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O Poeta perspicaz



Fotos: Bruno Abreu.

DAVINO SENA

Escritor e diplomata, Davino Ribeiro de Sena, 60 anos, nascido no Recife, é casado com Socorro Sena e tem duas filhas. Publicou diversos livros de poesia e tem colaborado em revistas eletrônicas. O poema “Bando de Gatos”, excelente amostra, foi publicado na Revista Eutomia, de dezembro de 2015. Seu primeiro livro, Castelos de Areia, foi o laureado nacional em 1991 pela Fundação Nestlé de Cultura. Participou, com o apoio do Itamaraty, do Encuentro Iberoamericano de Poesía em Santiago, Chile, em 1993. Do encontro resultou a antologia Um Angulo Del Mundo. Leu poemas nos saraus do grupo catalão Cafè Central e deu palestra sobre Literatura Brasileira na Universidade de Barcelona em 1995. Trabalhou na Espanha, Reino Unido e outros países. A Academia Brasileira de Letras publicou o poema “Petúnia Desperta”, entre outros, na Revista Brasileira, número 76, de 2013.

TUDO É VELHO

Davino Sena

Ai menina! Tudo é velho. Há mil estrelas no céu e todas existem há séculos. Todas se movem lentamente. Nós é que somos apressados.

Ai menina! Tudo é velho. É bem longo este inverno de árvores secas e vesgas. Enche-se de rugas a cerejeira. Nós é que perdemos o tato.

Ai menina! Tudo é velho. Não está longe o inferno das multidões indefesas. É cansativo ser honesto? Nós não vivemos de fato.

Arendt. Davino, obrigada por aceitar o convite para a entrevista. Você sabe que além de colega dileto e de um grande amigo, o tenho em alta conta pela admiração, sou sua leitora assídua. Sua verve poética é sutil e elegante, e seus versos curtos têm grande poder de significação, sua perspicácia é machadiana. Que tal começar contando sobre a sua infância e adolescência? Foi nessa época que você começou a escrever versos, ou apenas após o início da carreira diplomática?

Davino. Queria agradecer seu convite e dizer que não é fácil responder com segurança sobre o misterioso ato de escrever. Sempre tive a mania de ler tudo o que via pela frente, talvez por causa de uma introversão que me fez duvidar de que houvesse nada melhor para fazer além de ler. Pais e avós gostavam de ler e sempre havia um livro sedutor na estante. Fui um menino tímido, que gostava mais de observar do que de agir. Influenciado por minha mãe, estudei durante anos coisas de ciência e tecnologia, que me deram um vocabulário meio rude e uma maneira exagerada de ver o mundo. Tive algumas crises de depressão e abandonei os estudos, partindo em busca da uma resposta filosófica para a existência. Comecei a escrever versos bem mais tarde, foi um processo muito lento, cercado de prazer e dúvidas. Veio a diplomacia, na maturidade, e os poemas seguiram “chegando” naturalmente, quando tinha tempo para escrever, entre um e outro país.

PERTO DO SONO

Davino Sena

Estelar, movia-se no tempo até ficar com o lado esquerdo do rosto sobre o travesseiro. O corpo vaga no deleite de um cometa que atravessa a fronteira da Via Láctea.

O astro se converte em carne como uma pintura a óleo, tarde demais para o sono que não veio, soprando de antemão sobre o corpo alheio, vizinho na ondulada galáxia do lençol.

Então o sono chegou, fresco como o vento, a levar para longe a poeira estelar do pensamento.

Arendt. A gente sabe que, apesar de haver muita expectativa de que o Itamaraty produza talentos nas artes, sobretudo na literatura, nem sempre o caminho do poeta e do escritor é o mais fácil. A opção de fazer diplomacia com o beneplácito da arte ajuda, do ponto de vista da integridade humana, da resiliência que a poesia nos proporciona?

Davino. Sua pergunta é importante e difícil de responder em poucas linhas. A diplomacia, junto com a poesia, foi o caminho, digamos, como atividades paralelas, para o meu tipo de personalidade introvertida. Arriscado dizer se funcionaria com outra pessoa, que tivesse outras necessidades pessoais. Diria que a profissão diplomática tem a vantagem de obrigar você a escrever com objetividade, essa palavra complicada, mas afinal sua escrita, em geral, vai depender de um erro aqui, outro ali, sobretudo de um esforço solitário em achar um “estilo” de escrever e nele seguir com alegria. Optei por uma linha de trabalho, no Itamaraty, mais bilateral, com especialização em ciência e tecnologia, porque era minha história pessoal, mas trabalhei em todos os setores da diplomacia, sempre disponível para o que fosse necessário. Quando ganhei o prêmio nacional de poesia, em 1991, tive uma acolhida dupla junto aos colegas diplomatas. Alguns me cumprimentavam simpaticamente. Um gesto também bacana foi o Itamaraty haver-me convidado oficialmente para representar o Brasil em congresso de poesia no Chile. Algum esforço não pode ser deixado de lado quando falamos em conciliar a solidão necessária ao surgimento do poema com a fluência organizada que exigem as variadas funções da diplomacia.


Davino Sena no Encontro de 5 Poetas em Brasília, na Biblioteca Nacional, em 2016.

Imagem: Lab61. Vídeo disponível em YouTube.

Arendt. Davino, quando eu entrei no Itamaraty eu jamais pensaria em publicar um livro de poesia, muito menos em escrever fábulas, livros infantis ou versos de qualquer sorte. Eu pensava que a diplomacia era escrever telegramas e fazer articulações de bastidores, e que escapar disso era uma grande bobagem, uma espécie de consolo para quem não havia obtido êxito no fazer diplomático "tradicional". A minha visão vem amadurecendo, é claro. Recordo que um colega nosso, excelente apresentador do Encontro de Cinco Poetas, publicou no Correio Braziliense algo bem nessa linha, bem pessimista: de que não devemos esperar que a poesia possa mudar o mundo. Mas chorando com João Cabral, suspirando Neruda, descobrindo que a Cecília Meireles passou uma temporada na Índia, sabendo que os americanos cantarolam a Garota de Ipanema, quando falamos no Brasil... Será que não podemos concluir que a poesia transpõe fronteiras, reconcilia as sociedades diversas que integramos, ao menos em parte, quando nos relacionamos em outros países? É tão perturbadora a ideia de que podemos moldar acontecimentos e o pensamento ao nosso redor, a ponto de considerarmos a nossa poesia irrelevante?

Davino. O poeta que eu sou não surgiu do nada, ele foi-se fazendo, e tive o apoio do Itamaraty, a cada dia, ao longo dos anos. Mas o resultado do livro publicado, por menor que seja, pode ultrapassar as fronteiras nacionais, como nos casos que você citou com tanta propriedade, a depender de uma orquestra de interessados no tema, que inclui o crítico, o professor e até o leitor. Um poema pode girar mundo afora e pode, até mesmo, viver além da morte de seu autor. Pode mudar quem somos, a maneira de se ver o poeta, de o poeta se ver, para escrever além do que ele pensa que é. Nossa alegria é saber que temos um único leitor que seja inteligente e que, por acaso, se sensibilize com o que fazemos. Acho que isto responde a sua questão sobre “relevância”. Eu escrevo para leitores que gostem de ler, vez ou outra escrevo com medo de estar fazendo alguma bobagem, mas sempre tentando ser fiel ao que penso que sou. Isso não é tautologia. Somos tão permeáveis que absorvemos demasiados poemas de outros. O Brasil, nesse aspecto, é uma ilha orgulhosa, que não tem uma literatura conhecida internacionalmente. Somos quase uma África, uma terra ainda não descoberta por falantes de outras línguas além do português, mas creio que no futuro o seremos, pelos bons leitores que andam espalhados pelo mundo e estudam a nossa língua. Acabo de ter notícia de que temos um surto de febre amarela, o que nos aproxima ainda mais da África. Como já me vacinei para ir à Libéria, não terei problemas quando passar antes duas semanas em São Paulo – é febre amarela silvestre mas não custa prevenir.

ODE AO SABONETE PHEBO

Davino Sena

Sou transportado a 1969 todas as vezes em que cheiro o negro e amazônico sabonete Phebo. Recife tinha ônibus elétricos que deslizavam, macios, pela rua quase sem peso, como na Lua. Minha mãe costumava sair do banho numa toalha presa às axilas, envolta em vapores perfumosos. Lá fora meninas sorriam como iaras do Capibaribe, riam do menino, que de longe as via. Meu coração pertencia inteiro a mamãe, meu único modelo do ser feminino, com sua carga de mistério. Em sonho eu a vi, sentada numa jangada na velha Olinda, intacto o mistério de ainda ser menina. Como eu a podia ver, antes da foto de quando eu não nascido, se apenas hoje vi a foto, o tempo perdido? A maravilha aconteceu há tanto tempo que apenas me retorna com o cheiro imarcescível do sabonete Phebo. Meu pai duvidava que os norte-americanos houvessem chegado à Lua em 1969.

Arendt. Davino, eu agradeço muito a você por esse maravilhoso presente que foi o seu livro sobre a Expedição Langsdorff. Há poucas fontes sobre essa iniciativa que confere muita força ao trabalho de divulgação comercial do potencial brasileiro no exterior, mas salvo engano o mérito da Expedição Langsdorff foi trabalho digno de uma linha de pesquisa do IPEA/BNDES. Conte-me como você escreveu esse clássico.

Davino. Fico feliz de que tenha gostado do livrinho. Eu queria fazer um poema baseado na história dos homens que levaram adiante aquela expedição pelo interior do Brasil. Eram homens notáveis, de uma fibra superior, que hoje é mais rara, e um verdadeiro heroísmo. Também é a história de artistas que retrataram o Brasil e mostraram nosso país, sua gente nativa, fauna e flora. Eles não teriam avançado não fora pelos mesmos nativos, que os alimentavam e guiavam. Ao fazer o livro, tive o prazer de acompanhar tais pessoas e viver algo de suas aventuras. Foi divertido fazê-lo. É divertido lê-lo.

Expedição

Davino Sena

“(...)

como viu a pastora;

homens a rodar bateias

sobre córregos obscuros

e infinitas galerias

a cavar morros fundos

antecipando Itabira

e Carajás, onde o ouro

e o ferro desceriam

mais dóceis “em pó;

folha, barra, prestígio”

a repetir o repetido

a engrenagem do tempo

a revelar a quimiotaxia

e o apelo obsessivo, mineral,

no dente de ouro retido

como frase dentro de livro.

A indústria do ouro

e a nova lei escravagista

são punhais de carne

dos índios maxacali

que Rugendas desenhou

com os olhos amendoados

e os zigomas salientes

sem europeizá-los

com o traço suave

da ilusória realidade

quando “bêbados e graves

aos domingos vão à missa”.

Mãos na terra, os índios

desenterram a ipecacuanha

a crescer, intumescer, no ar

e estancar disenteria.

Os índios mudam a floresta

erguem cabanas de palha...

Tudo pára ante o soco na mesa

desferido por Rugendas.

Langsdorff não se permitia

o luxo de aceitar que outro

fosse mais forte, mais astuto

e genial, preferindo, a cada dia,

a ilusão da própria força

diante das árvores inclinadas

em respeito, o odor de água

fervida e madeira queimada

entre rostos desanuviados

e cachimbos reverentes.

Após o almoço na fazenda

Do capitão-mor Ribeiro

Quando se assou um boi

inteiro, a fumaça alta

veio espantar a nuvem

de moscas sobre o morto.

Um escravo manteve

as moscas afastadas

da carne do boi morto

em postas derramado.

O homem tangia a fumaça

com a mão e as palhas

na direção do morto

antes que as velozes

moscas pudessem lamber

o poema sangrento

com as probóscides sujas

do mau sentimento.

O ebúrneo servo fala

com o marmóreo senhor

sobre coisas práticas

diante do boi morto

porque a amizade vencia

as moscas do ódio

e as distâncias sociais

sumiam como a fumaça.

Somos tão cordiais

um com o outro

que jamais revelamos

nossas antipatias

e seguimos inocentes

com gestos excessivos

tal o chefe diante

do subordinado, amigo

surpreso ante o braço

condescendente e lívido

a cair possessivamente

sobre o irrecíproco ombro

que vira pedra, rígido,

enquanto o cinéreo rosto

tenta encontrar palavras

para alimentar a farsa.

Um dia descobriremos

o engano, como jaguares

que bebem leite de pedra

como rios sem mosquito

e por que sucumbimos

ao falso amigo, ao destino

em queda, da febre amarela

e da fulminante mordida

que perduram em osso

ou ruga na despedida

e sem o conforto de rede

oriundo de palavra amiga.

A expedição partiu de Santos

E caminhou a São Paulo

Com o esforço de formigas

Até um pouso de tropeiros

(...)”

Sena, Davino. Expedição. Rio de Janeiro: Editora 7 Letras, 2007, pp.36-41.

Arendt. Davino, diga-se. Como você mesmo vê a sua poesia? Por que você escreve?

Davino. Vejo a minha poesia como uma coisa sem fim, um brinquedo para adultos, uma ponte para outra realidade, a realidade da imaginação, perto e longe da realidade. Para leitores de poesia, os verdadeiros leitores de poesia, o poema é como um copo de água que jamais sacia a sede de palavras. É aquela água bem fria, que engolimos com prazer porque também pode ser menos fria. O leitor pode, com a imaginação, transformar a água em vinho. E todos sabemos o efeito do vinho. Usar com moderação, se puder. Recomendo ao jovem escritor pensar com responsabilidade no seu ofício. Recordo o tempo quando um poema podia levar dezenas de pessoas ao suicídio. Escrevo, porém, sem pensar no leitor como se ele fosse um ser real. Para mim, escrever é um ato que necessita de esforço e mais, de um certo “clima”. Costumo sentir vontade de escrever quando estou cheio de tarefas e algo acontece em mim, um sinal. Acostumei-me com isto. Mas também gosto de escrever com planejamento, com tempo de sobra, nas férias. Tive a sorte de haver casado com uma mulher excepcional, sendo ela mesma uma música, porque eu não saberia lidar com esse dom, com essa mania de escrever, sozinho. Ela ajuda-me a aceitar a “missão” de escrever, com tudo o que implica de alegria e responsabilidade.

A MUSA OCUPADA

Davino Sena

Ó Musa Adorada, de feições divinais, que desde a antiguidade os inspirados poetas ajudais... - pela harpa de Orfeu, me liga!

Estou até o pescoço com a cotidiana lida a gastar-me fé e osso... - pela cítara de Davi, me liga!

Quero navegar o mundo, páginas em branco, às ilhas que são do poeta o latifúndio... - pelo estro de Camões, me liga!

Na sala por trás do vidro o velho senta, pega o celular, digita o número sagrado e ouve o sinal de ocupado.

Arendt. Eu não poderia deixar de lhe perguntar sobre as suas expectativas futuras. Antigamente, nomes como os de Guimarães Rosa e de João Cabral de Melo Neto foram incensados pelo Itamaraty, em função da celebrada contribuição que deram à literatura nacional. Até mesmo o Vinicius, após a redemocratização, teve o seu legado reconhecido pelo Itamaraty, tendo em vista sua inestimável contribuição à representação da imagem do Brasil no exterior. Graças à contribuição deles, pelo que entendo, a Casa generosamente contemplou estimular e incentivar quem tivesse gosto pelas letras. Contudo seu próximo Posto parece uma cidade inusitada para um poeta. A seu ver isso demonstra a burocratização do Itamaraty, em que os quesitos para um Posto cultural relevante não passam pela produção cultural relevante, ou você é mesmo um poeta e diplomata "Indiana Jones"? O seu caminho não seria o de voltar para Brasília após a temporada no Sri Lanka?

Davino. Amo Brasília como uma cidade aberta para a liberdade, com aquele céu azul carregado de poder e alegria. Mas ultimamente tem sido difícil amar Brasília sem deixar-se iludir com o que o amor tem de mais ilusório. A última vez que estive em Brasília, para defender minha tese do Curso de Altos Estudos, sofri tanto que pensei assim – juro – meu consolo é saber que Jesus Cristo sofreu mais... Teté (Socorro) teve câncer em Brasília. Mas veja com seus olhos de poeta, melhor ainda escute com ouvidos de leitor afinado – Brasília e Monróvia possuem a mesma imagem, o mesmo som primordial. Lá em Monróvia, terei funções exatamente como teria se houvesse optado por Brasília. O mais chato é que não terei a sua bonita pessoa física, inteligência e charme, para conversarmos tomando um café na lanchonete do Itamaraty. Eu seria como um fóssil diante dos novos diplomatas, exibindo minhas falas antiquadas e meus gestos artríticos pelos corredores e salas belíssimos, que conhecemos, com quadros modernistas e tapetes persas. Isto seria engraçado. Só que não. Hoje em dia, lá vou eu com a fala antiga, “tudo é pela internet”. Rio tanto com essa frase... Mas é um riso contido, sabendo que meu destino é mudar de país a cada 3 anos. Quando penso em animar-me, como diplomata, penso em abraçar a realidade do meu país de destino. Libéria significa liberdade para os escravos. Vou finalmente, creio, conhecer as minhas, nossas origens africanas. Não se trata de aventura hollywoodiana. No máximo, vou divulgar o novo cinema brasileiro em terras d´África.


Foto: Bruno Abreu

OS SEIXOS

Davino Sena

A expedição chegou a uma clareira de onde se avistava um rio em cujo leito surgiam gordos seixos como de uma cartola surgem coelhos como de uma árvore surgem mangas. E nós ficamos dias a contemplar as variegadas formas e matizes da pedra mudada em seixo. As mãos do rio fizeram da pedra algo vivo e mais bonito sem orelhas de coelho nem perfume de manga (o homem despido) o polido seixo.

Arendt. Obrigada pela gentileza. Davino, pelo que entendo a Libéria foi um dos primeiros países a se libertar da escravidão. É um lugar seguro para um poeta? O que você espera encontrar? Que tipo de poesia você pretende inventar por lá?

Davino. A herança africana é muito bonita porque os africanos são, na maioria, bonitos e inteligentes. Corpo e alma. A guerra civil durou quinze anos na Libéria. O importante é ter em mente o que você já disse aqui, o republicanismo precoce da Libéria, seu desejo de liberdade, impresso até no nome. A similaridade com o Sri Lanka é estonteante. Guerra civil. Conflitos étnicos. A similaridade com o Brasil é igualmente estonteante. Expansão das igrejas evangélicas. Poluição de algumas praias antes paradisíacas. Um povo forte, que ri da miséria e segue em frente em busca de uma vida melhor. Isto é Libéria para mim, que jamais pus os pés lá, só de visitar a internet. Num primeiro olhar, posso dizer, trata-se de um país seguro para um poeta. Para um diplomata, talvez seja bem menos seguro. Penso quando, no Sri Lanka, fui a uma parada militar, como Encarregado de Negócios. Colocaram-me sentado perto do Presidente. No dia seguinte, soube que tinha havido uma tentativa de golpe militar, felizmente abortada, cujo alvo era exatamente o Presidente.

A NEVE

Davino Sena

(Londres, 23/02/2013).

Dizem que a neve caiu enquanto o velho dormia. A neve te surpreendeu na manhã seguinte a cobrir os galhos das árvores e a recobrir as cadeiras na varanda. Tu eras o velho que dormia sem saber da neve.

Sei que a neve caiu sem que ninguém a visse, sem que alguém soubesse tratar-se de algo novo. Melhor – como se a neve fosse tocada por alguém que jamais tocou a neve – alguém que ama o dia novo.

Olhas de tua janela os telhados vizinhos cobertos de brancura e o caminhão que se foi a limpar o branco das ruas como passa a limpo o poema a mão atenta do poeta isenta porém de atenção.

Sem o perigo da neve os homens podem andar pelas ruas sem escorregar assim podem as palavras trafegar no branco texto verticais na madrugada sim com os pés a tatear o asfalto sob o branco.

A manhã vai passar e nada ainda fizeste. Que fazer com a neve? A neve pesa, como o ar, se com uma pá a ergues. O velho lembra o menino a espreguiçar-se na cama a brincar na areia branca.

Que fazes com a neve? Eu não vou te aconselhar. Foi-se a vontade de fazer. A pá não levanta a neve e parece não a entender. Tratas a neve como a areia e assim jamais teu poema faz o mundo como deveria.

Um boneco de neve parece coisa impossível para quem nunca sentiu com a pele do menino os sussurros do frio – impossível e impassível ... o velho fica cansado e o galho faz de braço.

Tu sabes que a neve voltará a cair uma noite e ficarás acordado mas já não serás o mesmo para tocar os flocos a cair como frios sons nos verdes galhos da mente – nos verdes galhos do futuro...

Teu neto olha a neve a cair na cadeira da varanda como cai o olhar da mente na pátina das horas tardias em tons de sépia que não sepultam da neve o frio a cair, sempre a cair, na silente fotografia.

Arendt. Obrigada, Davino, pela sua disposição para o encontro com os leitores e pelos seus lindos versos. Espero que todos tenham aqui a oportunidade conhecer e valorizar mais o seu trabalho poético de altíssimo nível. Que você retorne com saúde e em segurança!

Davino. Sempre é um prazer conversar com você, Ana Paula. Na verdade, meu trabalho tem sido reconhecido e valorizado, até recentemente, nada tenho de que me queixar. Minha introversão é que atrapalha um pouco na hora de organizar a “vida literária”, participar de congressos e mesas-redondas, escrever cartas para amigos escritores, fazer parte deste clube secreto que se chama Poesia. Pessoas com você diminuem essa lacuna. Grato sou-lhe, imensamente.

Links para pesquisar obras do poeta

Página do autor:

Página na Academia Brasileira de Letras:

Filme do Encontro de Cinco Poetas:

Página no Portal de Poesia Iberoamericana:

Página na Wikipedia:


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