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Teseu contra o minotauro nos labirintos políticos

  • Foto do escritor: Ana Paula Arendt
    Ana Paula Arendt
  • há 1 dia
  • 11 min de leitura


Teseu contra o minotauro nos labirintos políticos

Ana Paula Arendt*


“O homem que não lê não apresenta nenhuma vantagem

sobre o homem que não sabe ler”. Mark Twain.



Busto do Minotauro, Museu Arqueológico Nacional de Atenas
Busto do Minotauro, Museu Arqueológico Nacional de Atenas





Provavelmente a maior parte de meus leitores conhece o mito do labirinto do minotauro, uma das mais ricas lendas da Antiguidade. Para quem não leu, ainda, não se deve confundir a lenda grega que fez herói Teseu com a lenda grega que fez herói Perseu. Este, protagonista dos Argonautas, é o marido de Medeia, uma mulher ciumenta, vingativa e complicada. Já Teseu é o amor de Ariadne, uma moça mais idealista e romântica, filha do Rei. Assim se distinguem os heróis da Antiguidade: mais pelas mulheres que eles amam, do que pelo nome ou virtudes específicas.


Bom, à história: há várias versões. Uma delas: existia um labirinto em Cnossos, na ilha grega de Creta. O labirinto foi construído pelo rei para abrigar Astério, um ser com cabeça de touro e corpo de homem. Astério era filho de uma deusa grega oceânida com um touro branco. Como isso foi ocorrer? Bom, o rei Minos teria feito uma promessa a Afrodite, ou aos deuses, de sacrificar um touro branco, se fosse confirmado no trono daquela ilha, pois se encontrava em conflito com os irmãos na sucessão. Conseguiu ser confirmado no cargo. No entanto, tomado de admiração por um touro tão bonito, tão branquinho, não teve coragem de cumprir a promessa. Em punição, Afrodite manda a deusa oceânida, filha de Poseidon, se esconder num touro de madeira e copular com o tal touro branco: e daí nasce o minotauro. Ao final, o rei Minos toma o Minotauro como seu filho, por desígnio de Afrodite. O seu filho, contudo, era um ser mostruoso que trazia problemas: ele devorava as moças e rapazes virgens e os matava, era insaciável. Por isso, o rei Minos manda construir o labirinto, para escondê-lo, a fim de evitar as moças e rapazes não morressem inadvertidamente nas mãos do monstro. Com um labirinto, seria mais difícil encontrá-lo, e também seria difícil que o minotauro saísse do labirinto, preservando assim Cnossos. Para se manter no cargo, um rei precisa agir para preservar os seus súditos, a cidade.


É lógico que toda lenda grega tem uma enorme riqueza de significados que vão além das imagens narradas. Na verdade, podemos estar falando de um homem poderoso que, envaidecido e apegado demais a si mesmo, aos seus instintos animais e seu desempenho sexual, passou a idolatrar seus desejos sexuais irrefreados. O touro era uma oferta aos deuses, era colocado no altar antes de ser sacrificado, e o animal representa o impulso sexual, fora do domínio da razão que distingue o homem. E, simultaneamente, o impulso sexual seria fruto da sua castidade, já que o touro é branco, puro. Resulta disso tudo um ser estranho, que pensa como animal, mas tem corpo de homem.  Então, digamos, as moças se atraem pelo rei, pelo homem político e poderoso, que engendra na sua castidade um impulso sexual irrefreável; para assim se voltar para a conjunção carnal com elas. Tem cabeça de animal, entrega-se ao desejo. Mas quando as moças se entregam nas mãos do homem poderoso, são devoradas e mortas – depois depois de satisfazer seus instintos, ele já não se interessa mais por elas, e passa à próxima vítima, precisa de mais jovens.


O rei Minos passa a exigir que todo ano sejam enviados jovens humanos, moças e rapazes, para saciar o apetite do minotauro, no seu labirinto. Ora… É, digamos, a representação psicanalítica da pulsão de poder, do homem de comportamento sexual predatório, do homem que para se manter no poder se alimenta da ingenuidade dos jovens, e que busca diversos subterfúgios – o labirinto – para ocultar da sociedade e de si mesmo a sua crueldade e o seu predadorismo. Quanto aos sacrifícios anuais que então ele decreta… Se não criasse decretos para satisfazer institucionalmente seus instintos animais, perderia o trono. A encenação do poder com vítimas em sacrifícios humanos, para manter o trono, é necessária a um rei desumano e sem uso da razão, guiado pelos instintos.  Do contrário, as pessoas não teriam medo e viriam a destitui-lo pelas suas idiossincrasias, preferindo um governante que valorizasse atributos humanos, a racionalidade e a ponderação.


Mas Teseu, o nosso herói, quer vencer o minotauro. No terceiro ano de sacrifícios de jovens inocentes, ele não suporta mais ver aquilo. Ele tem seus motivos próprios, não apenas a fama: o herói é o ser humano que guarda no seu interior as virtudes humanas, que se revolta com os sacrifícios de pessoas inocentes, com a irrazoabilidade: é um ser humano completo. E resolve se revestir dessas virtudes, assumindo protagonismo para dar fim ao mal em questão, por isso é herói grego. Chegando à ilha de Creta, determinado a acabar com aquela maldade, ele se apaixona pela filha do rei Minos, Ariadne, uma moça linda, pura. Num labirinto ao qual apenas o Minotauro está habituado, devora suas vítimas com facilidade porque elas são amedrontadas pelo desconhecido, perdem-se no labirinto. Teseu seria apenas mais uma vítima do monstro, morto calculadamente e rapidamente pelo bicho, se deixasse se amendrontar, ao se perder no labirinto. Mas: Ariadne também se apaixona pelo herói. Os seus motivos humanos fazem dele um par irresistível. Ela então tem a ideia de lhe dar um novelo de lã – em algumas versões, é um fio de ouro – para conseguir se guiar e saber qual é o seu percurso no labirinto. Assim, sem se perder, ele não teria medo; e preservaria a coragem e tirocínio necessários para lutar contra o minotauro.


De novo, a história ganha muitas leituras possíveis, graças aos seus contornos psicanalíticos.


A mais comum talvez seja da luta contra os instintos animais tendo em vista a felicidade maior de honrar um compromisso. Assim, Teseu não cede aos seus próprios instintos, guardando o fio de ouro do compromisso, o casamento com Ariadne. Digamos, a aliança de ouro na mão de Teseu o faz vislumbrar a felicidade maior de ter Ariadne, alguém que o ama, como sua preferência, e assim golpeia o instinto.


Mas trago a lenda em outros contextos, à nossa realidade presente: muitos homens se revoltam com o comportamento masculino predatório, não raro machista, com que os homens de maior poder põem em prática contra as mulheres: alimentam-se delas fazendo-as vítimas, buscam se engrandecer com o poder sobre alguém mais frágil. Sobrepõem com facilidade suas vozes mais fortes a vozes mais finas, buscam ganhar maior estatura ao fazer com que venham a calar-se…Ou então arquitetam tramas para conquistá-las e obter delas o prazer do triunfo político, para depois exibi-las aos pares como um troféu político.


Querem lucrar em cima delas.  O problema reconhecido pela lenda grega é o problema dos que se perdem no labirinto ao combater o minotauro: um homem, revoltando-se ao constatar realidade tão vil, ao tomar para si o dever de combater a crueldade do mais forte sobre o mais fraco, acaba sucumbindo a essa realidade. Perdido num labirinto, num percurso confuso e difícil de localizar a si mesmo, já não enxerga mais onde está: acaba sucumbindo ao mesmo comportamento do minotauro, sendo assim devorado por ele. Vemos homens que se propuseram a combater a falsidade, o machismo; mas acabam aderindo à farsa, ao constatar que disso se extrai o gozo do benefício, o aumento do poder pessoal.


Então esta a diferença entre o homem e o herói: o herói, por força do destino, ganha uma vantagem, tem uma mulher que o ama, para salvá-lo. No caso do labirinto do minotauro, Teseu não perderá seu atributo humano nem de heroísmo, não sucumbirá à força dos instintos animais perdido em uma trama confusa: ele tem o fio de Ariadne, e permanece herói pelo mérito de reter o fio dourado do sentimento dela por ele.


Ariadne é a filha do rei. Sim, um rei cessa o seu comportamento predatório ao se recordar tem uma filha: ao governar, ao exercer o poder, ele se recorda que não poderia aplicar a sua lógica predatória indistintamente, porque significaria aquiescer à predação de sua filha. É o sentimento dourado, do pai pela filha, que previne no homem o comportamento predatório com outras mulheres, porque no seu coração, ele não quer ver o seu comportamento predatório  generalizado. Disso resultaria, como consequência natural, a filha explorada, morta ou humilhada, cedo ou tarde…


É o fio do sentimento de amor que faz Teseu, o homem que deseja preservar o ser humano, a civilidade, sair do labirinto confuso dos instintos para retornar vitorioso à cidade, à urbanidade. Teseu vence o minotauro com um só golpe. Prevalece então o sentimento humano, de não devorar o outro, mas respeitar sua vida, sua dignidade. Depois do ato sexual, de enfiar-se no percurso confuso dos instintos, digamos, ele sai do labirinto sem ter aquiescido à preponderância do predadorismo: continua amando e respeitando Ariadne. E os louros ao herói.


Mas também os louros ao rei Minos: a redenção da paternidade. O rei não pode permitir que sua filha seja explorada e morta.


Agora: trouxe esta narração toda aos leitores por um motivo. Estava ouvindo a entrevista de Julio Cortázar de algumas décadas atrás. Eis a leitura que Cortázar faz da lenda do minotauro.


“Existe la versión oficial del mito, Teseu es el heroe que entra en el labirinto y busca a ese monstro espantoso que es un minotauro, que devora a jovenes rehenes y se lo mata, y sale como el grande héroe. Yo vi eso totalmente al reves. Yo vi en el minotauro yo vi al poeta, al hombre libre, al hombre diferente, y por lo tanto el hombre que la sociedad, el sistema, encierra imediatamente, mete, a veces se lo meten en las clinicas psquiatricas, a veces lo meten en un labirinto, en ese caso eran laberintos, era un laberinto. Entonces Teseo, en cambio, es el perfecto defensor del orden, que va ahí a matar el poeta”.


(Existe uma versão oficial do mito: Teseu é o herói que entra no labirinto e procura aquele monstro hediondo, o Minotauro, que devora jovens reféns e os mata, e emerge como o grande herói. Eu vi isso completamente ao contrário. Eu vi no Minotauro o poeta, o homem livre, o homem diferente e, portanto, o homem que a sociedade, o sistema, imediatamente tranca, confina, às vezes o colocam em clínicas psiquiátricas, às vezes o colocam em um labirinto; neste caso, eram labirintos, era um labirinto. Então, Teseu, por outro lado, é o perfeito defensor da ordem, que vai lá para matar o poeta.)


Ora, esta visão não poderia ser compatível com a vida poética, com o ethos de um poeta: pois seria necessário ignorar o mal causado aos mortos, às jovens feitas reféns pelo minotauro, como consequência do minotauro perdurar atendendo os instintos dele. O poeta não mata nem devora jovens para atender aos seus instintos, com crueldade. Um poeta não poderia ignorar o sofrimento humano, que também é o sofrimento dele… Se ignorasse o sofrimento humano que se segue a devorar jovens, seria um bicho estranho, um minotauro: não um poeta.


Entretanto, estamos vendo muitos poetas escolhendo se entregar a esse labirinto: preferem não ver o que estão ensejando, a predação e o consumo, o sofrimento das vítimas. Preferem se enfiar em um local muito confuso, com muitos caminhos e poucas saídas, onde não se sabe dizer ao certo o quê é o quê… O machista, o homem misógino, escolhe não ver o sofrimento da mulher que ele consome e devora. Nem vê nisso um problema, em todo ano fazer mais vítimas: porque está centrado demais em si mesmo e em sua sede pelo poder, pelo prazer, pelos instintos animais que o dominam. Teríamos de ignorar completamente a morte e sofrimento das jovens sacrificadas pelo rei de Minos e consumidas pelo minotauro, para querer argumentar poesia… E nisto nos teríamos tornado tão crueis, feios e indiferentes quanto o minotauro… Não, a poesia não pode ser cruel, feia, nem indiferente: deixaria de ser poesia, algo que nos eleva e aprofunda o espírito, e passaria a ser algo que rebaixa e faz perder a alma humana.


Do mesmo modo, não se pode fazer boa política humilhando e devorando a reputação de mulheres, ou dos mais jovens, como vemos nesse movimento de extrema direita que se alimenta de subalternos, fazendo-os bodes expiatórios que, uma vez sacrificados, simulam cessar o ímpeto da sede por justiça, atendendo à sede das massas. É uma política que rebaixa, aquela que não tem sempre em vista o bem comum, e vive de joguinhos servindo para devorar o outro.


Nessa entrevista, Cortázar é Minos: ele quer o touro branco, diz que o instinto que escapa à civilizade é poético, algo puro. O resultado disso é um monstro, o minotauro que ele engendra. Centenas e centenas de pessoas nas redes sociais, inclusive páginas de poesia, estão tomando essa entrevista dele como um ato brilhante de criação, de rebeldia…Todos serão consumidos pelo minotauro, pela irrazoabilidade, tristemente. Mas é preciso ser Teseu: guardar o fio dourado de um amor verdadeiro e sair desse labirinto do instinto pelo poder, preservar a poesia da desgraça que justifica a violência; matar o minotauro com um só golpe, para salvar os que se perdem todo ano no labirinto, em um ritual macabro. Enfiar a espada. Monstro! Retirar a espada e deixar sangrar politicamente até morrer. Bicho feio…   


Também de onde estamos, Cidadãos trabalhando na cidade, podemos ver senadores que entraram em um labirinto do minotauro. Quem não se recorda dos senadores que mataram o minotauro com um só golpe, com o notável sentimento de repúdio conjunto? Foi quando tentaram silenciar e desrespeitar a senadora Simone Tebet, atacada por um ministro de governo, durante a CPI da Pandemia: eles apunhalaram o machismo com um golpe magnífico: “É um menino!”. Depois vimos jorrando o sangue político do sujeito infeliz, já sem nenhuma credibilidade.


Mas a vida política dispõe reiteradamente os conflitos superados. Por vezes leva a becos sem saída: é um labirinto complicado.


Agora os senadores, novamente, se viram diante do minotauro interior, diante do bicho guiado pelo instinto político, buscando fazer uso articulado do poder para devorar uma vítima, esvaziando o adversário de sua dignidade. A Constituição deveria ser o fio do novelo dourado que os traria de volta os senadores à segurança, desse labirinto à nossa cidade. Antes que sejam eles próprios destruídos e devorados: pela entrega de si mesmo ao instinto político, pelo acolhimento da agressão como uma indulgência. Conviria dar um golpe eficaz nesse monstro que legitima fustigar com descortesia e superioridade as autoridades e desafetos. Muito melhor que a sugestão de Cortázar é a frase atribuída a Gabriel García Márquez, ressonada pelo Papa Francisco, quando se encontrou com a ex-presidente Dilma Rousseff: “um homem só tem direito de olhar o outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se”.


Mas os labirintos não terminam por aí. Do alto deste monte elevado onde estamos, que nos faz ver tão longe, de querer salvar todos os homens da tragédia política e da infelicidade… Observem comigo, ainda, na esfera pública, o atual esposo de Gisele Bündchen, brasileiro, professor de jiu-jitsu, em fotos nas quais ele surge sendo facilmente vencido por ela, no tatami. Em seguida, a modelo surge recomendando receitas na internet, como uma boa dona-de-casa domesticada, milionária, sacerdotisa do bem-estar, nas capas de revista francesa. O triunfo concedido à mulher, proposital de início, é transformado no triunfo definitivo do homem ao final. Ou é possível que uma mulher vença um professor de jiu-jitsu no tatami e permaneça objeto de seu desejo? Ou não existe tal coisa, triunfo definitivo ? Pois. Surge o novo esposo da nossa modelo favorita ao lado de uma figura política polêmica, de direita, que gosta de exibir a cabeça de mulheres que protagonizam a própria vida entre os seus troféus de caça. E observem agora, ainda, o irmão do ex-professor de jiu-jitsu de Gisele Bündchen, também professor de jiu-jitsu, em fotos sendo facilmente vencido por Ivanka Trump, no tatami. O que devemos pensar disso? Existem labirintos que, para matar o minotauro e salvar o homem, não são nível “hard”: são nível “Harvard”.   Deve haver algum Teseu por aí que vai salvar todos esses jovens.


Algumas pessoas dizem que eu sou idealista e romântica, mas eu não sei se eu tenho tanta certeza disso, não. Não em toda matéria… Mas a Constituição com certeza é, os princípios que temos como consenso, que vamos carregando conosco. Talvez isto nos faça idealistas e românticos. As certezas que eu tenho: são bem mais de 200 anos de amizade, e devemos zelar por um certo senso de justiça divina, combatendo a tragédia e a infelicidade; e quanto maior a distância do poder, melhor a vida.



* Ana Paula Arendt é poeta, cientista política e diplomata.










 
 
 

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