Uma entrevista com a poeta e ilustre acadêmica Raquel Naveira

Fotos: Filipe Vido.
RAQUEL Maria Carvalho NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Título de Doutor em Língua e Literatura Francesas pela Faculdade de Nancy. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP). Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE) e na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade. Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis. O mais recente é o livro de crônicas poéticas LEQUE ABERTO (Guaratinguetá/SP: Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal "O TREM" (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia das Ciências de Lisboa, classe de Letras, e ao PEN Clube do Brasil.
Arendt. Boa noite, professora e escritora Raquel Naveira, ilustre Membro da Academia das Ciências de Lisboa, poeta brasileira renomada, mestra e confrade. É uma honra entrevistá-la. Podemos começar do começo? Como, quando e por que começou a escrever poesia?
Raquel Naveira. A minha vocação veio de infância. Antes mesmo de ler ou escrever, eu já sentia que a palavra era o meu ser e estar no mundo. Gostava de ouvir histórias, de cantar as cantigas de roda (emocionava-me com elas) e intuía que os livros possuíam vozes.
Li As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que abriu as portas de minha imaginação para sempre.
Os contos dos irmãos Grimm, as histórias das Mil e Uma Noites, as lendas de Malba Tahan e os relatos da Mitologia Greco-Romana povoaram meu imaginário.
Tive um encontro com a poesia na juventude: Castro Alves e os poetas românticos, depois Drummond, Bandeira e Augusto Frederico Schimidt.
O processo sempre foi esse: ler e escrever. Escreviver.
As leituras e a sede de me expressar resultaram numa carreira de Magistério, na área de Letras. A poetisa alimentou a professora e a professora alicerçou com sua formação o trabalho literário da poetisa.

Arendt. Como foi a recepção de seus primeiros livros? A consagração veio logo no começo, ou tardou a ser reconhecida pelos demais escritores? Como publicou seu primeiro livro e qual foi a editora que melhor lhe apoiou?
Raquel Naveira. Obedeci à máxima de Horácio em sua Arte Poética: guardei meus poemas por mais de dez anos, antes de publicá-los num livro. No entanto, desde os meus vinte anos, já os publicava no jornal de maior circulação da minha terra na época: o Correio do Estado. Quando veio à lume o Via-Sacra, em 1982, meu primeiro livro de poemas, eu já tinha um público leitor.
Residindo em Campo Grande, no sul de Mato Grosso, longe do eixo Rio-São Paulo, publiquei por uma gráfica da cidade, independente.
Nesse momento, comecei a enviar o livro para escritores, professores e jornalistas (o carteiro é amigo do poeta) e alcancei uma boa fortuna crítica.
O livro seguinte, Fonte Luminosa, foi publicado por Massao Ohno, de São Paulo, um editor de arte que lançou Hilda Hilst, Renata Palottini e toda uma geração de poetas.
O terceiro, Abadia, pela editora Imago do Rio de Janeiro foi indicado ao Prêmio Jabuti, em1996.
Cada livro tem uma história diferente, uma editora, uma porta que se abre, uma trajetória, um destino misterioso.
Tenho feito excelentes parcerias com casas editoriais importantes do país, como Escrituras, Penalux, Íbis Libris, Miró, Estação Liberdade e também com a regional Life, entre outras.
Arendt. Onde busca inspiração para os seus livros, e como consegue se manter cheia de vida? Vê-se exuberante e cheia de paixão pela literatura e poesia. Alguma vez desanimou de escrever ou se desiludiu? Como lidou com isso?
Raquel Naveira. Li ainda jovem o Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke onde ele dizia: “Não há senão um camino. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?” Respondi: “Sim, morreria. É a arte da palavra que me mantém ardente, acesa, atenta, esperançosa, apaixonada.” E aí construí minha vida de acordo com essa necessidade. Testemunho o tempo todo essa pressão interior. Essa marca de minha personalidade. Essa minha natureza profunda. E a poesia tem sido a grande companheira, a prece mais sincera, a conexão com o milagre da existência, o esforço, o consolo.o conforto, a eterna busca. É ela que me dá bom ânimo.
Arendt. Seus poemas são fortes. Cada poema um sendeiro em que se notam alguns percalços na sua caminhada humana. Alguma vez refugiou-se na poesia por alguma tristeza vivida, de si, de mulheres com as quais conviveu? Como é a situação das mulheres no Mato Grosso do Sul?
Raquel Naveira. No mundo temos aflições sempre. A caminhada de uma alma peregrina é árdua. Vivo de peito aberto e me ponho na pele dos que sofrem.
As mulheres em Mato Grosso do Sul são guerreiras e estão abrindo seus caminhos.
Embora constate muita violência nas relações interpessoais e familiares, creio no poder do amor, em relações em que haja mútua proteção e diálogo.
O amor é uma ocasião sublime para uma pessoa amadurecer, crescer ao lado de outra.
Casei-me com meu primeiro amor e lá se vão mais de quatro décadas.
Amar é bom e difícil. Uma longa aprendizagem.

“Sou fiandeira
Tecendo noite e dia
Uma esteira de pensamentos.
Sou fiandeira,
Aranha tirando de dentro
A liga que emaranha
Sou fiandeira
Bordando com palha e ouro
A bandeira de minha fé.
Sou fiandeira,
Vivo à beira
De tudo aquilo que é frágil,
Que parece fiapo
Ou que está por um fio.”
NAVEIRA, Raquel. Fiandeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.
“VIOLETA
Estou em perigo:
Uma angústia,
Um desejo de morrer,
Minhas pétalas murcham
Num roxo mortiço,
Perco o viço,
De amor tão intenso
Desfaleço.
Estou em perigo:
Uma felicidade,
Um deleite,
Minhas raízes sugam húmus,
Encharcam-se,
Amoleço.
Estou em perigo,
Nada no mundo me vale nesse transe;
Num jardim cheio de sombras
Permaneço.
Quando
Ele me toma
Entre seus dedos de sol
E me sopra ânimo e coragem,
Fortaleço.
Sem encontrar apoio na terra,
Sem poder subir ao céu,
Vivo frágil,
Presa num caule suspenso.”
“LEMBRANÇA DO RIO
Da janela da cozinha
Eu via
O rio
Ou era o rio que me espiava,
Espichando o dorso de lama,
Cobra de couro liso.
Enquanto lavava louça,
O rio,
Escorregadio,
Levava nas águas sem espuma,
Os meus desejos,
Sentimentos
E desvios.
De vez em quando,
Desprendia-se da árvore
Um bugio,
O rio tremia,
A pele eriçada
Num calafrio.
Eu via
E pensava:
Sou moça,
Não vou morrer
Se me atiro nesse rio;
Não há dor,
Queimadura,
Lamento que ele não cure,
O seu balbucio
É paz e esquecimento.
Ó substância úmida!
Ó existência precária!
Meu corpo escoa
Como água
Como se fosse
Meu próprio rio.”
NAVEIRA, Raquel. Portão de Ferro. São Paulo: Escrituras, 2006

Arendt. Como vê as mulheres brasileiras hoje? Para onde devem rumar, quais devem ser nossas prioridades? A sororidade no Brasil prosperou em alguma medida? E quanto às associações de mulheres, antigamente e hoje? Qual o papel que a poesia e a literatura podem desempenhar na luta das mulheres por um tratamento mais respeitoso e equitativo na esfera pública?
Raquel Naveira. A prioridade para todos é a educação, o cultivo da sensibilidade, a compaixão pelo próximo, um olhar para a cultura e para a arte.
Interessante a palavra “sororidade”. Vem de “sóror”, a freira, a monja, a irmã. Assim como “fraternidade” vem de frei, de irmão, de frater. Uma etimologia medieval usada pela corrente feminista de hoje.
Significa que a mulher deve ser amiga de outras mulheres e formarem uma rede de apoio.
Maravilhoso sempre contarmos com nossas mães, irmãs e amigas na tarefa de nos ajudarem com nossos problemas e desafios.
Associações que acolham as mulheres, cuidem de saúde e nutrição, protejam as mães que trabalham são fundamentais.
A poesia é sempre uma atitude, um gesto de coragem, tem substrato social.
Gosto de dar voz às mulheres através do que escrevo.
Espero levar sempre sororidade e fraternidade através da palavra.
Arendt. Meus livros favoritos que Vossa Excelência escreveu são os romanceiros, o “Guerra entre irmãos”, poemas inspirados na Guerra do Paraguai e “Caraguatá”, poemas inspirados na Guerra do Contestado. Transcrevo trechos poderosos que nos fazem mergulhar na história.

"Maria Rosa (Alegoria-Contestado)". Óleo sobre tela de Zumblick, 1982.
Capa do livro Caraguatá, de Raquel Naveira.
I
Serra do Mar
A Serra do Mar
Estende-se pela costa paranaense
E por Santa Catarina
Como um corpo de dragão
Escamado de vales
E esporões,
Espumando massas de calhaus.
Quantas pontas,
Enseadas,
Lagunas,
Restingas
Pelo cinturão negro do mitológico animal,
Imerso no nevoeiro!
Na Serra do Mar
Contribuiu com a guerra
A brutalidade dos elementos:
O vento,
As águas,
O ar.
II
Terras Altas
Quem quer galgar a Serra do Mar?
Melhor ficar perto do oceano,
Na praia azulada.
Lá nos sertões há caigangues,
Índios rudes e agressivos;
Erveiros entre tufos de talos roxos
Secando ao calor de fogueiras;
Caboclos destruindo imbuias
E pinheirais;
Vaqueiros e fazendeiros
Isolados em invernadas,
Ranchos
E currais;
A maioria broncos,
Analfabetos,
Habituados no trato com os irracionais.
Aquelas terras altas,
Longínquas e ignotas,
Eram de ninguém,
Um mistério,
Um desafio.
(…)
V
João Maria
Era um santo da terra,
Meu padrinho João Maria,
Um monge,
Um eremita
Vindo da Galiléia
Para este sertão
Que ele chamava de “Casa Verde”,
Verde como o chimarrão da cuia
E as águas do rio Uruguai.
Às vezes parecia jovem,
Cheio de energia,
Outras vezes, velho,
Curvado ao peso da sabedoria;
Usava gorro de jaguatirica,
Sandálias de couro,
Roupa de riscadão,
Era tão digno e bom
Meu padrinho João.
Andarilho,
Aparecia
E desaparecia,
Carregava um oratório,
Uma panelinha de alça
Onde nunca faltava alimento,
Uma bandeira branca
Como uma pomba vermelha;
Tinha perdido três dedos da mão
Meu padrinho João.
(…)
XVI
Conceição
Conceição
Era menina
Quando foi violentada pelo padrinho Petrônio,
Na fazenda Chuva de Pedra,
Bem no meio do galpão.
Daquele dia em diante
Passou de mão em mão,
Habituou-se ao pecado,
Às manhas da sedução.
Era tão bonita…
O vestido de chita caía sobre seu corpo,
Roliço e moreno
De rameira,
Adeodato enfeitiçado
Casou-se com Conceição,
Um cinamomo foi o altar,
Ardia um céu azul
Sobre as brasas da paixão.
Conceição não sabia ser fiel,
Que fidelidade se aprende,
É decisão,
Procurava os homens de briga,
Amava a todos e a nenhum,
Porque no fim sentia asco,
A mais funda solidão.
Até que Adeodato,
Querendo casar com Mariazinha,
Dá-lhe um tiro no coração.
XIX
Rosa Maria dos Anjos
Maria Rosa,
Decadente,
Perdeu o “aço”,
Agora é Rosa Maria
Quem ouve as vozes do espaço.
Rosa Maria
Conversa com sete anjos
Brancos
E brilhantes
Como velas de um candelabro.
Quando Potiguara
Entrou em cena
Rosa Maria avisou:
– Quem quer salvar a pele
Fuja de Santa Maria,
Que o homem tem nome de índio
E instinto de fera.
Todo mundo acreditou,
Arrumaram as tralhas
E saíram feito carreiro de formigas
Rumo a São Miguel.
Aqueles sete anjos
Brancos
E brilhantes
Como velas de candelabro
Sopraram mesmo a verdade.
Potiguara reduzia tudo a pó,
Por onde passava
Era a ruína.
O descalabro!
NAVEIRA, Raquel. Caraguatá: poemas inspirados na Guerra do Contestado. Campo Grande: Gráfica Ruy Barbosa, 1996.
Arendt. Como podemos ver, seus romanceiros são livros cativantes, visuais, cheios de personagens bem escrutinizados nos versos. Adorei esses livros, são fáceis de ler, leves de assimilar… Há palavras novas que já sempre estavam, ficam retidas na retina. Como fez a pesquisa histórica e geográfica por detrás dos versos? Gostaria muito de conhecer como escolheu os fatos, os lugares e pessoas que seriam incorporados no livro em forma de verso.