste lugar, e eu devo ocultar-me longe de vossa face, tornando-me um peregrino errante sobre a terra. O primeiro que me encontrar, vai matar-me”. E o Senhor respondeu-lhe: “Não! Mas aquele que matar Caim será punido sete vezes”. Então, o Se­nhor pôs em Caim um sinal para que, se alguém o encontrasse, não o matasse”. (Gênesis 4, 14-15). Se Deus não condenou Caim à morte em vida, como poderia condenar Caim à morte eterna? Deus permitiu, ainda, que Caim construísse uma cidade e tivesse descendentes, ainda que manifestassem uma lógica pervertida, como Lameque, de fazer o mal e evocar a proteção de Deus. Portanto, parece mais prudente conceber que Deus é o Deus da vida; e que a morte adentrou a realidade humana por outros meios, e não por instrumento divino.  


Resposta à terceira. Solução.  O problema da Justiça divina parece diferente da justiça dos homens. Ambas as noções de justiça implicam na punição do mal. Conforme o livro da Sabedoria, “Por outro lado, para os punir dos loucos pensamentos de sua perversidade, que os faziam extraviar-se na adoração de répteis irracionais e de vis animais, enviastes contra eles uma multidão de animais estúpidos, a fim de que compreendessem que, por onde cada um peca, será punido.” (Sb 11, 15-16). Maquiavel, em sua comédia teatral A Mandrágora, uma sátira à corrupção italiana em seu tempo censurada por muitos anos, afirma por meio de seu personagem Calímaco que “estão no inferno tantos homens de bem! Deverás, porventura, envergonhar-te de lá ires também?” Para a justiça dos homens, o poder e a autoridade que se concedem uns aos outros determinam a virtude de cada pessoa, porque julgam a fonte de toda autoridade é Deus. No entanto, conforme a Justiça divina, os maus atos, as fraudes, os abusos e assassinatos não deixam de ser punidos, por mais eles tenham sido revestidos de legitimidade e justificativa pelas autoridades no poder em vida. Isso não significa, entretanto, que a punição termina com a condenação, ou que será eterna: pois como bem recorda Leonardo Boff, mesmo no Antigo Testamento, no livro da Sabedoria, o Autor afirma taxativamente que “Não era difícil à vossa mão todo-poderosa, que formou o mundo de matéria informe, mandar contra eles bandos de ursos e de leões ferozes, ou animais desconhecidos e de uma nova espécie, cheios de furor (…) E, mesmo sem isso, eles poderiam perecer por um sopro, perseguidos pela justiça e arrebatados pelo vento de vosso poder; mas, dispusestes tudo com medida, quantidade e peso, porque sempre vos é possível mostrar vosso poder imenso, e quem poderá resistir à força de vosso braço? Diante de vós o mundo inteiro é como um nada, que faz pender a balança, ou como uma gota de orvalho, que desce de madrugada sobre a terra. Tendes compaixão de todos, porque vós podeis tudo; e para que se arrependam, fechais os olhos aos pecados dos homens.” (Sb 11, 17-23). Este trecho bíblico parece particularmente importante, porque Deus poderia fazer a Justiça acabando facilmente com a vida dos perversos e punindo-os em vida; no entanto, prefere não fazê-lo. Se a punição fosse o estágio final da vontade divina para que a Justiça divina fosse estabelecida, não haveria razão para que os pecadores sobrevivessem. Além disso, esse trecho do livro da Sabedoria também contém uma sugestão positiva: de que basta que Deus feche os olhos diante dos pecados para que todos alcancem a salvação: demonstrando assim Sua desaprovação, mesmo os piores homens se arrependem. A Justiça divina, portanto, parece antes consistir na salvação da alma, no livre agir da completa capacidade de Deus, do que no abandono dos pecadores e na condenação eterna da alma.  “Compreendendo, com efeito, que o que era para eles castigo, era para outros ocasião de benefício, sentiram a mão do Senhor”. (Sb 11, 13). O Novo Testamento dá seguimento a esse raciocíno de que Deus não quer o mal aos maus: “Pelo contrário, amai os vossos inimigos, fazei bem e emprestai, sem daí esperar nada. E grande será a vossa recompensa e sereis filhos do Altíssimo, porque ele é bom para com os ingratos e maus.” (São Lucas 6, 35). Isso é diferente de perder o senso de pecado: os ingratos são ingratos e os maus são maus, não obstante a bondade divina. Assim, a citação do Provérbio na Terceira afirmação não procede: pois não se trata de justificar maus atos como bons, mas sim de reconhecer que Deus não pode ser mau, nem mesmo com os maus. Nessa mesma linha de Justiça divina segue a catequese de Papa Francisco, “Deus é misericórdia infinita e justiça perfeita, não quer a condenação de ninguém, mas a salvação de todos.” (Homilia de 3 de fevereiro de 2016). Não se pode descartar que existam seres humanos que persistam e prefiram o inferno e a danação eterna; mas tampouco se poderia ignorar que os textos sagrados abundantemente reportam a maior capacidade divina de corrigir os pecadores em vida e atrai-los permanentemente para Si.  O Rei Davi cogita o mesmo, que não é entre os homens que encontramos a resposta, onde muitos se fazem inimigos. Antes é necessário olhar para o alto para aprender o que é a Justiça divina: “Senhor, mostrai-me os vossos caminhos, e ensinai-me as vossas veredas. (…) Lembrai-vos, Senhor, de vossas misericórdias e de vossas bondades, que são eternas. (…) O Senhor é bom e reto, por isso reconduz os extraviados ao caminho reto. Dirige os humildes na justiça, e lhes ensina a sua via. (…)” (Salmo 24 (25), 4, 6 e 8-9) 


Resposta à Quarta. Pois se Santo Agostinho dizia: "Ainda não estive no inferno, mas também ali estás presente, pois, se eu descer ao inferno, ali estarás." (Confissões, Livro I, Capítulo II). Esta, portanto, parece a afirmação mais simples de rejeitar, já que a existência do inferno não é disputada nesta análise. Ora, os Concílios de Constantinopla, no século VI, para todo efeito serviram para a censura do pelagianismo e de outras heresias pelo Papa Vigílio; mas se trataram de encontros sui generis pela interferência do Imperador Justiniano que, cortando laços com o Papa Vigílio, tomou para si a autoridade de dirigir ditos encontros, em completa irregularidade com a tradição da Igreja e autoridade do Papa sobre a Igreja. Aceitar tudo que foi ali decidido indistintamente, sem recordar e discernir que aqueles encontros foram marcados pela usurpação de poder do Papa pelo Imperador Justiniano, parece um raciocínio insuficiente. Em nenhum deles, além disso, se tomou isoladamente as questões teológicas disputadas dentro da ideia da apocatástase; mas se considerou a doutrina de Orígenes como um todo, desenvolvida por uma seita que fazia seguidores para desviar da fé católica, disso o efeito de uma heresia; pois os discípulos de Orígentes desenvolveram uma corrente da apocatástase, que passou a incluir outras formulações filosóficas – a de que existiriam uma sucessão de mundos infinitos, e não apenas um, a fim de que todos os seres pudessem repousar em Deus; de que Cristo estaria subordinado ao Logos (Pai), e não à Sua Direita, com estatuto completo de Filho consubstancial ao Pai, corrompendo assim a Santíssima Trindade. A doutrina que desenvolviam os discípulos de Orígenes continha ensinamentos sobre a parousia que formulavam além do que se poderia inferir dos textos sagrados e desrespeitava o que se desenvolvia consensualmente na Igreja. Não estava sendo julgada pelo Concílio, portanto, apenas a questão específica sobre o superpotencial e suficiência de Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – em redimir e atrair para Si todas as almas; mas sim uma doutrina que, por meio de formulações diversas, amealhava seguidores em uma linha cismática com o caminho que vinha trilhando a Igreja. Como vimos, o caminho que vem trilhando a Igreja hoje – e que se reflete nas declarações do Santo Papa – nos leva a efetivamente revisitar os textos sagrados para buscar neles uma resposta sobre a inclusividade do Paraíso e sobre todos os inumeráveis e benignos efeitos que Deus pode ocasionar em vida e no Purgatório, a fim de propiciar um inferno vazio, para irritação completa do diabo . Recorde-se, ainda, que os resultados de um Concílio ou de uma declaração papal, ainda que infalível, não devem ser tomados como inscrição na pedra. Apenas os Evangelhos e as Sagradas Escrituras estão inscritos na pedra e, mesmo assim, demandam uma atitude compatível para compreensão de seu conteúdo – o foco na salvação das almas, na vontade de Deus, antes que na condenação eterna dos homens e mulheres, vontade do diabo , de quem se rebelou contra o plano de Deus. Tanto é assim que, se bem os Papas Pio IX e X rechaçaram a democracia durante um período em que o sistema de Estados era formado pela instituição monárquica, a Encíclica Pacem in Terris veio a reconhecer o direito e a dignidade de cada cidadão ao escolher seus próprios governantes por meio do voto. É preciso compreender que as circunstâncias em que a democracia se manifestava anteriormente eram extremamente violentas e injustas; e que a evolução desse regime realizou a transição necessária para um modelo de governo desejável e legítimo. Do mesmo modo, o Concílio de Trento estabelecia diferentes procedimentos litúrgicos que o Concílio Vaticano II. Não se pode tomar o resultado de decisões papais e dos concílios sem compreender o contexto no qual se produzem as decisões papais e dos concílios. 


E ainda. Além disso, não se encontra entre os dogmas de fé da Igreja tamanho disparate de que se deve crer no inferno e na condenação das almas, uma vez que a missão da Igreja é propiciar que as almas sejam salvas, e não condenadas. Os dogmas de fé da Igreja constam resumidos no Credo niceno-constantinopolitano: e em bendito Credo não se encontra tamanha falta de senso de se crer na condenação da maior parte, de todos, nem de uma minoria de homens; pois para tanto seria necessário tomar o lugar de Deus para estabelecer um juízo final antecipado, o que não é compatível com a fé católica. O Catecismo da Igreja Católica não determina, muito menos, como dogma de fé, que existam condenados no inferno. O inferno é apresentado como uma possibilidade real e, pelo contrário, o Catecismo ressalta que o sentido do inferno não é a punição, e sim a conversão:  “As afirmações da Sagrada Escritura e os ensinamentos da Igreja a respeito do Inferno são um apelo ao sentido de responsabilidade com que o homem deve usar da sua liberdade, tendo em vista o destino eterno. Constituem, ao mesmo tempo, um apelo urgente à conversão (…).” (Catecismo da Igreja Católica, 1036). E acrescenta o mesmo que se tem encontrado nesta análise: “Na liturgia eucarística e nas orações quotidianas dos seus fiéis, a Igreja implora a misericórdia de Deus, «que não quer que ninguém pereça, mas que todos se convertam» (2 Pe 3, 9)” (Catecismo da Igreja Católica, 1037). Sobre haver sacerdotes que defendam a condenação de muitos ao inferno: existiram sacerdotes que efetivamente quiseram fazê-lo, não apenas no que diz respeito à alma, mas também ao corpo, quando condenaram muitos inocentes, por meio de métodos não-evangélicos, à tortura e à morte, durante o período da Inquisição. O Santo Papa João Paulo II pediu perdão pela atitude violenta desses religiosos, incompatível com os Evangelhos, em homilia de 12 de março de 2000, s.m.j., não se referindo a eles como sacerdotes, apesar de que tivessem exibido, em seu tempo, esse múnus. Parece natural que, se tristemente houve religiosos que condenaram pessoas à tortura e à morte em vida, na Idade Média, e foram ofertadas pela Igreja obras de expiação por esse pecado; ao encontrarmos religiosos que desejam condenar almas ao inferno neste século presente, em uma atitude ainda mais incompatível com os Evangelhos, devem ser também ofertadas pela Igreja obras de expiação por esse pior pecado. De resto, a existência do inferno, apesar de negada por um grande representante da Teologia da Libertação, aqui não é disputada. Tendo a própria autora deste texto experimentado concretamente o inferno, e visto pessoalmente a atuação maligna e insaciável do diabo por meio do escárnio e egoísmo dos homens, não parece convir negar que tanto o inferno como o diabo existem na prática, ainda que não pudessem existir em teoria. Ao mesmo tempo, pela mesma experiência empírica, é indispensável constatar que o inferno não parece ser o fim; e que o diabo  definitivamente não tem poder nem qualidades como Deus, nem tem a última palavra. “Desde que o Verbo Encarnado desceu até nós, todas as Igrejas cristãs de todo o mundo tiveram e têm a grande Igreja que vive aqui (em Roma) como única base e fundamento, porque, segundo as próprias promessas do Salvador, as portas do inferno nunca prevalecerão sobre ela.” (Catecismo da Igreja Católica, 834). Conforme o Catecismo, portanto, a Igreja Católica desempenha um papel e missão fundamental para garantir a salvação de todas as almas e o seu estatuto fundador dado por Cristo garante que essa missão será cumprida: o poder do inferno é inferior à sua capacidade de redimir todas as almas. 


Artigo 7 – Então, se o inferno existe, mas todos escolheram estar com Deus e Deus conseguiu já salvar todos, o que restará de Satanás † e os seus anjos depois do juízo final? 


Primeira afirmação. Que, então, se no fim dos tempos todas as almas serão salvas, não haveria razão de existir para o diabo †, nem os seus anjos pervertidos; e se fosse isso possível, os anjos caídos se reuniriam todos novamente sob o comando de Deus; e que não é isto que vemos no mundo, já que a maldade, a inveja e o sofrimento persistem. 


Resposta à primeira. Ao decair, Satanás † e os maus anjos † que o seguiram perderam, com a grande distância que mantêm da luz divina, o conhecimento sobre o destino final dos homens e mulheres e sobre o que se transcorrerá no final dos tempos: os demônios † apenas contemplam o erro e o desastre. Mas conforme Gabrielle Amorth, não devemos ter medo: “Satanás † é só o macaco de Deus” †, e São Gabrielle Amorth, afirma ele próprio, é mais feio do que Satanás †. Nada pode existir sem que Deus tenha permitido continuar existindo; portanto, se Deus permitiu a existência e decadência de alguns anjos †, isso alcança um propósito, certamente além do conhecimento que possa ter o ser humano, no horizonte escatológico. Mesmo tendo se rebelado contra o plano divino de Deus para os homens, e provocado abominações e atrocidades, os demônios † não puderam obstar o que Deus dispôs em sua sabedoria infinita. Por isso, vivendo nas trevas da ignorância, acabaram concorrendo, por meio de uma força opositora, para que se realizasse o plano divino de salvação de todas as almas: “Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Romanos 8, 28); e “atraiu todos para Si” (Jo 12, 32). Nada impede, portanto, que Deus, depois de ter precipitado Satanás † e seus anjos † ao inferno, e tendo se concluído a vitória da mulher sobre o dragão † , cumprido o fim dos tempos e realizada a salvação de todas as almas, a rebeldia e maldade tenham sido totalmente superadas. Os anjos outrora rebelados † poderão então escolher reunir-se de volta com Deus em obediência, para reter propósito de existência, ou simplesmente dissipar-se, se não puderem permanecer junto à assembleia dos justos (Salmo 1, 5-6). Conforme Santo Agostinho, “o ar caliginoso é um quase cárcere para os demônios †, até o tempo do juízo”; e conforme São Tomás de Aquino, “como a busca da salvação humana se prolongará até o dia do juízo, até então durará o ministério dos anjos e a exercitação causada pelos demônios †.” (Summa, art. 4, Questão 64, Prima Pars). E ainda: “Ora, o ser e o não-ser do anjo, dependendo do poder divino, Deus pode, absolutamente falando, fazer com que o ser dele não venha a existir”. (Summa, Art. 6, Questão 9, Prima Pars). E ainda assim, na Cidade Santa, na Nova Jerusalém, “As suas portas não se fecharão diariamente, pois não haverá noite” (Apocalipse 21, 25). A hipótese de que poderão deixar de existir é respaldada por alguns Santos importantes.


Segunda afirmação. Que há homens e mulheres que morreram blasfemando contra Deus e negando ter qualquer fé nele, condenando e dizendo ser necessário condenar pelo menos alguém ao inferno, disso não se pode duvidar, pelas abundantes evidências. E que essas pessoas que não cessam de acusar-se uns aos outros e de acusar a Deus, presente no próximo, estarão no inferno; enquanto apenas aqueles que louvam e adoram a Deus, e buscam a salvação de todas as almas, estarão no paraíso, gozando dos benefícios da Comunhão dos Santos e do convívio com Deus, tendo se unido a Cristo. Conforme São Tomás de Aquino: “depois do dia do juízo, todos os maus, homens e anjos, estarão no inferno; os bons, porém, no céu” (Summa, art. 4, Questão 64, Prima Pars). 


Resposta à segunda. Durante a vida na terra, todo ser humano, mesmo tendo blasfemado contra Deus e os irmãos, teve a ocasião de contemplar e admirar uma beleza que, refletida nas criaturas, nas circunstâncias, ou em sonhos, provocou-lhe ternura no coração e grande saciedade, ainda que por um curto espaço de tempo, mesmo que tenha sido rapidamente interrompido pelo pecado; conseguindo a alma experimentar algo da grandeza divina que guardou consigo mesma e que permitiu a alma continuasse existindo na Terra, por um tempo. E isso se aplica igualmente aos bons, pois não existe homem, salvo Jesus Cristo, que não tenha pecado (Pode o homem ser justo diante de Deus? Jó 25,4); nem há mulher, salvo Santa Maria, que não tenha contido alguma impureza. No juízo final, essa luz de Deus será revelada, e a alma, já livre de suas limitações, será capaz de contemplar, admirar e escolher permanecer plenamente no que viu e viveu de inefável, pois Deus se apresentará revelado dentro do que a alma viveu e vislumbrou. Conforme Cristo explica: “seremos como anjos”. Para Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, “assim como a alma vê certas coisas, por visão imaginária, quando o corpo jaz sem sentidos, não ainda completamente morto; assim também quando estiver completamente separada do corpo pela morte”. (Summa, Art. 8, Questão 77, Prima Pars). Ainda que São Tomás de Aquino tenha estabelecido corretamente a causa e consequência, maldade e inferno, bondade e céu, permanece sendo perfeitamente possível, à luz das Sagradas Escrituras, que todas as almas tenham sido salvas, purificadas do mal e sejam atraídas para Deus, conforme o plano divino; e que apenas o que nelas se preservou de mais puro venha a ser revestido na ressurreição da carne, para restaurar o perfeito convívio com Deus e com os seus anjos e Santos.  Tanto é assim possível que Cristo afirma: “Tem na mão a pá, limpará sua eira e reco­lherá o trigo ao celeiro. As palhas, porém, serão queimadas num fogo inextinguível”. (São Mateus 3, 12). As impurezas não podem entrar no céu. Se todas as impurezas são “lavadas no sangue do cordeiro”, e não restar desse descarte o que não presta, na experiência de vida nenhum ser humano mau, não haverá ninguém no inferno; e se vier a cessar, por resgate de Cristo e intercessão ddos Santos, na alma daquele que foi mau toda a maldade, restando nele apenas o que é bom, tampouco restará qualquer anjo mau punidor. O propósito da existência dos anjos maus, para nos exercitar em vida, condenar a Prostituta, fazer cair Babilônia, ou nos punir no inferno, terá cessado. A revelação da Face divina à alma e o restabelecimento do convívio perfeito com Deus fará cessar todo pecado em toda alma para a qual Deus se voltar. E, como vimos, Deus se volta para todos.  


Terceira afirmação. Que São Tomás de Aquino cogita apenas pelos estóicos, que Túlio segue nos Paradoxos, e pelo erro dos heréticos, se poderia considerar iguais todos os pecados, ou iguais todas as penas no inferno (Summa, Art. 2, Questão 73, Prima Pars); que se dirá, então, de anular todas as penas no inferno e tomar apenas em cada um o que se encontra de bom, ou o que favoreça um desígnio salvífico. Que isso seria falha na justiça divina. Que, na mesma linha, São Tomás de Aquino afirma que “no inferno não pode haver perdão”. 


Resposta à terceira. Para nós, não parece adequado aos seres humanos julgar as consequências do que viverá o homem no juízo final pelas suas faltas ou pelas suas medidas; no juízo final, quem fará todas as medidas e ponderará todas as faltas será Deus, e Cristo, o Filho sentado à sua direita. Parece, portanto, pouco factível considerar que Deus seria apenas capaz de lavar os pés sujos dos Apóstolos, pés que fugiram, antes que caminhassem adiante; mas não capaz de lavar a lama com que se recobriu inteiramente Pilatos, por exemplo, ao condenar Cristo à morte sem motivo. Se os Apóstolos não tivessem fugido e tivessem testemunhado em seu favor, Cristo teria sido condenado? Os pecados menores e maiores estão todos entrelaçados, e dificilmente uma imensa iniquidade ocorreria sem que tivessem sido cometidos outros pecados, ainda que menores, em uma longa sequência antes. No entanto, era necessário que se cumprisse a profecia, e o próprio Cristo instruiu aos Apóstolos que não batalhassem por Ele. Quando Pilatos, para surpresa e dúvida do Evangelista, se choca com o que estava habituado a fazer, ao ouvir que Jesus estava morto, mesmo depois de ter sido ele próprio quem havia condenado Cristo à morte de cruz, não deu uma mostra de arrependimento e repulsa pelo ele próprio havia acabado de fazer? E poderá assim também ter sido lavado de sua imensa lama pelo contato direto que teve com Cristo, alcançando posteriormente um devido arrependimento do que fez. Se demonstrou arrependimento diante de José de Arimateia, não terá demonstrado ainda maior arrependimento diante do juízo final e da assembleia dos justos? O juízo final é um momento ao qual nós, enquanto na terra, não temos acesso nem conhecimento ainda. Cristo resolveu perdoar os seus opressores e assassinos, enquanto era crucificado: portanto, não temos como reverter o perdão de Cristo. Assim, também, outros seres humanos mais sujos poderão ter sido lavados de seus pecados, depois de purificados e perdoados por Deus, e diante do juízo final, mantendo na alma apenas o que permaneceu de bom neles. Lavar os pecados depende da capacidade de Deus, que não tem limites; e não dos homens, que enxergam apenas uns nos outros os seus defeitos e problemas. Não se trata, portanto, de afirmar ser possível haver perdão no inferno; mas de analisar que, antes do juízo final, Deus poderá ter proporcionado a cada alma tudo que favorece a sua salvação e limpeza. Diante do juízo final, será muito mais infeliz o sofrimento de Pilatos que dos Apóstolos, por ter se dado conta da incorreição de enviar à morte um inocente que era na realidade o Filho de Deus, do que a infelicidade e o sofrimento dos Apóstolos, por apenas ter fugido por medo, pelo que também foram perdoados. Deus poderá perfeitamente escolher aceitar o arrependimento de todos; ainda que o sofrimento e arrependimento de uns tenham sido maior do que o sofrimento e arrependimento de outros. Os pecados de uns e de outros podem ter ocorrido, além disso, pelo próprio efeito salvífico: o erro de Pilatos poderá ter se revertido na prevenção de que muitos juízes fossem negligentes em seus ofícios como magistrados, esquecendo-se de mandar colher provas de inocência daqueles que são acusados, para defender um inocente da fúria insana do ochlos, ou da inveja de seus pares; e também o erro dos Apóstolos aumentou neles a devoção e a coragem de pregar o nome de Jesus, sobretudo ao ver que Cristo ressuscitado lhes trazia a paz e perdoou suas fraquezas.  Se estende por infinitos séculos a capacidade de Deus de elucidar, perdoar e salvar o ser humano, e a salvação que Deus proporcionou por meio de Cristo produz novos efeitos de salvação em uma espiral infinita. Parece muito mais provável, portanto, que Deus venha a revelar, no Juízo Final, a sua Face de perfeita beleza, perdão e misericórdia, diante do sofrimento humano, pelo pecado, e pelo tempo de vida que o ser humano deixou de aproveitar, longe de Deus. Além disso, o próprio Cristo recorda Ele é o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. E São Tomás de Aquino afirma constar no símbolo de fé que Cristo desceu ao limbo para salvar todos os que ali estavam do inferno: “Logo, pode-se dizer, segundo Gregório que interrogou ignorando se havia de descer em pessoa próprio ao inferno. Pois sabia que a virtude de sua paixão havia de estender-se até aos que estavam encerrados no limbo, conforme a Escritura: Tu também pelo sangue do teu testamento fizeste sair os teus presos do lago em que não há água.” (Summa, Art. 7, Questão 2, Secunda Secundae). Gregório, Ambrósio e Cristóstomo confirmam isso. E temos, ainda, que para São Tomás de Aquino “é possível odiar nos pecadores o serem tais e amá-los como homens, capazes da felicidade”; “Porque nem o próprio Deus quando pune se alegra na perdição dos vivos, como diz o Sábio; mas na sua justiça, porque o Senhor é justo e ele amou a justiça. – Enfim, é o sentido, que o desejo se refira à remoção da culpa, e não, da pena; isto é, que os pecados sejam destruídos e os homens permaneçam.” (Summa, art. 6, Questão 25, Secunda Secundae). Ora, se retirada a culpa, pela qual se faz sofrer, não há mais pena; pelo menos não além daquela pena de ter cometido um pecado, que é a pena para todo efeito relevante, a fim de se gozar do Paraíso, ou permanecer no inferno. Do que se conclui que é indispensável ler São Tomás de Aquino não apenas em seus raciocínios iniciais, riscando a superfície de seu pensamento, mas adentrar suas ponderações até o fim. 


Solução. Pois mais se possa avançar ou retroceder na doutrina dos homens, e nas Sagradas Escrituras reveladas aos homens ao fim e ao cabo apenas Deus tem pleno e certo conhecimento sobre quantos conseguiu salvar e quantos não terá conseguido. Sendo Deus onipotente, onisciente e onipresente, podemos suspeitar com alguma confiança, entretanto, que Deus é capaz de misteriosamente produzir salvação para todos, e extirpar em todos os pecados, a tempo de produzir a generosidade consigo e com o próximo, o gozo da vida eterna em Sua presença.  Não pode nem deve nenhum teólogo ou mesmo Santo dizer o que Deus pode fazer ou deixar de fazer, quando queira Deus fazer o bem a todos os homens. 


* Ana Paula Arendt é cientista política, poeta e diplomata brasileira.


** Agradeço a Leonardo Boff pelos comentários e excelentes indicações bíblicas. Apesar das diferenças de perspectiva sobre a existência do inferno e do diabo †, ambos somos da opinião de que os textos sagrados nos indicam um Deus onipotente e de infinita misericórdia, capaz de resgatar todas as suas criaturas. 


Bibliografia


BÍBLIA SAGRADA. Edição da CNBB, 2001. 


BENTO XVI. Natureza e Missão da Teologia. 2012. 


PAPA FRANCISCO. Homilias diversas. 


SANTO AGOSTINHO DE HIPONA. Obra completa. 


SANTO PAPA JOÃO PAULO II. Catecismo da Igreja Católica, 1992. 


SÃO BOAVENTURA. Itinerário da mente para Deus.


SÃO LEONARDO DE PORTO-MAURÍCIO. O Sermão Sobre o Número dos Eleitos.


SÃO TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologiæ. 


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