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na aresta do tuiuiú

Uma entrevista com a poeta e ilustre acadêmica Raquel Naveira




Fotos: Filipe Vido.

RAQUEL Maria Carvalho NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo. Título de Doutor em Língua e Literatura Francesas pela Faculdade de Nancy. Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), onde se aposentou. Residiu no Rio de Janeiro e em São Paulo onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula (RJ) e na Faculdade Anchieta (SP). Deu também aulas de Pós-Graduação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE) e na ANHEMBI-MORUMBI de São Paulo. Palestras e cursos em vários aparelhos culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida, Casa Mário de Andrade. Publicou mais de trinta livros de poesia, ensaios, crônicas, romance e infantojuvenis. O mais recente é o livro de crônicas poéticas LEQUE ABERTO (Guaratinguetá/SP: Penalux). Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado (MS), Jornal de Letras (RJ), Jornal Linguagem Viva (SP), Jornal da ANE (Brasília/DF), Jornal "O TREM" (MG). Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras de São Paulo, à Academia das Ciências de Lisboa, classe de Letras, e ao PEN Clube do Brasil.



Arendt. Boa noite, professora e escritora Raquel Naveira, ilustre Membro da Academia das Ciências de Lisboa, poeta brasileira renomada, mestra e confrade. É uma honra entrevistá-la. Podemos começar do começo? Como, quando e por que começou a escrever poesia?


Raquel Naveira. A minha vocação veio de infância. Antes mesmo de ler ou escrever, eu já sentia que a palavra era o meu ser e estar no mundo. Gostava de ouvir histórias, de cantar as cantigas de roda (emocionava-me com elas) e intuía que os livros possuíam vozes.


Li As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, que abriu as portas de minha imaginação para sempre.

Os contos dos irmãos Grimm, as histórias das Mil e Uma Noites, as lendas de Malba Tahan e os relatos da Mitologia Greco-Romana povoaram meu imaginário.


Tive um encontro com a poesia na juventude: Castro Alves e os poetas românticos, depois Drummond, Bandeira e Augusto Frederico Schimidt.


O processo sempre foi esse: ler e escrever. Escreviver.


As leituras e a sede de me expressar resultaram numa carreira de Magistério, na área de Letras. A poetisa alimentou a professora e a professora alicerçou com sua formação o trabalho literário da poetisa.






Arendt. Como foi a recepção de seus primeiros livros? A consagração veio logo no começo, ou tardou a ser reconhecida pelos demais escritores? Como publicou seu primeiro livro e qual foi a editora que melhor lhe apoiou?


Raquel Naveira. Obedeci à máxima de Horácio em sua Arte Poética: guardei meus poemas por mais de dez anos, antes de publicá-los num livro. No entanto, desde os meus vinte anos, já os publicava no jornal de maior circulação da minha terra na época: o Correio do Estado. Quando veio à lume o Via-Sacra, em 1982, meu primeiro livro de poemas, eu já tinha um público leitor.


Residindo em Campo Grande, no sul de Mato Grosso, longe do eixo Rio-São Paulo, publiquei por uma gráfica da cidade, independente.


Nesse momento, comecei a enviar o livro para escritores, professores e jornalistas (o carteiro é amigo do poeta) e alcancei uma boa fortuna crítica.


O livro seguinte, Fonte Luminosa, foi publicado por Massao Ohno, de São Paulo, um editor de arte que lançou Hilda Hilst, Renata Palottini e toda uma geração de poetas.


O terceiro, Abadia, pela editora Imago do Rio de Janeiro foi indicado ao Prêmio Jabuti, em1996.


Cada livro tem uma história diferente, uma editora, uma porta que se abre, uma trajetória, um destino misterioso.


Tenho feito excelentes parcerias com casas editoriais importantes do país, como Escrituras, Penalux, Íbis Libris, Miró, Estação Liberdade e também com a regional Life, entre outras.


Arendt. Onde busca inspiração para os seus livros, e como consegue se manter cheia de vida? Vê-se exuberante e cheia de paixão pela literatura e poesia. Alguma vez desanimou de escrever ou se desiludiu? Como lidou com isso?


Raquel Naveira. Li ainda jovem o Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke onde ele dizia: “Não há senão um camino. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?” Respondi: “Sim, morreria. É a arte da palavra que me mantém ardente, acesa, atenta, esperançosa, apaixonada.” E aí construí minha vida de acordo com essa necessidade. Testemunho o tempo todo essa pressão interior. Essa marca de minha personalidade. Essa minha natureza profunda. E a poesia tem sido a grande companheira, a prece mais sincera, a conexão com o milagre da existência, o esforço, o consolo.o conforto, a eterna busca. É ela que me dá bom ânimo.


Arendt. Seus poemas são fortes. Cada poema um sendeiro em que se notam alguns percalços na sua caminhada humana. Alguma vez refugiou-se na poesia por alguma tristeza vivida, de si, de mulheres com as quais conviveu? Como é a situação das mulheres no Mato Grosso do Sul?


Raquel Naveira. No mundo temos aflições sempre. A caminhada de uma alma peregrina é árdua. Vivo de peito aberto e me ponho na pele dos que sofrem.


As mulheres em Mato Grosso do Sul são guerreiras e estão abrindo seus caminhos.


Embora constate muita violência nas relações interpessoais e familiares, creio no poder do amor, em relações em que haja mútua proteção e diálogo.


O amor é uma ocasião sublime para uma pessoa amadurecer, crescer ao lado de outra.


Casei-me com meu primeiro amor e lá se vão mais de quatro décadas.


Amar é bom e difícil. Uma longa aprendizagem.





“Sou fiandeira

Tecendo noite e dia

Uma esteira de pensamentos.

Sou fiandeira,

Aranha tirando de dentro

A liga que emaranha

Sou fiandeira

Bordando com palha e ouro

A bandeira de minha fé.

Sou fiandeira,

Vivo à beira

De tudo aquilo que é frágil,

Que parece fiapo

Ou que está por um fio.”


NAVEIRA, Raquel. Fiandeira. São Paulo: Estação Liberdade, 1992.



“VIOLETA

Estou em perigo:

Uma angústia,

Um desejo de morrer,

Minhas pétalas murcham

Num roxo mortiço,

Perco o viço,

De amor tão intenso

Desfaleço.

Estou em perigo:

Uma felicidade,

Um deleite,

Minhas raízes sugam húmus,

Encharcam-se,

Amoleço.


Estou em perigo,

Nada no mundo me vale nesse transe;

Num jardim cheio de sombras

Permaneço.


Quando

Ele me toma

Entre seus dedos de sol

E me sopra ânimo e coragem,

Fortaleço.

Sem encontrar apoio na terra,

Sem poder subir ao céu,

Vivo frágil,

Presa num caule suspenso.”



“LEMBRANÇA DO RIO

Da janela da cozinha

Eu via

O rio

Ou era o rio que me espiava,

Espichando o dorso de lama,

Cobra de couro liso.


Enquanto lavava louça,

O rio,

Escorregadio,

Levava nas águas sem espuma,

Os meus desejos,

Sentimentos

E desvios.


De vez em quando,

Desprendia-se da árvore

Um bugio,

O rio tremia,

A pele eriçada

Num calafrio.

Eu via

E pensava:

Sou moça,

Não vou morrer

Se me atiro nesse rio;

Não há dor,

Queimadura,

Lamento que ele não cure,

O seu balbucio

É paz e esquecimento.


Ó substância úmida!

Ó existência precária!

Meu corpo escoa

Como água

Como se fosse


Meu próprio rio.”



NAVEIRA, Raquel. Portão de Ferro. São Paulo: Escrituras, 2006



Arendt. Como vê as mulheres brasileiras hoje? Para onde devem rumar, quais devem ser nossas prioridades? A sororidade no Brasil prosperou em alguma medida? E quanto às associações de mulheres, antigamente e hoje? Qual o papel que a poesia e a literatura podem desempenhar na luta das mulheres por um tratamento mais respeitoso e equitativo na esfera pública?


Raquel Naveira. A prioridade para todos é a educação, o cultivo da sensibilidade, a compaixão pelo próximo, um olhar para a cultura e para a arte.


Interessante a palavra “sororidade”. Vem de “sóror”, a freira, a monja, a irmã. Assim como “fraternidade” vem de frei, de irmão, de frater. Uma etimologia medieval usada pela corrente feminista de hoje.


Significa que a mulher deve ser amiga de outras mulheres e formarem uma rede de apoio.


Maravilhoso sempre contarmos com nossas mães, irmãs e amigas na tarefa de nos ajudarem com nossos problemas e desafios.


Associações que acolham as mulheres, cuidem de saúde e nutrição, protejam as mães que trabalham são fundamentais.

A poesia é sempre uma atitude, um gesto de coragem, tem substrato social.


Gosto de dar voz às mulheres através do que escrevo.


Espero levar sempre sororidade e fraternidade através da palavra.



Arendt. Meus livros favoritos que Vossa Excelência escreveu são os romanceiros, o “Guerra entre irmãos”, poemas inspirados na Guerra do Paraguai e “Caraguatá”, poemas inspirados na Guerra do Contestado. Transcrevo trechos poderosos que nos fazem mergulhar na história.




"Maria Rosa (Alegoria-Contestado)". Óleo sobre tela de Zumblick, 1982.

Capa do livro Caraguatá, de Raquel Naveira.


I
Serra do Mar


A Serra do Mar

Estende-se pela costa paranaense

E por Santa Catarina

Como um corpo de dragão

Escamado de vales

E esporões,

Espumando massas de calhaus.


Quantas pontas,

Enseadas,

Lagunas,

Restingas

Pelo cinturão negro do mitológico animal,

Imerso no nevoeiro!


Na Serra do Mar

Contribuiu com a guerra

A brutalidade dos elementos:

O vento,

As águas,

O ar.


II
Terras Altas


Quem quer galgar a Serra do Mar?

Melhor ficar perto do oceano,

Na praia azulada.


Lá nos sertões há caigangues,

Índios rudes e agressivos;

Erveiros entre tufos de talos roxos

Secando ao calor de fogueiras;

Caboclos destruindo imbuias

E pinheirais;

Vaqueiros e fazendeiros

Isolados em invernadas,

Ranchos

E currais;

A maioria broncos,

Analfabetos,

Habituados no trato com os irracionais.

Aquelas terras altas,

Longínquas e ignotas,

Eram de ninguém,

Um mistério,

Um desafio.


(…)


V
João Maria


Era um santo da terra,

Meu padrinho João Maria,

Um monge,

Um eremita

Vindo da Galiléia

Para este sertão

Que ele chamava de “Casa Verde”,

Verde como o chimarrão da cuia

E as águas do rio Uruguai.

Às vezes parecia jovem,

Cheio de energia,

Outras vezes, velho,

Curvado ao peso da sabedoria;

Usava gorro de jaguatirica,

Sandálias de couro,

Roupa de riscadão,

Era tão digno e bom

Meu padrinho João.

Andarilho,

Aparecia

E desaparecia,

Carregava um oratório,

Uma panelinha de alça

Onde nunca faltava alimento,

Uma bandeira branca

Como uma pomba vermelha;

Tinha perdido três dedos da mão

Meu padrinho João.


(…)


XVI
Conceição


Conceição

Era menina

Quando foi violentada pelo padrinho Petrônio,

Na fazenda Chuva de Pedra,

Bem no meio do galpão.

Daquele dia em diante

Passou de mão em mão,

Habituou-se ao pecado,

Às manhas da sedução.

Era tão bonita…

O vestido de chita caía sobre seu corpo,

Roliço e moreno

De rameira,

Adeodato enfeitiçado

Casou-se com Conceição,

Um cinamomo foi o altar,

Ardia um céu azul

Sobre as brasas da paixão.

Conceição não sabia ser fiel,

Que fidelidade se aprende,

É decisão,

Procurava os homens de briga,

Amava a todos e a nenhum,

Porque no fim sentia asco,

A mais funda solidão.

Até que Adeodato,

Querendo casar com Mariazinha,

Dá-lhe um tiro no coração.


XIX
Rosa Maria dos Anjos


Maria Rosa,

Decadente,

Perdeu o “aço”,

Agora é Rosa Maria

Quem ouve as vozes do espaço.


Rosa Maria

Conversa com sete anjos

Brancos

E brilhantes

Como velas de um candelabro.


Quando Potiguara

Entrou em cena

Rosa Maria avisou:

– Quem quer salvar a pele

Fuja de Santa Maria,

Que o homem tem nome de índio

E instinto de fera.


Todo mundo acreditou,

Arrumaram as tralhas

E saíram feito carreiro de formigas

Rumo a São Miguel.

Aqueles sete anjos

Brancos

E brilhantes

Como velas de candelabro

Sopraram mesmo a verdade.

Potiguara reduzia tudo a pó,

Por onde passava

Era a ruína.

O descalabro!


NAVEIRA, Raquel. Caraguatá: poemas inspirados na Guerra do Contestado. Campo Grande: Gráfica Ruy Barbosa, 1996.


Arendt. Como podemos ver, seus romanceiros são livros cativantes, visuais, cheios de personagens bem escrutinizados nos versos. Adorei esses livros, são fáceis de ler, leves de assimilar… Há palavras novas que já sempre estavam, ficam retidas na retina. Como fez a pesquisa histórica e geográfica por detrás dos versos? Gostaria muito de conhecer como escolheu os fatos, os lugares e pessoas que seriam incorporados no livro em forma de verso.


Raquel Naveira. Amo romanceiros. Misturar Poesia e História. A História representada não só pelos fatos, mas pelos sentimentos. É um trabalho de imaginação que exige poder de síntese, surpresa e muita pesquisa. A pesquisa é um campo que me agrada. Estudar, ler, comparar versões, fazer descobertas. E depois, a escrita, o unir ideias, tecer os textos, criar monólogos de personagens, sentir seus dramas.

Li há muitos anos o Romanceiro da Inconfidência, da Cecília Meireles. Fantástico. Tiradentes e intelectuais, em plena rebelião. Pensei que gostaria de escrever um romanceiro e aí veio a ideia: a Guerra do Paraguai, o maior conflito americano em terras do sul de Mato Grosso. Eu que ouvira tantos relatos quando era criança na fronteira. Nasceu “Guerra entre Irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai”. E os outros: “Caraguatá: poemas inspirados na Guerra do Contestado”. “Sob os Cedros do Senhor: poemas inspirados na imigração árabe e armênia em Mato Grosso do Sul”, “Stella Maia: poemas inspirados na conquista do México pelos espanhóis” e “Romanceiro de Cabeza de Vaca”.




I - ASSUNÇÃO


Assunção índia,

Melancólica,

Isolada,

Esparramada sob os laranjais.


Assunção quente,

No mormaço

De úmidos vapores,

De essências florais.


Assunção cheia de glória,

Palácios,

Salões,

Jardins,

Troféus,

Arcos triunfais.


Assunção das festas faustosas,

Das bandas de música,

Dos carros puxados por bois,

Das paraguaias sensuais.


Assunção das sementes,

Das plantas exóticas,

Das videiras normandas,

Do bicho da seda,

Dos canaviais.


Assunção das indústrias,

Dos navios,

Das estradas de ferro,

Do telégrafo,

Das escolas, templos e hospitais.


Assunção,

Quanta beleza aliada à inteligência,

Quantos apelos marciais!


Assunção,

Nunca mais…


(…)


VIII - MAPA DA GUERRA


Observe este mapa:

As colunas paraguaias passaram por aqui,

Por Dourados,

Onde havia torrões áureos pelas ruas,

Pelo destacamento militar de Nioaque,

Onde um bugre quebrara a clavícula.


Estas linhas azuis

São os rios por onde navegaram os soldados:

O Apa,

Grudado em Bela Vista,

Como uma folha verde,

Rodeada de lama,

O Taquari,

Cheio de cachoeiras

E corixos.


Esta mancha marrom esverdeada

É o Pantanal

Com suas vazantes,

Por ali passaram os retirantes

Pisando antúrios e cogumelos,

Caçando patos sob espinheiros,

Jogando boi às piranhas,

Fugindo de onça pintada,

Acompanhando tristes

O vôo das garças caladas.


Estes pontos negros

São cidades,

Foram saqueadas,

Destruídas,

Jardim,

Que era tão florida,

Ponta Porã,

Ponta bonita,

Encravada na fronteira.


Este mapa guarda o segredo dos cavaleiros,

A rota das violetas empapadas de sangue,

A sombra das mangueiras violentadas de amarelo.


Este é o mapa da guerra

Em terras de Mato Grosso.


VIII - INFERNO


Há homens que viveram no inferno,

Que se chamuscaram,

Que tiveram as línguas secas,

Os corpos encharcados de suores,

Estremecidos de dores,

Convulsos de vômitos.


Há homens que morreram no inferno,

Nestas matas indevassáveis,

Nestes pântanos,

Nestes charcos,

Entre o verde do mato

E o vermelho dos barrancos,

Foram perseguidos por serpentes,

Estraçalhados pelos jacarés,

Picados por moscas,

Mutucas,

Varejeiras

Em nuvens de martírio.


Há homens que sentiram o inferno

No clamor agudo dos sapos toneleros,

Na algazarra dos bugios negros,

No alarido estridente dos bandos de caturritas.


Há homens que presenciaram o inferno

Nos campos semeados de cadáveres,

Pólvora,

Podridão,

Em que urubus pousavam,

Vampiros ácidos.


Inferno:

Experiência viva

Para homens e almas.


(…)


XVII - TUIUTI


Vai começar a maior batalha campal da América do Sul:

Os aliados tocam clarins,

Tambores,

Cornetas,

Os paraguaios troam os tuturutus,

Sopro horrendo

Em chifres de boi.


Os aliados formaram uma curva sinuosa:

Centro e duas alas,

Os paraguaios tocaram para frente,

Giraram pelo centro

Onde Estava Mallet

Comandando fogo

E fogo-de-horror.


Artilharia,

Granadas,

Bombas,

Silvos sinistros,

Homens e cavalos estraçalhados,

Pedaços de carnes penduradas nas árvores.

Os homens se batem como leões,

Feras no bote,

Hecatombe de escorpiões.


Cinco horas depois

Há toneladas de carniça,

Gemidos,

A lua,

Vaca sagrada,

Derrama seu leite

Sobre os filhos mortos.


No dia seguinte

Preparam-se fossas para os aliados

E pirâmides,

Prateleiras de paraguaios,

Piras funerárias

Da juventude guarani,

Atearam fogo,

O perfume exalado

É o do Paraguai apunhalado.


Agonia,

Agonia,

Festim de corvos.


(…)


XXV - O FIM


É o fim:


A forme tornou as criaturas ferozes,

Libidinosas,

Correm dentro delas o sopro

E a baba do diabo.


É o fim:


Espectros selvagens vagam pelas estradas,

Cegos como morcegos

Em noites desesperadas.


É o fim:

Solano afunda-se pelas florestas,

Alagados,

Tremedais,

Esteiros,

Riachos de águas violentas,

Deixando pelo caminho carruagens,

Charutos,

Conhaques.


É o fim:

López perseguido

Como escravo

Pelos capitães-do-mato.


XXVI - ASSUNÇÃO VERDE


Chegam a Assunção os estrangeiros,

Os legionários,

Os abutres,

Encontram-na verde,

Toda verde,

Capim alto,

Musgo,

Bolor,

Umidade,

Mato,

Galhos,

Cipós,

Trepadeiras,

Poças d’água.


Assunção verde,

de um verde imenso

De furnas verdes,

De portas batendo contra o verde dos alpendres,

O azinhavre verde

Cobrindo o bronze,

O ferro,

Os latões.


Verde silêncio

De selva retorcida.


(…)


XXIX - AOS HOMENS MORTOS DO PARAGUAI


Os homens do Paraguai estão mortos,

Restaram meninos e velhos,

Onde a virilidade?

A força?

Barbas?

Músculos?

Proteção?

Carinho?

Tudo tornou-se pó,

Silêncio,

Fuligem,

No ar paira o cheiro

De carne humana assada,

Cozida ao sol

Como chouriço.


Os homens do Paraguai estão mortos,

As casas vazias e tristes

(Como são tristes e vazias as casas sem pai,

Sem marido!)

Oficinas abandonadas,

Nos campos, arados inertes,

Foices,

Machados,

A erva daninha

Cobre os celeiros

E os telhados.


Os homens do Paraguai estão mortos,

Não há mais falos

Eretos e cheios de pólen

como milhos,

As mulheres caminham trêmulas,

Ávidas de sementes,

Gineceus ao vento.


Como povoar esta terra,

Reconstruir a Pátria,

Enorme útero úmido?


Homens,

Homens,

Clamam as entranhas.



XXX - CREDO AMERICANO


Creio na América Latina,

No seu potencial

De terras, rios e cordilheiras,

No seu povo,

Na mescla de suas raças,

Na miscigenação

Concebida

Pelo poder do Amor,

Pela força da Vida;

América que padece sofrimentos,

Agonias,

Torturas,

Mas ressuscita na esperança

E sobe aos céus

Nas asas da Verdade,

À luz da qual serão julgados os desvarios e as paixões.


Creio nos valores eternos,

Nas certezas do coração,

Na vitória do espírito,

Na renovação dos ideais,

No respeito ao ser humano,

À sua dignidade íntima e preciosa.

Amém.


NAVEIRA, Raquel. Guerra entre irmãos: poemas inspirados na Guerra do Paraguai. Campo Grande: Gráfica Ruy Barbosa,1993.


Arendt. Apesar da poesia ser algo essencial para nos motivar, para o agir político, para a moldura dos anos, para dizer quem somos, para selecionar o que é importante do que não é, hoje em dia, e apesar de conceder muita atenção aos temas políticos e de identidades subjetivas e coletivas, as editoras de maiores vendas não parecem atribuir muita importância ao trabalho dos poetas vivos. Como enxerga esse aspecto na literatura e poesia contemporâneas?






Raquel Naveira. Poesia é sempre ato de coragem e age sobre o povo. Ela nos ensina a ver como se víssemos pela primeira vez. É procura na árvore do saber, do conhecimento.


Hoje, livros, editoras, gráficas, mídias digitais, tudo gravita na galáxia de Gutenberg. É democrático criar blogs, postar poemas e textos, exercitar o ofício no universo da internet. São muitas vozes, gritos, fragmentos e pulsões. Difícil um nome se firmar nesse oceano de telas líquidas, mas é fascinante.


O papel das editoras independentes, de pequeno porte, acolhendo novos autores, publicando livros, servindo, ao mesmo tempo, de livraria virtual, ponto de venda e distribuição de trabalhos, deu fôlego à literatura. O fato desses livros estarem conseguindo prêmios é uma resposta excelente, um caminho novo.


As compras pelos sites também modificaram o cenário livro/leitor.


Enfim, o sonho de escrever, o movimento tradição/bagagem de conhecimento e inovação/ousadia de experimentos permanece em infinitos ciclos.


Arendt. Li seus maravilhosos textos em crônica, são saborosos de se ler, cheios de substância e material, em especial aquele sobre os Modernistas. Como vê o movimento da Semana de 22? Seu alcance, sua definição, seu futuro…?

Raquel Naveira. Você se refere à crónica Manacá, em que descrevo um encontro de modernistas: Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e outros, na casa do poeta Guilherme de Almeida.

Essa atmosfera do Modernismo de buscar brasilidade e, ao mesmo tempo, de fazer uma ponte com as vanguardas europeias, é impactante.,


Nossa liberdade de expressão vem desse primeiro embate com novas e estonteantes realidades artísticas.

O futuro pós-modernista foi colocado por Drummond na frase: “Cansei de ser moderno. Agora quero ser eterno.”


Arendt. E o minimalismo na poesia?


Raquel Naveira. A poesia é sempre minimalista: o máximo de significado no mínimo de palavras. A concisão é uma chave importante para o verso. O derramamento é prejudicial à beleza poética.


Arendt. Tem atividade política? O que há de bom na política de nosso tempo? Acha que literatura e politica se misturam, ou a literatura engajada é necessariamente de pior qualidade?


Raquel Naveira: A mera criação de uma obra poética é um ato político, uma atitude, um gesto.


Não foi à toa que Platão expulsou o poeta de sua República utópica. O poeta representa perigo para a toda estabilidade ou segurança baseadas num assentimento sem direito à escolha e à crítica.


O principal interesse hoje diz respeito não mais às liberdades, mas às necessidades humanas (fome, saúde, educação, moradia, posse de terras, emprego etc.).


A poesia não pode ser panfletária, datada, estar a serviço de ideologias.


Mas pode ter compromisso com a própria poesia e com a vida, que é uma imposição.

Não gosto de polarizações políticas, nem de regimes totalitários. Meus temas são os universais, que acompanham o o ser humano de ontem, de hoje e de sempre.


Arendt. A literatura e a poesia brasileira têm características que as diferem da poesia de outros países do mundo? Qual a diferença entre um poeta brasileiro e um poeta francês, entre um(a) poeta brasileiro(a) e Walt Whitman?




Raquel Naveira. Os poetas são seres contingentes, que nascem em determinados tempo, lugar e meio social. Isso certamente molda o caráter, a personalidade e explica as temáticas, os interesses, as fantasias, os conflitos retratados nas obras.


Cada idioma é um cosmos, uma visão estética característica.


É célebre a frase de Tolstói: “Se queres ser universal , começa por pintar a tua aldeia.”


A universalidade começa no nosso quintal, à nossa volta.


Sentimos a França em Baudelaire, a Rússia em Dostoiévski, a Espanha em Lorca, o Chile em Neruda, Minas em Drummond, Goiás em Cora Coralina, o nordeste em João Cabral de Melo Neto, só para citar alguns exemplos.

Walt Whitman (1819-1887) foi poeta americano, considerado o “pai do verso livre”. Folhas de Relva é um marco da poesia universal. Poeta visionário, panteísta, de técnicas inovadoras. Influenciou todo o lirismo moderno e poetas de todas as línguas e nações.


Arendt. O seu livro mais recente, Leque Aberto, pelo qual muito agradeço, além de biográfico e intimista, é um verdadeiro esforço civilizatório, traz a quem o manuseia não apenas uma prazeirosa leitura, mas a quem lê o ilustra. Transcrevo alguns trechos particularmente maravilhosos desse livro.


“Na fazenda, eram comuns os incêndios, as queimadas. Preparava-se o trecho a ser limpo pelo fogo, delimitando-o com toras grossas de madeira e jogava-se um pedaço de brasa no meio. A terra selvagem de cerrado, recoberta de espinhos, de troncos retorcidos como chifres, de ramagens crespas, ia sendo devorada pelas labaredas que tudo convertiam em cinzas e limalhas. Era um espetáculo grandioso, digno de um louco imperador Nero tocando lira, tentando compor um poema épico sobre as ruínas e gemidos de Roma. Mais tarde, depois do agressivo tratamento, um manto verdejante adornava o campo. Em outros pontos, plantavam-se milho, feijão e arroz e a vida continuava, guardando-se águas e rebanhos de nuvens e vacas. Que incêndio foi aquele que destruiu a cidade de Troia, narrado no poema “Eneida”, de Virgílio, o maior poeta da antiguidade clássica? Gregos e troianos entraram em guerra por causa do rapto da bela e trágica Helena, esposa do rei grego Menelau. O príncipe troiano Páris foi à Esparta em missão diplomática e apaixonou-se por ela, levando-a cativa para Troia. Os gregos, usando o estratagema do cavalo de madeira, com a barriga de carvalho recheada de soldados, penetraram na cidadela fortificada. À noite, saíram do esconderijo e tocaram fogo. Troia inteira desapareceu nas chamas, desmoronou de alto a baixo. As crepitações foram rápidas e intermitentes. As pessoas e as formigas saíram de suas casas e tocas, fervilhando, iluminadas sob as faíscas escaldantes. (…) Todas essas cenas, como um filme, passaram pela minha cabeça, enquanto assistia pela televisão ao incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. O belo palácio criado por Dom João VI em 1818, local onde moraram a imperatriz Leopoldina e D. Pedro I, onde foi assinada a declaração da Independência do Brasil, palco da primeira Assembleia Constituinte da República. Transformado em Museu de História Natural guardava fósseis, múmias, livros raros, meteoritos, mobílias, acervo engolido pelo fogo destruidor, pela cólera que dissolve invólucros e sobe aos céus. Teria sido castigo? Desleixo? Fruto de intelectos revoltados? Resultado da fragilidade dos homens, do pasto voraz dos cupins, das paredes de fios descascados, do descaso com a memória e os elos da fraternidade?”


“Incêndios e queimadas”, In: NAVEIRA, Raquel. Leque aberto. Guaratinguetá: Penalux, 2020, p. 87-89.


“Amigos mostram-me fotos de sua recente viagem a Jerusalém, a capital de Israel, a cidade santa e sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos: as montanhas, o Mar Morto, a Igreja do Santo Sepulcro, a Tumba do Jardim, a Cúpula da Rocha, o Portão do Algodão, o Muro das Lamentações. Tudo tão belo, antigo, caiado, luzindo a ouro e lampiões. Há muito tempo, li um dos épicos clássicos mais lindos da literatura universal: Jerusalém libertada, do italiano Torquato Tasso, publicado em 1581 (…). Jerusalém, cidade destruída várias vezes, sitiada, minada, atacada, capturada, recapturada. É uma cidade dual, multifacetada, de onde, segundo os muçulmanos, Maomé fez sua viagem noturna de ascensão aos céus, contada no Alcorão. A Palestina reivindica partilha. Fogo cruzado. Ataques terroristas na Faixa de Gaza deixam centenas de mortos. Nesse conflito israelo-palestino há laços fortes de parentesco. Necessidade urgente de um Tratado de Paz. Os Estados Unidos, em 2017, reconheceram Jerusalém como capital de Israel e anunciaram a transferência da embaixada para lá. O governo brasileiro, desejando aproximação com parcerias em tecnologia e segurança, numa guinada arriscada para o comércio brasileiro com os países árabes, visitou Israel. Com cuidado, o Brasil deve, ao mesmo tempo, dar as mãos a Israel e preservar sua neutralidade. Um jogo que exigirá tato e sabedoria dos nossos diplomatas. Jerusalém guarda um mistério apocalíptico. A Nova Jerusalém Celeste é revelação, profecia, anúncio do fim desde o começo. Será um lugar de alívio para os cansados e oprimidos por dores, injustiças e sofrimentos. Um lugar de alegria eterna. Um anjo medirá o quadrado da cidade, que será clara como vidro. Os portões serão de pérolas e as muralhas de jaspe e outras pedras preciosas. O único templo será o próprio Deus. A cidade não precisará de sol, nem de lua, nem de candelabros. As nações trarão seus tesouros. O rio da água da vida correrá na rua principal. “Tudo será bendito na Nova Jerusalém” – é o que penso, enquanto sorrio para os amigos, que me trouxeram fotos de Jerusalém”.


“Jerusalém”. In: NAVEIRA, Raquel. Leque aberto. Guaratinguetá: Penalux, 2020, p. 117-121.


“É do pintor espanhol barroco, Diego Velásquez (1599-1660), o célebre quadro “Vênus ao Espelho”. Que ousadia representar a deusa do Amor nua, reclinada sobre musgo de veludo, mirando a face no espelho, seguro por Cupido ou Eros, pequeno menino alado. Vênus adorna os cabelos com violetas, morde maçã com canela, acaricia os seios brilhantes como luas. Toda ela é úmida: anêmona de primavera, espuma marinha, pele nacarada. Tão atraente, fora de qualquer limite, força dissoluta. Quem não seria seduzido por ela? Quem quebraria esse encanto? Um mortal? Uma divindade? Um poeta? Deleito-me com essa visão (…). Vampiros não se veem no espelho. Ausência total de imagem. Congelados no tempo. Desprovidos de alma, sangue e vida, deambulam pelo mundo através dos séculos. Fernando Pessoa (1888-1935), o poeta português, comparou-se a um quarto com inúmeros espelhos fantásticos, que torcem tudo, em reverberações falsas. Uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Já José Saramago (1922-2010), também português, detentor do Prêmio Nobel de Literatura, no romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, imaginou um encontro sobrenatural entre Ricardo Reis, o heterônimo latinista de Fernando Pessoa, com o fantasma do próprio Fernando Pessoa. Criatura e criador frente a frente. E aí a mágica vampiresca acontece: Fernando Pessoa levanta-se do sofá, passeia pela saleta, para diante do espelho. Sabe que está olhando no espelho, mas não se enxerga. Percebe que se tornou uma densa sombra (…)”.


“Vênus ao espelho”. In: NAVEIRA, Raquel. Leque aberto. Guaratinguetá: Penalux, 2020, p. 167-169.


Imagem: Vênus em seu espelho, obra de Diego Velázquez, 1651.


“Há muita diferença entre viver e sobreviver. Viver manifesta a grandeza, a totalidade de nosso ser. Sorvemos bons e maus momentos com força e fé. Encaramos o trabalho como oportunidade de autorrealização, algo semelhante à arte, que nos traz respeito e autoestima. Sobreviver é apenas manter-se vivo biologicamente, mantido na matéria, alimentando-nos e sustentando-nos sob o peso de um jugo, um castigo, que em nada satisfaz a nossa alma. Somos sobreviventes quando continuamos vivos, depois de uma situação desastrosa.”


“Os sobreviventes”. In: NAVEIRA, Raquel. Leque aberto. Guaratinguetá: Penalux, 2020, p. 213.


“Fernão Dias Pais Leme (1608-1681) foi um bandeirante paulista que ficou conhecido como “O Caçador de Esmeraldas”. Pertenceu a uma das famílias mais antigas e influentes do planalto. À época, São Paulo era um pequeno vilarejo de choupanas e casas de taipa, no vale do Anhangabaú. (…) Essa história épica, com suas virtudes e horrores, foi contada num poema narrativo intitulado “O Caçador de Esmeraldas”, do poeta parnasiano Olavo Bilac (1865-1918). Recordo-me do dia em que, ainda adolescente, li esses versos em que o verde se destacava como pedra e cor: “Verdes, os astros no alto abrem-se em verdes chamas; verdes, na verde mata, embalançam-se as ramas; e flores verdes no ar brandamente se movem, chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio. Em esmeraldas flui a água verde do rio e, do céu, todo verde, as esmeraldas chovem”. (…) Por que será que tudo isso me veio à lembrança nesses dias de névoa? Vai tão longe esse tempo de Fernão Dias… Talvez porque necessite de determinação heroica e insana para resistir, de uma dose mais forte de esperança nas veias. Talvez porque fulminem sempre sobre mim os olhos verdes como esmeraldas de minha mãe”.


“Epílogo”. In: NAVEIRA, Raquel. Leque aberto. Guaratinguetá: Penalux, 2020, p. 224-26.


Arendt. Como está a formação de leitores no Brasil, nas escolas e junto ao público em geral? O que os novos poetas e escritores podem buscar, saber e aprender, no momento de apresentar seus livros ao público leitor? Gostei muito de seus romanceiros, porque conta a história como ocorreu, com pessoas de carne e osso, nos lugares nos quais as pessoas andaram, ao invés de tentar convencer o leitor com uma teoria revelatória e definitiva sobre o assunto. Conseguimos ver o que aconteceu como se estivéssemos lá. A poesia feita de gente, de lugar, de fatos, pode contribuir também para melhorar a Educação no Brasil?


Raquel Naveira. Agradeço o “esforço civilizatório”. Minha formação é humanista.

A Poesia deveria ser parceira da educação, pois ensina de modo indestrutível.

É um tipo de conhecimento intuitivo, existencial, emotivo.

Amplia a linguagem, revelando pelas metáforas analogías inesperadas entre os seres.

A visão poética abre caminhos para descobertas científicas. O poeta é um pouco profeta.


Além disso, todo poema é um desejo de colocar ordem no caos, organizar ideias, estruturar o poeta e ser estruturado por ele.





Arendt. Você tem uma ligação íntima e particular com Portugal, pelas suas origens. Há uma história de sua família? Quais escritores portugueses lhe tocaram mais fundo, e quais seus poetas favoritos?


Raquel Naveira. Sou neta de portugueses que vieram de Figueira da Foz, no começo do século XX e fincaram raízes no sul de Mato Grosso.


Minha alma ancestral lusitana, unida à minha trajetória de professora de Literatura Portuguesa me levaram a um processo de criação literária em que escrevi sobre essa temática: personagens, poetas, fatos históricos, o diálogo com os países lusófonos. Reuni esses textos num livro intitulado “Poemas Portugueses”.


Camões, Fernando Pessoa, Antero de Quental são meus poetas preferidos.


Eça de Queiroz e Saramago na prosa.

A dicção portuguesa é densa, rica, vigorosa.


Pertencer à Academia de Ciências de Lisboa e participar de suas conferências e seminários é uma honra e uma alegria para mim.




Arendt. E quais seus próximos projetos, seus próximos livros?


Raquel Naveira. “Manacá” é o próximo livro de crônicas poéticas reunidas e “Mundo Guarani” será uma coletânea de vários textos meus sobre o idioma e a alma guaranis.


Arendt. Agradeço imensamente pelo privilégio de conhecer um pouco da sua vasta obra, minha querida Confrade de Letras. Que a nossa convivência fraterna continue resultando em acolhimento e energia para novos sonhos, novas obras. Deixo de presente um poema.


Na aresta do tuiuiú

Ana Paula Arendt

(um poema para Raquel Naveira)


O udu-de-coroa-azul,

A ariramba-de-cauda-ruiva,

O araçari-castanho,

O gavião-real, a corta-água

E as aves de banhado

E as aves rapineiras

Necessitam de um sobrenome

para poder cantar.


Mas o tuiuiú

voou no meu sonho livre

e andou de pernas muito longas.

Pisou com elegância no pântano

e abraçou as águas escuras

onde se escondem os lambaris.

Maior ave do Pantanal voa, voa!

Pois seu corpo não pesa

na envergadura de albatroz.


Nem toda ave espessa voa,

E a águia realista

espreita sobre a rocha alta

nos picos distantes o fim do dia:

em que o ventre da terra é longe,

em que a água é do céu um espelho.

Mas o tuiuiú voa largo,

rente à água doce,

beija o lago verde.

É a mais elegante de todas,

em plumas de branco apurado,

com laço no pescoço rubro,

olho escuro sobre a testa negra.



O que nos mostra essa aresta de ave

triscando as pontas de suas asas na água?

Pisando a terra e os longos charcos,

Escorrendo da árvore ela vê o mundo

desde um chão culcado delicadamente.

O tucano e a garça querem ser seus pais

para ter galgado esses passos grandes…





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