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UM SARAU COMO NOS VELHOS TEMPOS




Sarau tradicionalíssimo na "Casa do Mato", neste sábado, no castelo de mago do Rubens Jardins, poeta e jornalista, autor do livro 300 mulheres poetas. A casa inteira é uma obra de arte que ele construiu com as próprias mãos. Só vocês visitando para acreditar no que ele fez. Não deixa de lembrar a ideia da Casa Pueblo, obra do Carlos Páez Vilaró, em Punta Ballena, casa frequentada por Vinicius de Moraes e grandes nomes da literatura latinoamericana. Hoje um lugar no interior do Uruguai de peregrinação de turistas do mundo inteiro, para ver o sol nascer...






Compareceram à Casa do Mato poetas e prosadores de São Paulo famosos e amigos trotskistas, mulheres sambistas de olhar profundo, a nossa Vênus de mística, poeta Beth Alvim, com direito a comida e bebida em excesso, violão, conjuração... Todas as músicas mais clássicas do repertório nacional. Um sarau de verdade!


Confesso que fiquei ansiosa. Eu deveria ter escrito, idealmente, "Uma ode à decadência". Creio teria sido um maior sucesso. Mas, sem tempo para implementar a ideia, na hora, recitei as Belas Estradas de Minas. E não é que aplaudiram? Viajaram comigo, todos aqueles poetas, sambistas e prosadores, na estrada... Disseram que eu sou sobrinha mesmo de meu tio.



Como transitar desde um evento dos amigos monarquistas, em um sábado, para um evento dos amigos trotskistas, no outro seguinte? Ah, caro leitor... O Brasil é assim: um país diverso. Se o nosso País é diverso, também é a nossa poesia. Foi uma honra estar entre pessoas de grande presença de espírito.







Ao fundo, o jornalista e poeta Rubens Jardim,

com a sambista Rita Alves,

produtora cultural e enteada de Martinho da Vila.



A poeta Beth Brait Alvim declamando.


Nas fotos, eis meu tio Celso de Alencar recitando em sua vez, poeta perverso, conhecido por dar voz aos marginalizados no Brasil. Sentamos juntos na cabeceira.


Tio Celso foi durante muitos anos responsável pelos projetos de cultura no plano municipal, pela cena cultural de São Paulo, e é conhecido por todos os poetas e prosadores paulistanos, porque além de fazer uma poesia que ninguém consegue fazer, é um excelente declamador. Aqui no apartamento dele, há dezenas de troféus de poesia falada em toda parte, pois não cabem na sala do apartamento pequeno, e encontro nos quartos, no corredor, no banheiro...


Ele faz muito sucesso na Pauliceia desvairada desde o grupo Poeco, quando houve seu legendário lançamento em 1981. Nessa ocasião venderam mil cópias da antologia de poesia Poeco III, no Cine Sesc Augusta, em um só dia! Algo que impressiona qualquer poeta, já que somos habituados a uma grande dificuldade de vender nossos livros em vida. Ele conta que o segredo foi contar com a exibição na sequência do filme "Cinzas no Paraíso"... Sua obra completa deve sair em breve.





Pregavam peças nos poetas e críticos que se diziam muito conhecedores de poesia. Conta que certa vez ele, João Scortecci e Theresa Christina da Motta (filha de diplomata colega nosso) foram convidados a um sarau de acadêmicos no qual cada poeta teria uma classificação, uma nota para seu poema. Na vez dele, leu com grande performance o poema "O bicho". Depois de chocar todos os doutores da Academia Paulista de Letras, recebeu, de zero a dez, nota 1. Disseram que não tinha sonoridade, nem forma, nem teor poético...


No final daquele sarau feito há décadas, a grande revelação. Ele havia lido, na verdade, um poema de autoria de Manuel Bandeira... O grande ídolo incensado pelos acadêmicos que deram nota mínima ao poema. Resultado: faz troça deles até hoje. Eis o meu tio, o mais subversivos dos subversivos dos revolucionários. Uma farra!


Contei àquela confraria um pouco de meu périplo para chegar em São Paulo, por Minas, no poema... E nenhum mineiro havia sentado à mesa. Ainda assim um êxito.


E bem no meio do sarau... A mágica deu certo? Uma chamada me faz disparar o coração saudoso: a ligação de um mineiro.




As belas estradas de Minas

Por Ana Paula Arendt*




Onde fica Minas?

Lá onde a estrada é um carro depois de outro carro

entre a estrela firme, a nuvem baixa e o morro azul…

Lá onde mora o Brasil que não existe mais,

onde há estrada de mão dupla estreita,

entre os anúncios de cachaça, queijos e minhocuçus.

(Não falarei de buracos, porque são poucos).


Lá onde tem comarcas de Passos,

de Abre-Campo, Caxambu, Dores de Indaiá;

Cedro de Abaeté, Bom Despacho, Ervália, Rio Casca;

de Braúna, Resplendor, Aiuruoca, da Canastra;

de Açucena, Naque-Nanuque e Bom Jesus do Bagre…

Onde vivem Patos e Formiga, tem poema.


Lá onde tem

Ponte sobre o Rio Cristal

Ponte sobre o Rio Paracatu

Ponte sobre o Córrego Extreminha

Ponte sobre o Córrego Poções

Ponte sobre o Córrego do Arrependido

Ponte sobre o Córrego Mata-léguas

Ponte sobre o Rio Sapucaí


Vi um bicho que não era nem cachorro,

nem paca, nem capivara, nem veado.

Vi um porco-espinho enorme.

Vi rolinha.

Vi tatu.

Vi um tucano voando alto, porque é esperto.

Vi, é claro, as vacas pastando.

Que se importam as vacas?


Lá, onde a mata escura é branca de luz nossa,

onde a colina e a alvorada são as cortinas de uma cidade amarela…!

Onde a gente é capaz de repentinamente dar

Grandes saltos de compreensão no silêncio.


Lá, onde tem

Circuito de tropeiros

Circuito do cerrado

Circuito de gruta e mar de morros

Circuito das águas

Circuito dos caminhos do sul de Minas

(E não dá curto-circuito?)


Onde tem caminhão pegando fogo,

em incêndio brabo mesmo, rodeado de cones

no meio da noite escura, sem ninguém, tudo silêncio…

Onde tem acidentes fatais com carretas enormes

e há equipes de socorro bem-equipadas me dizendo que

não precisam de minha ajuda.

Lá onde tem coisa se mexendo na mata

que graças a Deus não vi.


Lá, onde tem uma loja cheia de orquídeas perfumadas.

Lá, onde tem desjejum com cerveja e pão-de-queijo.

Onde há mapa com todas as vias batizadas.

Lá onde o café é de graça, moça.

De graça?! Esse café bom?

É, de graça. Custa nada, não…


Mas onde fica Minas, onde assoma o assombro?


Lá.


Onde tudo tem alma.

Lá, até as pedras têm alma!


Minas fica

onde as pedras têm alma,

onde a alma tem chão

e o chão tem saudades.


Onde eu paro meu carro para mirar a vista

desde a criação eterna do mundo…


É devagar que se chega a conclusão nenhuma.


Onde o dia tem vinte e cinco horas extenuantes-revigorantes-extenuantes

Dirigindo

Onde tem vinte e seis garças ciscando e voando desde um brejo d’água,

onde a estrada é feita de franjas de pedra, de ombros nus de montanha…

Onde crescem os arbustos picados de folhas verdes-claras e redondas

e onde surgem as colunas limpas que erguem os formosos coqueiros…

Lá, onde tem um morro crespo de mata virgem recamada

com muitas árvores robustas, eriçadas e só se vê verde-escuro.

Lá onde do alto o olhar se perde

em ver tanta ponte e tanto horizonte e tanto vale…


Lá, onde a imensidão mora

e o olhar se perde.


Lá, onde o meu lábio inebriado sangra…


Onde não se pode extravazar os ímpetos

de se levar uma vida degradante

sem vê-los dissipar no horizonte infinito.


Lá, onde eu paro meu carro em mirante da vista

singrando desde a criação do mundo eterno…

Cicatriz no mapa

Mas no horizonte, é eterno.


Para cantar a imensidão ali, de estrada,

seria necessário um sem-fim de poetas;

um tanto de motoristas que se cumprimentam

bom-dia e boa-noite com os farois de milha;

vinte e seis garças;

e um monte de crianças correndo na quadra de Itaúna,

já tarde, na vinheta de noite adentro.


Para cantar as curvas que nunca terminam

na Estrada Real até Piquete, cheia de neblina…

Lá, onde viver e dirigir é um milagre…!

A vida muitas vezes é também assim, real:

como uma estrada sem acostamento…


Por lá, onde as famílias negras se envergam até hoje

nas casas de patrimônio do Barão de Itajubá,

do ladinho de onde passava a linha do trem.

Lá, onde eu paro um ‘cadinho para anotar,

porque escrever tudo é difícil.


É difícil achar lugar mais acolhedor que Minas.

Lá, onde me dizem que eu sou mineira.


Para mim, para eu me devastar em dois dias de terra

e sentir o meu rosto com água,

para me engalanar com desvelo e

me varrer de ponta a ponta

os dédalos com o fogo de um mudo estrépito,

basta me dizer:

“as belas estradas de Minas”…



* Ana Paula Arendt é poeta e diplomata brasileira.



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