A porta para o mar
Em Budva eu vejo o abraço perfeito entre a montanha e o mar entre as molduras de ginestras.... Ah, adorável acácia marinha curando meus olhos cansados de guerra. A cidade dorme enquanto é cedo, vês as luzes dourando a paisagem de um profundo azul, dentro de outro azul? Dentro da cidade fundada por Cadmo e Harmonia, construída antes de que este casal preferisse a transformação de serpentes para viver longe dos homens. Bem escondida por um labirinto ladeado por jardins, pátios, muradas e torretes, há uma porta que dá para o mar, onde se vê uma ilha. Bato à porta e a abro, com a chave feita de versos. Há um apoio, nessa porta desenhada com hera verde, para os braços de contemplação. A ilha parece pequena desde a praia, mas cresce e surge imensa quando se navega em direção a ela. Os peixes e cações guardam os meus arredores de nadadora, em Svet Stefan. Há de ser peixe para gostar de água gelada: os montenegrinos me gritam que não desejam interromper minha liberdade, mas querem que eu nade como eles digam, querem que eu nade como um cisne branco, mergulhando meu pescoço para trazer a eles peixes dormindo no fundo da água transparente. Querem ser paparicados... Quais animais estão na mata daquela ilha maior quanto mais próxima, prometendo paz deserta? Não entraram ainda na mata. E me levanto da água para percorrer os jardins de praia, as calçadas de rosas brancas enormes, onde há seixos e pessoas relaxadas, observo os barcos de pescadores buscando gente, aprendo os novos perfumes dos laureis do Himalaia (phoebe cooperiana), do cedro-branco vindo da China (melia azedarach), da laranjinha-japonesa (pittosporum tobira). É primavera e a abelhas fazem carnaval, estão felizes, elas e os beija-flores sobre os arbustos de juventude... As grinaldas e coroas de jasmim sobre as portas, os longos telhados de glicínia em verdura ornando a Citadela, guardando miniaturas de naves, garrafas antigas, livros e brasões de muitos séculos... A mesa para o mar e as listas de bebidas, dulçor de fazer nada... Cachaças de ameixa, framboesas, nozes, marmelos, uvas, peras... O parapeito das muralhas e escadarias de defesa contra um horizonte sem novidades... Tenho vertigem e desço, para não ver tudo. Os pássaros são melhores sentinelas. Donde se alcança, passando as bandeirolas ornadas de cavalos-marinhos, finalmente, a Praça dos Poetas. Há um dólmen nesta praça – quem terá morrido aqui? Mesa de sacrifício e sepulcro... Será tua poesia um sacrifício, o corpo que tomou a forma emprestada do pobre escrivão em busca de palavras, o que sobrou dele depois da morte? Será a poesia, então, o meu sepulcro? Escrevo este poema sobre a mesa de pedra. O poeta pode morrer, mas a poesia não morrerá jamais... Esta praça é o lugar onde os poetas se reúnem invisíveis: pois o poeta é um turista que jamais retira o seu disfarce. Tudo para o poeta é sempre novo: sim, os incontáveis turistas que nesta praça se reúnem nunca mais deixarão de ser poetas. Desde ali, tudo ganhará um ar de novidade eterna, depois da impressão permanente de novos cheiros, dos nacos com que a Índia, a China e o Japão perfumaram Montenegro, do tom de azul marinho claro que não se havia visto antes, da paisagem de encontro poético entre a terra e o mar. Uma cidade que nos fez pássaros... Testemunhas visitando o sepulcro dos poetas, sim, o lugar onde todo poeta gostaria de morrer... Ser poeta, colocar o olhar sobre as coisas, buscando a essência profunda de tudo, a existência sem fim. Da porta que dá para o mar vejo as paredes que carregam versos, deuses antigos, suspiros de amor. Num pátio onde há plantada uma oliveira a minha promessa de realidade, um sussurro. Quando tudo tiver falhado, quando a estupidez reinar no mundo e a solidão rachar os teus sonhos, afirmando teu sacrifício inútil: lembra do meu amor, dos meus sonetos, das minhas cartas... Um amor antigo, uma cidade antiga. A realidade está além do sofrimento, a verdade está muito além da solidão. Realidade e verdade estão reunidas nesta Praça dos Poetas em que as minhas palavras assentam e o pensamento repousa. Ver um monte de gente que não se conhece e, ainda assim, saber que desfrutamos do mesmo banquete de Budva. Entre eles te encontro. A porta que dá para o mar diz muito: ela nos conta que ainda existem lugares onde se alcança dizer que é ligeiro e novo, muito grande e antigo demais este mundo.
The door to the sea
In Budva heights I see the perfect embrace between the mountain and the sea, stunning city circled by frames of yellow ginestras, sweet-grassy-hay.... Oh, adorable sea wattle healing my eyes, so tired of watching world conflicts. The city sleeps inside its silent moorland edges, while it is early: see the lights gilding the landscape within a deep blue, inside a blue? Along the city founded by Cadmus and Harmony, built before this couple preferred to transform into serpents, to live away from men, and well hidden by a labyrinth flanked by gardens, courtyards, walls and turrets, there is a door in greening jambs that leads to the sea, where you can catch an island. I knock on the door, and I open it, with a key made of verses. There is a resting sill, on this door, as a window, inviting the arms for contemplation. The island looks small from the beach, but it grows and appears immense when you sail towards it. Fish and dogfish guard my swimming surroundings in Svet Stefan. You have to be a fish to enjoy cold water: the Montenegrins shout to me that they don't want to interrupt my freedom, but they want me to swim as they say. They want to be pampered by the poet’s body, and they want me to be a swan, diving my long neck to find fresh food... What animals are in the forest on that larger and closer island, promising deserted peace? They haven't entered the forest yet. Will I? And I get up from the water to walk through the beach gardens, the pronounced white rose walkways, where there are pebbles and relaxed people. I watch the fishermen's boats searching for sailors, I learn the new perfumes of the Himalayan laurels (phoebe cooperiana), of the white cedar coming from China (melia azedarach), of the Japanese orange tree (pittosporum tobira). It's spring and the bees are having a carnival, they are happy, the hummingbirds and them are meeting on the bushes of their youth... The jasmine wreaths and garlands crown the doors, the long green wisteria roofs adorn the Citadel's fortress, guarding miniature ships, old bottles, books and coats of arms from many centuries, the corners of honeysuckles announce there will be summer... The bar table facing the sea and the drinks lists, the sweetness of doing nothing, away from running the urban races... And Santa Maria, a miniature ship that discovered my country... Plum, raspberries, walnuts, quinces, grapes, pears distilleries... The cascading grounds, the parapet of walls and marble staircases defending against a horizon without anything new... The thick old stone balustrades and the stanchions build inside the rock cannot move, but I feel dizzy in narrow paths, and I go down, so as not to see everything. The birds are best sentinels. From there, brought down by the seagulls, passing under the carnival flags decorated with seahorses, finding the sweet songs of bells in churches, you finally reach the Square of the Poets. There is a dolmen in this square – who died here? There is no name. A table of sacrifice and tomb... Is it poetry a sacrifice, the body that took the form borrowed from the poor scribe in search of words, what was left of him after his death? Is it poetry, then, my tomb? I write this poem on a stone table placed in the altar of such a formidable place adorned with antique steps. The poet may die, but poetry will never do... This square is the place where poets gather invisibly: because the poet is a tourist who never takes off his disguise. Everything for the poet is always fresh and new: yes, and once they became poets, the countless tourists who gather in this square trying to find out where the poets are will never stop from being the poets themselves. In their eyes, everything will take on an air of eternal newness, after the permanent impression of the scents with which India, China and Japan perfumed Montenegro, after the shade of light navy blue that had not been seen before, after the landscape brought up in this poetic encounter between land and sea. A city that has made us birds… And we are witnesses visiting the tomb of poets, yes, the place where every poet would like to die... To be a poet, to place over things his eyes, searching for the deep essence of everything, for the endless existence. From that door facing the sea, I see the walls carrying sprouting verses, gods of old, and love sighs. In a courtyard where an olive tree is planted, my promise of reality, my whispering. When everything has failed, when stupidity reigns in the world and loneliness breaks your dreams, affirming to be useless your sacrifice: remember my love, my sonnets, my letters... A love of old, in a city of old. Reality is beyond suffering; the truth is far beyond loneliness. Reality and truth are brought together in this Poets’ Square, where my words sit and my thoughts rest. Seeing a bunch of people we don't know; and yet to know we're the poets enjoying a shared feast in Budva. Among them, you. The door facing the sea says a lot: it tells us that there are places where it is still possible to say that this world is bland and new, too big, and very much ancient - timeless.
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