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Itaoby





Itaoby



Durante o alinhamento entre Mercúrio, Marte, Júpiter, Urano, Netuno e Saturno, termina o fatídico mês de agosto – mês de dominar o ano, ocasião dos planetas viris para inspirar a imaginação, planetas dos homens que habitam a minha imaginação. A luminosidade especial sobre o nicho obscuro que se move continuamente vai dar no Sol do ano sobre a constelação de Virgem – e se abre o lugar, dizem, de entendimento. Estive em Itaoby muitas vezes, lugar onde celebrei o riso aberto e escancarado, longe o medo da morte, caindo na vida. Onde cessa o receio do ridículo, se abre a minha gargalhada… Itaoby: onde meus escritos poderão ser lidos e comunicar o que disseram. Antes que os caminhos se pavimentassem de palavras transbordantes, havia a graça! Se eu pudesse descrever Itaoby, o espaço criado entre a aspiração e a inspiração, a melancolia e o receio… Não teria sido em vão esta vida*. Mas descrever é restringir… Melhor que descrever é escrever, dizer o que é conforme as circunstâncias que encontro, como é grande o meu deslumbramento desta terra descoberta, sítio que fica logo depois de Pasárgada**, bem perto de Sumatra**, tomando a estrada de abertura da reunião de seis planetas fitando o meu rosto. Itaoby é onde se explicam as circunstâncias, o azul e verde, as cores da Terra reunidas numa só cor: oby, na língua dos índios tupis. Minha linhagem é de mulher indígena. Os planetas viris me defendem e muram, deixando lá fora muito longe, os que se refestelam na satisfação contraditória de um triunfo sobre coisa que dizem pífia. Gente se fazendo bonecos autores de desperdícios que não fazem sentido. Mas os planetas obedecem ao Dono deles, a Quem os alinhou. Eu seja com a lua, alegria do índio, fortuna do marinheiro, pequenino ponto que ilumina pouco, de órbita tênue…. Ponto branco que ergue a maré sobre a luz delicada: o mar quer me ver e traz tantos olhos. Todos esses planetas se reuniram porque sou feita de pedra, pedaço grande que se destacou da Terra machucada, porque vivo ao redor da Terra, porque detrás de minha face miro as estrelas, porque tenho a face voltada para o que é azul e verde. Ser um pequeno detalhe no sistema solar que perfaz a sintonia perfeita, o que faz diferença no tempo dos anos, o que torna o céu agradável de mirar. Disto o meu pedaço da Terra, lugar de entendimento sobre quão longe vão as disputas, a compreensão triste sobre as pessoas que se prostituem e se acabam por nada, sobre a falta de lucidez dos homens que desejam se detestar, dos que se aliam pelos vícios depois de discursar sobre certo e errado, dos que erram o futuro e chamam isso de prever… Quanta gente esperando eu protestasse calúnia contra o poder sem força, o poder sem legitimidade de ter poder, o poder sem criação… Já esqueceram. Neste pedaço de Terra, o riso. E Itaoby, lugar onde eu pouso caminhando pela escada da luz branca desde a lua, é o contrário da pedra rosada: ali estão todas as metades que faltam para entender cada coisa minha, ali está o oposto da rua onde se abre a escassez da rima, o que as leis não dizem, o motivo que não se vê. A distância que leva para chegar a Itaoby é a longa violação que me fez silêncio, o olhar no vazio. A distância me separa da violência dos homens cobrando que eu permanecesse a mesma depois de ser violada, dos homens que acumulam para si mesmos recursos que não proveem, dos dejetos de mulheres ciumentas perscrutando em mim a inimizade que alimentam, das determinações de que eu não poderia me distanciar dos homens doentios, da conclusão superficial e fraca sob a linguagem de dispositivos… O muro baixinho, feito de tijolos e seixos, deixa do lado de fora os danos de despachos e consultas que me enviaram para fazer constrangimentos, a mesquinharia alheia, as falsas amizades que me abandonaram ao ouvir de assediadores a calculada infâmia – ah, amigos… Itaoby deixou para longe a agressão praticada à minha revelia, o abuso incessante, os gestos unilaterais, a arrogância que humilha, o decreto de que a minha palavra nada vale, o anti-magistrado repetente, preso em suas decisões sem leitura dos tomos, a dispensa das regras que dizem aplicar, o bel-prazer dos burros em não querer saber de nada, a ignorância voluntária, a gravidade da malícia pela eleição deliberada do mal. Ah! Mas não sou Tímon de Atenas***. Para cada expressão ridícula, uma profecia religiosa e fatal, para cada regra idiota, a minha indisciplina, para cada mentira sórdida, uma bofetada, para cada criador de víboras, a minha espada em seu Olho cego, para cada deferência ao dano, o meu abismo, para o modo de falsidade da máscara de plástico, a minha paixão, para cada repetição do mesmo conhecimento para que ninguém mais opine, o meu poema… O soco no núcleo narcísico do homem de masculinidade frágil o enviou para longe, e que ele seja feliz longe de mim. Era necessário desvencilhar-se das ameaças dia após dia dos perturbadores, também das pessoas ligeiramente insanas ocultando paixões desordenadas nos assuntos em que estão bitoladas, do oprimido sonhando tornar-se opressor****, do cilindro onde os cativos giram dia e noite alienando-se das próprias vidas, do cabresto do desejo, da escravidão da vaidade… De fora, nos arquipélagos desertos, os insultos que eu ouvi de quem pouco antes dizia me amar… O que fazer do ódio…? O ódio não rebateu nem respondeu minhas perguntas, o ódio está fora. Tudo isso virou pó que muita água leva para o fundo do mar. No fundo, o que não voa se deposita e se degrada para alimentar os pequenos seres vivos e os peixes, peixes saborosos que eu cozinho em Itaoby. Depois dos rios limpando a Terra, depois do lago de água imperturbável… Meu naco de terra com estes muros baixinhos, com tijolos que tentam ser um igual ao outro. Sem dano, agora, desde onde se veem todas as metades que faltam ver a quem gosta de acusar para ser menos. E por que ser menos? Gosto muito de ser mais, em Itaoby. Terra bem localizada, depois da estrada botânica de cipós e orquídeas, no fim da rua de todas as cidades em que suspirei aliviada, feliz demais com os erros que me puseram no caminho da redenção*****. Castelo feito de pedras que me atiraram. Lugar de entendimento. Sim, aqui só cabem os homens de voz grossa que endossaram a minha delícia, não, não tem sublimação: tem a falta de nexo que atirei à mente ambiciosa, as galinhas crucificadas servidas cruas ao faraó, a decupagem da maioria gabando a estupidez para si é o certo, o samba que entoei para a madame me atacando para sair em uma página de revista. A festa que encerrei de quem acha a vida é um filme… Se bem eu estava naquela festa, não havia nela algo a ser comemorado. A longa estrada que se percorre até Itaoby nos separou da injustiça, da verdadeira loucura humana. A distância sabe fazer o corpo que se coloca no seu lugar de destino. Ouvir canto de pássaros… Em Itaoby, toda a minha coleção de silêncios e de ruídos dolorosos faz sentido, produziram elementos harmonizados pela personalidade, compuseram um território fixo: o meu sorriso. Sorriso de não ser a vítima…****** Agora, adentro, meu naco de Terra com paisagem esmeraldina sem erosão. A presteza para ficar entoando louvores ao amor. O chope ao fim da tarde com os homens de tirar meus óculos. As mãos macias de amigas durante a adversidade. Os jardins mágicos e místicos, os bosques de passear escondida com meu coração audível, as hortaliças bem ordenadas de uma verdade nutriente, a montanha e suas curvas ao fundo. O roseiral de perfumes e cores profundas. As mil malhas de pessoas com olhos adocicados. Água com peixinhos, água rasa e transparente por onde caminham as crianças felizes, cumprimentando o ganso e o pato selvagem. As borboletas delicadas que bordam os anjos. As sapucaias em clareiras de fazer amor. Os pássaros fazendo ninho no viveiro de orquídeas. Em Itaoby, a criação de cavalos mansos com músculos para mover cidades, a conspiração para guardar lucidez e identidade sem provocar acontecimentos, os papeis que não precisam de autorização para decretar verdade. Em Itaoby, meus Filhos caminhando e admirando o mundo que percorremos. Em Itaoby, os teus olhos apaixonados, os olhos que ainda guardo, para dar gargalhadas comigo. Lugar de entendimento. Deixa também tudo que te feriu pra lá! Faz de tuas dúvidas uma féria, um curioso entretenimento. Porque só os teus olhos apaixonados me entendem e entendem todos os lugares que existem. Os teus olhos apaixonados inventaram Itaoby, és a terra inacabada que invento em que adentro. Então desfruta da tua vida, agora, nesta morada de afazeres divinos, para ver alinhados Mercúrio, Marte, Júpiter, Urano, Netuno e Saturno, a junção de coisas impossíveis em lugares improváveis, instalação contemporânea em que a memória de um cetro produz um rosto doído de rir eternamente. Realmente crês nisso? O poder é uma curiosa ilusão que se desfaz quando atravessamos seu holograma. Ver o rosto real que temos, feito do que foi vivido. Ao homem construído pela tragédia*******, eu proclamo o gozo. Sim, faz sentido rir por detalhar tanto algo que não serve para nada… Sim, te tornaste um lugar habitável e aprazível, templo de coisas engraçadas, onde eu vivo soberana de mim mesma, rezando e cantando para fazer sobrar o teu tempo, plantando e dando a plantar árvores, escrevendo, juntando e distribuindo livros, mirando a miríade de véus que retiro de tuas dores, as cortinas translúcidas que desvelam as pinças de meus dedos. Deixa de lado tanto as derrotas como as vitórias, as pessoas que carregam o peso de cassinos. Adentra a sala do céu noturno aberto, onde a fogueira arde cativando teus olhos, calor na noite fria dos pampas, do cerrado, da floresta e da caatinga, do Sahel, da savana, do arboreto, das tantas urbes, dos lugares escondidos em arvoredo, de água espalhada sobre a argila queimada, firme, suave e calorosa, dos lábios acariciando o teu rosto. Os arbustos de rosas brotando os botões de nossa juventude, recobrindo a testa de uma virgem, a tenda feita de porcelana em pintura, os cachos de rosas e primaveras colhendo água da chuva, tocando a sinfonia do sossego. Os vasos sagrados ornando o espelho d’água em meu santuário, a água derramada pela fonte incessante da chuva, rainha deste vale. Deste cume vejo a dança de estrelas consulentes consteladas, a montanha abraçando nossa fauna, a flora de memória e saudáveis registro… Os caminhos fazendo ataduras na estrada que leva a Itaoby. Até chegar à complacência. Sim! Complacência, a compaixão de si mesmo. Além de si mesmo, permanece o mundo cheio das infindáveis linhas emaranhadas ligando as coisas, cheio também dos desertos onde os acontecimentos produzem efeitos que se esvaem, também o mundo cheio de dor, fúria, prazer, contentamento. O recolhimento sabe de todas as coisas no mundo que permanecem acontecendo independentemente dos nossos desejos e da nossa maneira de pensar e ver o mundo. O mundo existe sem saber de nossos ferimentos, anseios, amores, e isso pede complacência. Não somos os donos de tudo que existe, e conhecer a ínfima presença que acumula feitos em redes e cadeias de repetições projeta a libertação dos constrangimentos. Saber de tudo o que existe e não sabemos, de tudo o que dorme para nós… Viver também o que é fora de nossa consciência nos empresta consciência; mesmo se dormimos para o mundo que dorme para nós. O mundo que sonhamos tem consciência de nossa vida. Quando dormimos, cessa a nossa consciência? Não sabemos do que se passa ao redor de nosso corpo? O sono capta a canção do mundo sem entendê-la, voz que tenta dizer tudo em sonoridade, o sono transforma tudo para o que se dorme em língua feita de experiências prévias e futuras. Tecidos unindo o que não sabemos, para sussurrar sentido, a consciência de estar no mundo e ser tão grande quanto ele… Regresso ao momento da criação em que o Criador se empresta à criatura, para que a criatura O veja. Ser uma pessoa… Todos os seres vivos têm diante de si a fé perante o desconhecido, diante do que não entendem. Buscam alimento e a busca é, para eles, a impiedosa fonte motora da respiração em anseio de conforto, a busca alternada ora pela dúvida diante da silhueta dos sentidos em sombra, ora pela certeza de saciedade que a fé promete. A vida, o labirinto em que correm essas duas pernas, certeza e dúvida. Mas é minha, a sombra, lugar onde os passarinhos me fitam para ser deles, onde eles fazem as fitas dobradas, os laços de olhar que o voo irrompe. Seus olhos escuros e assustados com a minha proximidade são as pedras preciosas que me enternecem. O beijo de encontro entre a luz e a sombra. Em Itaoby, o alimento que satisfaz o anseio, o cumprimento das promessas bíblicas de receber o que é gratuito e me serve. As árvores crescendo irmanadas, as doces consultas que fazem ao crescer galhos imiscuindo-se nos assuntos umas das outras, recobrindo os hiatos de Sol, dançando com o vento, o bosque um-só-ser para ser admirado. As árvores antigas que gravaram os anos não dormem para mim no sagrado bosque, foram plantadas pelas mãos que estão nas minhas********. De uma linha traçada entre planetas, pelos lugares autônomos interligados pelas órbitas… Canto suave erguido de um solo áspero. Foi escavado o solo e já era fértil, já brotava tanta coisa nele. Eis aí onde eu moro, onde o meu olhar se fixa, longe da tragédia, de desafiar contendores, sim, admiro a superação de toda adversidade*********: mas eu moro no entendimento. No lugar em que se prolonga, de tanta coisa a dizer e ainda por entender, a tua vida… O entendimento sabe das muitas coisas que ainda não sabemos, é um pedaço de terra onde tudo que se planta, brota e dá fruto com sementes para se plantar, brotar e dar fruto de novo. É parte de um vale fértil a ser cuidado, encontro entre o céu e a terra, é o que faz cessar o ruído perturbador dos dissensos. A felicidade, a delícia, o prazer, são coisas excelentes, mas sobrevalorizadas**********: nada vale mais do que permanecer onde existo e prossigo em paz, nada vale mais do que o entendimento que as coisas divinas propiciam. Ao fim de tantas viagens, percursos, de empacotar para mudar-se, de ser pavilhão batido pelo martelo do tempo, depois de doer e curar-se, ah, ganhar chão onde os pés caminharam, recordando os caminhos que não se encontram, os caminhos que nos levam e existem sem cessar… E no caminho que leva até Itaoby… Permaneceu o teu amor. A linha que sobrepôs todas as linhas. Itaoby, terra feita de tantas terras. Lugar da paz de tua descoberta. Vida feita de muitas eras. Lugar onde escrevo…



*“If I can stop one heart from breaking, I shall not live in vain” (Emily Dickinson).


** “Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor” (Paulo Freire).


*** Tímon de Atenas, peça de William Shakespeare.


**** Pasárgada, poema de Manuel Bandeira e Sumatra, poema de Milos Crnjanski, são ambos poemas sobre lugares idílicos onde o poeta encontra a plenitude.


***** “Bendita seja a crise que te fez crescer, a queda que te fez olhar para o Céu, o problema que te fez procurar Deus! (São Pio de Pietrelcina, Padre Pio)


****** “Your joy is your sorrow unmasked. And the selfsame well from which your laughter rises was oftentimes filled with your tears. And how else can it be? The deeper that sorrow carves into your being, the more joy you can contain. Is not the cup that holds your wine the very cup that was burned in the potter’s oven? And is not the lute that soothes your spirit, the very wood that was hollowed with knives? When you are joyous, look deep into your heart and you shall find it is only that which has given you sorrow that is giving you joy.” (Khalil Gibran, The Prophet).


******* “Instead of the hero, this soil at most succeeds at creating moving situations. But when moved, the Self suffocates in its misfortune. In the tragic, however, the misfortune loses all autonomous power and meaning; it belongs to the elements of particularity upon which the Self imprints the seal of its defiance, always this same seal (…)” (Franz Rosenzweig, The Star of Redemption).


******** Bosque dos Constituintes.


********* “I try to avoid looking forward or backward, and try to keep looking upward”. (Charlotte Brontë).


**********

 “As long as you chase happiness,

you are not ready to be happy,

even if you owned everything.

As long as you lament a loss,

run after prizes in restless races,

you have not yet known peace.

But when you have moved beyond desire,

become a stranger to your goals and longings

and call no longer on happiness by name,

then your heart rises calmly

above the ebb and flow of action

and peace has reached your soul.”


–Hermann Hesse, “Happiness"

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