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O indivíduo e as massas

  • Foto do escritor: Ana Paula Arendt
    Ana Paula Arendt
  • há 18 horas
  • 21 min de leitura




O indivíduo e as massas

Ana Paula Arendt* 



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De onde tiramos essa ideia de que grandes massas de pessoas nas ruas reclamando por quaisquer ideias políticas seriam uma autêntica expressão de democracia? Não nos fazemos esta pergunta, recentemente. 


Tomamos como um dado, passivamente, que um grande contingente de pessoas conferiria indubitavelmente legitimidade e força política a um movimento ou partido. Jornalistas, autoridades e pesquisadores de universidades rapidamente concorrem para estabelecer qual o número mais próximo da realidade, com suas explicações – ou falta delas. O debate passa a girar, então, em torno do número de pessoas, assumindo como verdadeira a tese de que, quanto mais indivíduos, maior a força política. 


No entanto, ao abrir o antigo livro “Psicologia das massas”, do austríaco Sigmund Freud, eu me deparo com o seu estudo da literatura da época, e com esta citação, uma pérola da sabedoria resgatando o nosso bom senso:


“Além disso, pelo simples fato de [o indivíduo] fazer parte de uma multidão organizada, o homem desce vários degraus na escada da civilização. Isolado, pode ser um indivíduo culto; em uma multidão, é um bárbaro – isto é, uma criatura que age por instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos (...)”. (Gustave le Bon, Psychologie des foules, 1895.)


E ainda um trecho do poeta alemão Schiller (1759-1805), amigo de Goethe:


“Todo homem, visto como indivíduo, é toleravelmente astuto e sensato; veja-os in corpore (em uma multidão), e você imediatamente encontrará um tolo”.


Freud, o fundador da psicanálise escrevia entre 1907 e 1920, portanto antes da Primeira Guerra Mundial, e durante o conflito de sangrentas proporções. Ele não viveu para observar o auge do n4zif4scismo e do governo baseado sobre o controle das massas, pois faleceu em 1939. Mas os seus escritos aprofundando a teoria de Le Bon, e incluindo novas variáveis para explicar as causas pelas quais as pessoas se deprivam da lógica e da capacidade de pensar, para seguir um líder, fazendo parte de uma multidão. 


Achei o velho livro “Psicologia das massas e outros escritos” na própria casa de Freud, em Viena. Estava pesquisando onde a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas havia sido assinada, exatamente, no Neue Hofburg. É um instinto: parece-me que toda vez que nos colocamos diante de um problema, de uma violação, acho recomendável retornar ao ponto de partida onde os acordos foram celebrados, para encontrar a origem e a resposta para nossas indagações. Assim, desde os tempos antigos, evocam-se os ancestrais – neste caso, não os consanguíneos, mas aqueles que nos precederam – que criaram um ordenamento para tentar superar as dificuldades de uma realidade caótica. Neste caso, eu buscava o local de origem do nosso ordenamento para prevenir guerras de vastas proporções e salvaguardar a amizade entre povos. Tudo muito vasto, é verdade! Mas a vida de poeta é isso: dedicar-se a essas coisas vastas. A biblioteca do Palácio Neue Hofburg estava fechada, tristemente. Ninguém sabia dizer onde havia sido assinada a Convenção de Viena; se bem provavelmente na biblioteca; e o salão de conferências é hoje um espaço privado, ocupado pela OSCE. Não parece haver memória… Então restou visitar a casa de Freud. 


Viena é próxima a Belgrado, houve inclusive um tempo em que parte da Sérvia fez parte do Império Austro-Húngaro. Para minha surpresa, Viena foi o destino escolhido pelos meus filhos espontaneamente para as férias, antes de que eu partilhasse com eles minha ideia. E lá estávamos nós aproveitando a abundância de acervos museológicos bem preservados, incluindo a casa de Freud, hoje um museu.


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 Achei interessante descobrir um pouco mais sobre a história da Áustria. De lá nós recebemos a esposa de D. Pedro I, a Imperatriz Leopoldina. Foi aquela mulher que assinou, enquanto Dom Pedro I cavalgava com seus amigos, a independência do Brasil, após uma sessão  no Conselho de Estado. Tendo enviado carta ao esposo, só depois de sua confirmação ele deu o grito que ficou registrado na História do Brasil, às margens do Ipiranga, consumando o que havia preparado e assinado a esposa. D. Pedro I deu o grito, mas a articulação política foi protagonizada, na Corte, pela inteligência de uma Habsburgo. Efetivamente, o castelo Schönbrunn, sede dos Habsburgos, destaca-se entre todos os que já visitei, pela beleza e amplitude de suas proporções. 


Mas nunca havia me dado conta, nem parado para observar antes disso, se bem estudamos nos livros de história, sobre como se deu a ascensão do n4zif4scismo na Áustria. Como um país que produziu Mozart, Strauss, Schubert, lugar onde  escolheram morrer Beethoven e Vivaldi, decidiu, repentinamente, seguir H1tler e Muss0lni? Como um país que legou ao mundo Hans Kelsen, e que sediou uma dinastia de tradição civilizatória legendária, de alto nível cultural, poderia ter sido assimilado por um movimento que pregava a mais completa barbárie? Ninguém diria possível que, pelos aspectos culturais distintos, e pelo temperamento tranquilo, otimista e aberto de seu povo, a Áustria poderia se tornar um panteão de uma ditadura e se somar aos esforços de subjugar, pela força da extrema violência, a Europa e o mundo. Entretanto, eles passaram por um momento de descontrole ditatorial.


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Imagem: Detalhe do Palácio Belvedere e do Clube dos Parlamentares


Entretanto, o ditador Engelbert Dollfuss governou a Áustria 1932 e 1934 com toda a simbologia de um movimento n4zif4scista: era aliado de Muss0lini. Suprimiu o movimento socialista durante a Guerra Civil Austríaca e baniu o Partido N4zista Austríaco. Foi assassinado como parte de uma tentativa fracassada de golpe de estado por agentes n4zistas em 1934. Os assassinos foram condenados; e Muss0lini compareceu ao seu funeral e condenou o atentado contra Dollfuss, pois naquela época, antagonizava H1tler. Dollfuss foi sucedido por Kurt Schuschnigg, o qual manteve o regime autoritário até a unificação da Alemanha e da Áustria, a Anschluss de Adolf H1tler, em 1938. É nesse período que se transcorre o enredo do famoso filme “A noviça rebelde”, e quando Bertold Brecht descreve Dollfuss por meio de um dos personagens de seu livro The Resistible Rise of Arturo Ui (1941). 


Partilho com os meus leitores as imagens demonstrando, na prática, o que Le Bon e Freud estavam estudando naquelas décadas que precederam a transformação da política em um  fenômeno de massas. 



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Painéis do Museu de História da Áustria, em Neue Hofburg





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O idealismo jurídico de Kelsen sobreviveu ao tempo, porque se provou mais adequado para promover o equilíbrio de forças politicas diversas e garantir estabilidade de governo. 




Kelsen, naquelas décadas críticas, foi um mentor do pensamento democrático e das cortes constitucionais, a chamada democracia de compromisso; mas era favorável à Anschluss, a união  entre Alemanha e Áustria. Esse foi outro erro dele, além de elevar Carl Schmitt, como tantos juristas o fazem, à estatura de intelectual, quando era um propagandista. O jurista judeu não viu que a integração entre Alemanha e Áustria resultaria na integração de dois grupos radicais de extrema direita, subestimou seus propósitos. Dessa união que o movimento ganhou força para se projetar no continente europeu e ensejou a inclusão de outros líderes a uma coalizão política mais ampla, como Mussolini e, posteriormente, a formação do Eixo.   


Todo esse fenômeno totalitário que obscureceu a Europa, é verdade, durou um período muito curto: depois da Segunda Guerra Mundial, a Anchluss foi proibida e a Áustria voltaria ao normal. Os regimes ditatoriais baseados sobre um credo extremista são extremamente instáveis: precisam se alimentar de triunfos e vitórias continuamente para exibir a virilidade que seus líderes se arrogam. Mas finda a II Guerra, a conurbação de dois movimentos políticos extremistas e radicais, de ideário violento, a Áustria sofreu um grande estrago, como toda a Europa que se viu destruída.    

  A desgraça e a alegria dos intelectuais e dos humanistas, de maneira geral, é a fé na superioridade dos valores que defendem, e de que o bem sempre triunfará ao final.  Não creio nisso? Obviamente creio, mas isso não me impede de enxergar que o idealismo de Kelsen, assim como a carta enviada pelo Papa Pio XI, a única escrita em alemão, diretamente remetida ao povo daqueles países, Mit brennender Sorge, apenas serviu como sutil registro sobre a indignidade dos valores n4zif4scistas. Esses esforços fundamentados numa superioridade moral – correta ou não – nada resultando, concretamente, para aliviar o peso dos povos invadidos, prejudicados e perseguidos. Poderia ter sido diferente? Então por que não foi diferente? 


Mas bem antes disso, e talvez captando todo o desassossego coletivo daquelas décadas, Freud analisou diversas características atribuídas por Le Bon às massas. Acho interessante como nunca fui apresentada a este texto dele, apesar de haver me formado em Ciências Humanas. Pelo contrário: na universidade aprendi que a obra de Freud era categorizada como uma pseudociência, já que suas asserções não poderiam ser provadas – não atendiam ao exigente critério de objetividade do contrafactual, na fórmula de Popper.  


De maneira que hoje vejo essa como talvez a maior estupidez que cometi durante a juventude: assimilar prontamente um argumento pela sua lógica, descartando, pela forma, o que possa contribuir para aumentar a compreensão de um problema.  





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O escritório de Freud, dentro do seu próprio apartamento, na Rua Berggasse, 19, Viena. 


Lembro também havia o preconceito, entre os scholars neoinstitucionalistas da moda de meu tempo, de que Freud era um drogado – efetivamente, ele foi viciado em cocaína. Aliás, ele achava que a cocaína poderia ser uma solução para o vício em morfina. Seu melhor amigo, médico, viciado em morfina, ofereceu-se para ser cobaia dessa tese; acabou viciado tanto em morfina quanto em cocaína e faleceu. Freud, aprendemos durante a visita à casa dele, guardava um porta-retrato desse amigo que perdeu, na mesinha ao lado de sua poltrona. 


Fizemos silêncio, lamentando com Freud sua péssima ideia, pensando em nossos melhores amigos, no que faríamos no lugar dele; mas admirados, de todo modo, com o amor que teve ao amigo, e com o critério de reter todos os dias a memória de sua falha. 


Expliquei para os meus filhos o que sei por alto das teses dele,  já que pareciam muito interessados e liam todos os paineis, sobre pulsões Édipo, totem, tabu… Expliquei Freud argumentava todo filho deseja a mãe e quer matar o pai para se apossar da mãe. Eles foram então lacônicos: disseram que “Freud é um doente”. Foi divertido ver a repulsa deles! O museu é amigável para crianças e tem jogo de tabuleiro, souvenirs com a efígie de Freud e a inscrição “I love Mum”… 

Mas verdade, mergulhando no tema, é que, nas palavras da psicanalista francesa Madeleine Vermorel, a obra de Freud não nasceu de um impulso cientificista, mas está praticamente toda baseada sobre a poesia de Schiller. Ela explica que Freud elaborou sobre a relação entre mãe e filho “tendo como base o poema “Der Taucher” (O mergulhador), para evocar os perigos do corpo materno habitado por monstros, citando a ascensão do mergulhador em direção à “luz rosada” para justificar por que evitou submergir no inconsciente materno”. 


Freud também teria utilizado o poema “O anel de Polícrates” como ilustração de uma de suas obras, o que espero ler e traduzir aos amigos e leitores. Uma história muito interessante que consta em Heródoto, sobre um tirando que atirou seu anel ao mar, e encontrou-o de volta, ao abrir o peixe que o engoliu; depois disso abandonado pelo seu aliado egípcio e crucificado por um aliado dos persas. 


Mas o que nos importa é que Goethe e Schiller são, para Freud, a pré-história da  Psicanálise, proposta como uma disciplina de estudo da alma humana, uma abordagem de um problema por meio da atenção ao outro, da escuta e do afeto. Como poderíamos explicar o mundo, ou enxergar o mundo satisfatoriamente, sem ter em conta a poesia e a atenção ao outro, a escuta e o afeto? O encontro entre o inconsciente e a linguagem produz a poesia, disso se revela a beleza da vida.  Quem viesse a viver, sem jamais encontrar nas palavras de um poema de amor o seu próprio sentimento, não seria capaz de celebrar os atos que fundamentam a civilização. Como poderia entender o mundo humano e a si mesmo, quem descartasse a dimensão emotiva dos eventos?   


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Inegável também que a poesia não é uma escrita desvencilhada do tempo e da coletividade. O anel de Polícrates, um dos poemas de Schiller de 1797, utilizado por Freud em sua análise do livro “O sinistro”, de 1919, tem raiz no que conta Heródoto (História 3, 122-126), poema que devo traduzir na próxima postagem.  Assim como Macbeth, de Shakespeare e tantas outras imagens e conteúdos de valor simbólico do qual ele se vale para analisar por que as pessoas se comportam de determinada maneira. Estava na moda, assim como em nosso tempo reverbera a série Star Wars, a ópera O anel de Polícrates, com a melodia sofrível de Erich Korngold e vozes em alemão, obra que encareço os leitores não venham a ouvir, para não me amaldiçoar. 


É verdade que Freud desejava estabelecer sua disciplina sob a cânone do pensamento científico e revesti-lo com explicações objetivas, valendo-se de categorias que ele formulava sem muito respaldo nos dados, já que ele não tinha acesso a eletroencefalogramas com o nível tecnológico que temos hoje, nem estudos de caso com dados bem organizados, para dispor e acessar as áreas de prazer e de experiências negativas. Ele também recusava a fisiologia que os fenômenos sociais despertam, para analisá-los. Mas seria uma grande estupidez descartar os insights de seu pensamento sobre o que move o indivíduo, sobre a origem de comportamentos patológicos, por causa disso. Do mesmo modo, seria uma completa falta de critério descartar a obra de Dostoievski por causa de suas dívidas de jogo… 

Freud está imerso no pensamento do final do século XIX, mas fez um bom trabalho ao discernir comportamentos que fazem parte da natureza humana, mas que são recusados pela sociedade, em função de tabus, idiossincrasias e repressão. Ele também faz juz ao método cientítico ao asseverar a importância de analisar caso a caso, antes de querer estabelecer regras gerais para tirar conclusões sobre quaisquer indivíduos. 


Neste sentido, de buscar ter uma compreensão maior sobre fenômenos humanos, adentro os fundamentos no estudo do comportamento de massas, para desenvolver a psicanálise. Freud critica Le Bon e seus comentários me parecem valiosos para entender o que estamos vivendo hoje no Brasil. 


Vamos antes ao pensamento do pensador francês: para Le Bon, em certas condições, “o indivíduo passa a sentir, pensar e agir de maneira muito diferente da esperada, quando é incorporado em um corpo de pessoas que tenha ganhado a qualidade de uma ‘massa psicológica’”. O pensador francês quer então encontrar as causas dessa diferença: 



“A primeira é que o indivíduo que faz parte de uma multidão adquire, unicamente por considerações numéricas, um sentimento de poder invencível que lhe permite ceder aos instintos que, se estivesse sozinho, teria forçosamente mantido sob controle. Ele estará menos disposto a se conter considerando que, sendo uma multidão anônima e, consequentemente, irresponsável, o sentimento de responsabilidade que sempre controla os indivíduos desaparece completamente. (…) Há muito tempo sustentamos que o cerne do que se chama consciência é a ‘ansiedade social’. (…) A segunda causa, que é o contágio, também intervém (…). Em uma multidão, todo sentimento e ato são contagiosos, e em tal grau que um indivíduo sacrifica prontamente seu interesse pessoal ao interesse coletivo. Esta é uma aptidão muito contrária à sua natureza, e da qual um homem dificilmente é capaz, exceto quando faz parte de uma multidão. (…) Como terceira causa, e de longe a mais importante (…), [é] a sugestionabilidade. (…) tendo perdido completamente sua personalidade consciente, ele obedece a todas as sugestões do operador que privou-o disso, e comete atos em total contradição com seu caráter e hábitos. Sob a influência de uma sugestão, ele empreenderá a realização de certos atos com impetuosidade irresistível. Essa impetuosidade é tanto mais irresistível no caso de multidões do que no sujeito hipnotizado, pelo fato de que, sendo a sugestão a mesma para todos os indivíduos da multidão, ela ganha força por reciprocidade. (...) Ela instantaneamente vai a extremos: uma suspeita, uma vez expressa, transforma-se imediatamente em "evidência incontestável", uma semente de antipatia se torna "ódio furioso". Tendendo a todos os extremos, a massa também só é excitada por estímulos imoderados. Qualquer um que busque movê-la não precisa de calibração lógica em seus argumentos, mas deve pintar com as imagens mais poderosas, exagerar e dizer a mesma coisa repetidamente. Como a massa não tem dúvidas sobre o que é verdadeiro ou falso e está ao mesmo tempo ciente de sua imensa força, ela é tão intolerante quanto aceita a autoridade. (...) O que ele espera de seus heróis é força bruta, até mesmo uma tendência à violência. Ela quer ser dominada e reprimida e temer seu mestre. Basicamente conservadora em tudo, ela tem uma profunda aversão a toda inovação e progresso e uma reverência incomensurável pela tradição.

(Le Bon, p. 10-13, apud Freud, op. cit. p. 24).


Sentimento de invencibilidade, anonimato, irresponsabilidade, sugestibilidade, contágio, impetuosidade, estímulos recíprocos, oscilação entre extremos, aversão à autoridade, gosto por ser objeto de manipulação de um líder, reverência à tradição: disso resulta uma massa em que o indivíduo, ao ser incorporado, perde a personalidade consciente e passa a ser controlado por um “operador”. É uma descrição bastante perfeita do que vemos nas multidões políticas que se reuniram durante a pandemia, contra as medidas sanitárias impostas pelas autoridades. 


A massa é impulsiva e nada faz de premeditado; a massa deseja coisas passionalmente, mas nunca por muito tempo; é incapaz de conceber uma intenção de longo prazo. Não cogita qualquer atraso entre o desejo e a realização da coisa desejada. Tem o senso de onipotência; para o indivíduo na massa, o conceito de impossibilidade cessa, e por causa disso é extraordinariamente sugestionável e crédula, acrítica. A massa pensa em imagens que evocam uma à outra por meio de associação, tal como aparecem ao indivíduo em estados de fantasia, sem nenhuma congruência com a realidade: a massa, em outras palavras, defende ideias antagônicas, “não conhece a dúvida nem a incerteza” e sobretudo não se importa com a verdade: não sabe distinguir uma verdade das suas fantasias (Freud, Cap. II, Le Bon’s portrayal of the mass mind”). 


O médico austríaco e o distinto francês concordam que a razão e o argumento são inúteis para combater palavras e fórmulas repetidas na presença de multidões, as quais passam a ganhar um “poder mágico”, primitivo, numa realidade subjetiva compartilhada em que predomina a vida da imaginação e da ilusão.

E por fim, isto parece importante: 


“A massa é um rebanho dócil, jamais capaz de viver sem um mestre. Tão poderosa é sua sede de obediência que, caso alguém se proponha seu mestre, ela instintivamente se curvará a ele. (...) O líder deve, no entanto, possuir qualidades pessoais que se ajustem à massa. Ele próprio deve estar cativado por uma crença poderosa (em uma ideia) se quiser inspirar crença na massa.”

 

Le Bon extrai a importância dos líderes das ideias que eles defendem fanaticamente, Freud recorda.  O operador da massa se estabelece por meio de um vínculo de prestígio. Para Le Bon,  o prestígio seria o tipo de dominância que um indivíduo, um trabalho ou ideia exerce sobre nós (Freud, op. cit. p. 28). “Algo que paralisa a nossa faculdade crítica e nos preenche com admiração e respeito”. Para Freud, equivaleria dizer: fascinação no estado de hipnose.  Hipnose sendo uma relação de domínio e controle que se estabelece, por diversos fatores combinados, entre duas pessoas. 

Apesar de reconhecer como uma descrição brilhante, Freud faz alguns comentários críticos a Le Bon. Ele acha que nada do que o pensador francês disse é exatamente novo, e para chegar a essa conclusão ele se refere a “diversos poetas”. O psicanalista questiona: qual é o elemento que mantém essas pessoas unidas? Ele revoluciona dizendo que toda instituição é nada mais do que uma massa de pessoas; apenas uma massa mais organizada.


Neste contexto de insatisfação com a teoria de Le Bon, Freud acrescenta outros aspectos que enriquecem a teoria sobre o comportamento de massa e do indivíduo. Um desses aspectos é a libido. Forma-se entre os membros de uma massa, agitando-se e exortando uns aos outros, uma conexão que interfere na libido do indivíduo. Também participar das massas oferece circunstâncias plausíveis nas quais a pulsão sexual pode ter vazão, com a vantagem da liberação dos contrangimentos. Outro aspecto que Freud levanta é o fenômeno da identificação. Uma pessoa pode se identificar com outra, pela injustiça que é feita a ela, ou várias pessoas, ao redor de uma insatisfação. Ao ver de Freud, esses elementos precisamente conferem a “liga” entre pessoas dentro de uma massa.  


Aos comentários do Freud eu acrescentaria duas observações.  O que Freud não explica, primeiramente é a questão da força do indivíduo. Se a força de um indivíduo para se restringir é menor que a força instigante e atrativa emanada da vontade da massa (i. e. vontade geral, como na Revolução Francesa), por que alguns indivíduos ocasionalmente resistem à atração das massas, retendo o bom senso de que não existe tal coisa, a invencibilidade, o repeito à autoridade, ou o benefício da dúvida? Nem Le Bon nem Freud analisam como se explicaria, então, haver indivíduos falando ou exortando contra uma massa de pessoas urgindo em um protesto. 


Mas em uma carta para sua noiva Martha Bernays, de 1883, a psicanalista Jacqueline Rose nos conta Freud escreve: “O povo julga, pensa, espera e trabalha de uma maneira profundamente distinta da nossa”. Ele não se considera parte do povo. Como então Freud teria escapado à essa lógica do povo, expressão da qual ele se vale para expressar o significao de “massa”? Em uma carta a sua irmã em 1881, ele descreve as multidões que via em seu tempo sendo organizadas, como de “uma diferente espécie”, “sinistra”, as quais “não conheciam o significado de medo nem vergonha”. Era o ódio coletivo que estava sendo erguido contra os judeus; e Freud era um deles. 


Dir-se-ia, então, que apenas uma outra massa, ou pertencendo a uma multidão distinta, ainda que organizada em instituições, seria possível resistir ao chamado de outra. Como Freud fazia parte de outra massa, a do judaísmo, rechaçava a massa n4zif4scista que se organizava sob a bandeira nacional de seu país, reclamando ser “o povo”. Ou talvez então o fato de Freud constituir parte de uma instituição própria, a Medicina, ou de um grupo de estudo por ele constituído em uma disciplina nova, pudesse ser uma possível resposta a essa pergunta.


De um modo geral, o que estamos vendo na nossa realidade presente é isso: ou se é contra ou se está a favor, e quem não quer se reduzir a uma massa nem a outra é punido com algum recurso por elas detido, ou excluído dos grupos que se formam no âmbito dessas massas.  As próprias religiões abrigam, muitas vezes sem objeções, iniciativas que apelam a uma vontade geral do povo, a uma massa. Na Igreja Católica, chama-se “sensus fidei”. 


Freud adentra as particularidades de uma instituição, ao tomá-las como um tipo de multidão organizada. Ele analisa a Igreja e o Exército, o que será objeto de minha atenção em um próximo texto. No seu texto senti falta de discernir diferentes tipos de multidões. Penso necessário levantar as diferenças entre multidão, massa (uma multidão organizada por um líder), ochlos (a turba), e povo (uma população dotada de cultura, de uma identidade coletiva própria), o que nem Freud nem Le Bon fazem. 


Mas um segundo aspecto que escapou a Freude Le Bon, talvez, fosse recordar a força do argumento de urgência. O aspecto emergencial confere uma prioridade da vontade geral sobre a vontade do indivíduo, o sentimento de armagedom. A ameaça de sobrevivência, sobre o perigo em que se encontra a vida coletiva, sobre a destruição dos valores, geralmente é emergencial e imediata. O pânico e o medo são fatores indispensáveis, também, para justificar a abdicação de si mesmo que leva à formação das massas e parece-me que os operadores delas atentam muito cuidadosamente a explorar estes elementos, construindo cenários que vão além de uma proposta meramente dogmática.  


O psicanalista prossegue, sem embargo. Analisa também a hipnose o amor, sem distinguir amor de paixão. Para ele, a hipnose seria basicamente uma “massa de dois”. Afirma que a conexão entre amor e hipnose é muito próxima, havendo correspondências óbvias.   Descreve o amor como um fenômeno no qual um indivíduo passa a idealizar e atribuir à pessoa amada características sublimes, ou então que lhe faltam; de maneira que a pessoa amada rapta o ego, e a pessoa amada passa a ser colocada no lugar do seu próprio eu, acima das suas próprias necessidades, acima do amor-próprio. “Only love has had effect as a civilizing factor in the sense of a turning away from egoism towards altruism”. A hipnose é um passo adiante: processo em que a pessoa, esvaziada completamente de si mesma, passa a agir em função das sugestões de outra, sem tomar consciência desse processo, numa sequência de atos compulsivos. 


Se a pessoa reificada resiste, Freud não aborda essa questão, embora também esteja provado, pela experiência, que a hipnose tem efeitos colaterais sobre a pessoa que é feita de objeto, tanto no curto como no longo prazo. 

  O fundador da psicanálise também afirma que seria necessário aprofundar o estudo sobre como a redução do narcisismo pode ser gerada pelo vínculo libidinoso a outras pessoas no movimento de massa. Ele afirma que “o amor próprio apenas esbarra no amor aos outros, no amor aos objetos” (Freud, Op. cit. Cap. VI, Other tasks and areas for Study, p. 54). Da análise do relacionamento entre duas pessoas, ele deriva uma “fórmula de constituição libidinosa da massa” (cf. diagrama do cap. VIII, Being in love and hipnosis”). Para chegar nesta conclusão, ele raciocina o seguinte: 


“Imediatamente, questionar-se-á se a comunidade de interesses, por si só, sem qualquer contribuição libidinal, não conduzirá, por si só, inevitavelmente à tolerância e à consideração pelo outro. (...) Mas o fato é que a experiência demonstrou que, via de regra, onde há cooperação, produzem-se laços libidinais entre camaradas que estendem a relação entre eles para além do que é vantajoso e a fixam ali. (...) Agora, nosso interesse será principalmente saber que tipos de vínculos existem dentro da massa. Até agora, nossa teoria psicanalítica da neurose se preocupou quase exclusivamente com a ligação de tais impulsos amorosos a seus objetos que ainda perseguem objetivos sexuais diretos. Claramente, na massa, tais objetivos sexuais não podem estar em questão. Estamos lidando aqui com impulsos amorosos que, sem serem menos vigorosos em seu efeito, foram, no entanto, desviados de seus objetivos originais (...)”. (Freud, Op. cit. Cap. VI, Outras tarefas e áreas de estudo, p. 54)


Em suma, isto parece importante porque, ao analisar que existem diferentes graus de amor/paixão, ele considera que esse fenômeno pode ser transferido aos vínculos que os indivíduos estabelecem entre si ao se incorporar a uma massa de pessoas.  


Reflito que muito deste estudo está presente na sociedade hoje e evoluiu com o progresso científico dos estudos neurológicos e comportamentais, em experimentos e análises mais específicas. A etologia, a teoria psicanalítica e social muito se desenvolveram, deste então, para analisar esse fenômeno. É o caso, por exemplo, da literatura sobre Echo Chamber, ou a teoria das janelas quebradas, ou do apocalipse da Utopia de Calhoun. Entretanto, considerando a quantidade de pessoas que se reúne nas massas hoje em dia, sabemos que esse este não é um conhecimento necessariamente consolidado para prevenir o comportamento violento ou degenerativo das massas na sociedade.


Ora, a dificuldade em desfazer ou controlar o comportamento das masssas, durante a pandemia, ignorou por completo todas estas características que Le Bon e Freud demonstraram na prática, pela ineficácia de insistir em argumentos racionais, na preponderância da autoridade, na aplicação de penalidades etc. Vimos que o aumento da aplicação de penalidades alimentou a virulência de um discurso e a violência disso decorrente; pior ainda, transmutou o fenômeno de massa em um evento de abolição da ordem legal, de liberação contra uma autoridade opressora.  Uma campanha que visasse ter mínima eficácia deveria ter ofertado uma solução que incluísse essa dimensão dos afetos e um canal satisfatório para converter a pulsão sexual reprimida durante o período de isolamento social, sendo esse, ao ver dos especialistas, a causa da formação das massas.  


O resultado, vemos, é que toda a pulsão sexual reprimida dos indivíduos se tornou um substrato facilmente manipulável por meio de uma liderança, convertida no amor aos companheiros e no amor a um líder – líder com o qual se estabeleceu uma identificação, e que preencheu todos os quesitos para excitar o sentimento de invencibilidade e fantasia da massa.


Ainda não encontramos uma solução, de maneira que se vê a política em diversos lugares se tornou a concorrência entre domínios de influência desses líderes junto a massas altamente susceptíveis. 


Escapou a Freude Le Bon, talvez, recordar a força do argumento de urgência. O aspecto emergencial confere uma prioridade da vontade geral sobre a vontade do indivíduo, o sentimento de armagedom. A ameaça sobre a vida humana, sobre a vida coletiva, sobre a destruição dos valores, geralmente é emergencial e imediata. O pânico e o medo são fatores indispensáveis, também, para justificar a abdicação de si mesmo que leva à formação das massas e parece-me que os operadores delas atentam muito cuidadosamente a explorar estes elementos, construindo cenários que vão além de uma proposta meramente dogmática.  


Os cientistas políticos chamam mais brevemente o fenômeno de “populismo”. Mas existem muitos processos que se estabelecem por meio de relações causais e eventos específicos , muitos deles ocultos, os quais se repetem dentro dessa categoria tão propagada no debate público. Ignorar como funciona, na prática, o populismo, acaba perpetuando o problema de movimentos que desgastam a ordem social, econômica e política. Como reduzir a sugestibilidade e susceptibilidade? Isto passaria por uma política de fortalecimento da personalidade de cada indivíduo e se vê, disto, o impasse, já que cada governo de praxe desenvolve políticas públicas para as massas.  


Pelo contrário, se observarmos mais detidamente como a política vem se organizando em democracias, podemos perceber, como escrevia no princípio, que o sistema político democrático passou a elogiar e a valorizar líderes e partidos políticos capazes de mobilizar e alimentar continuamente grandes massas, como um sinal de êxito, de sucesso eleitoral. O que importa é o número de seguidores e a prontidão com a qual eles atendem ao chamado de seu líder. 


O povo é uma fonte de legitimidade, decerto: consta em nossa Constituição. Mas o povo é uma massa? A massa é, por definição consensual de muitos especialistas, um conjunto de indivíduos que abdicaram da própria consciência, ligados por pulsões que extrapolam a objetividade de um interesse comum, ou a legitimidade de uma causa, manipulados por um operador com o qual desenvolvera uma relação de natureza afetiva, canalizada pela libido.

Outra falha nossa é projetar sobre esse fenômeno de massas um pensamento e juízo que não necessariamente emana das massas. O processo ora em curso sobre tentativa de golpe de Estado, lê-se na denúncia do PGR, afirma categoricamente que o objetivo de um suposto grupo criminoso – composto por indivíduos com perfis e motivações muito distintas –  seria permanecer no cargo, e que para isso teria se valido de uma campanha para deslegitimar o processo eleitoral. 


No entanto, vemos que os estudos sobre as massas se põem de acordo que toda formação de uma massa tem como fundamento anterior a excitação para a violência, a virulência, a reunião de um número suficiente de pessoas para produzir o anonimato, uma dinâmica que exige a conclamação contra autoridades… Fica patente que o objetivo de questionar determinado processo poderia ser substituído por qualquer outro objetivo no centro da comoção pública. Interessa às massas e ao seu líder antes exercitar o sentimento de invencibilidade: a paixão aos companheiros e o ato de destruição de um antagonista. Exercer o gozo de dirigir multidões para alimentar o narcisismo e aumentar o prestígio. O antagonista, tanto melhor escolhido a dedo: alguém que não pudesse adentrar a esfera política onde se produzem os embates, pessoas que devem circunscrever-se ao seu contrito domínio. Uma vez que excedem o próprio domínio, tornam-se vulneráveis. 


O objetivo de permanecer líder de uma massa exige, como Freud e Le Bon elucidaram, que o líder ateste certas características de agressividade e virilidade exigidas pela massa. Manter-se ou não no cargo poderia algo útil, mas relevante pelos maiores instrumentos para continuar a exercer o fascínio sobre a multidão; do mesmo modo que uma prisão e humilhação poderia ser tão ou mais útil que isso. Os pretextos para saciar a libido, em uma multidão, dirigindo suas pulsões aos companheiros, de maneira razoavelmente anônima, sem os constrangimentos e pesos que a vida social impõem, poderiam ser vários, e vimos efetivamente que eles oscilam rápido. Coisas todas muito distintas entre si e que demandam da massa um grau de adesão absoluto, que não exige argumentos, raciocínios ou reflexões aprofundadas.  


Naquelas décadas do início do Século XX, Le Bon e Freud, assim como as óperas, o cinema de Chaplin, redimindo a figura do ditador,  e tantos outros intelectuais perceberam isso. Voltaram-se para tentar conscientizar o povo e a opinião pública dessa faceta empobrecedora das massas. Acreditaram e defenderam o amor e a fraternidade como uma ideia civilizatória, antes do que uma experiência do indivíduo. Ao menos sabemos que esse apelo emancipatório fazendo uso dos meios de comunicação de massa não foram suficientes para debelar o problema.  Também sabemos que o argumento racional e lógico, ou a defesa da legitimidade das instituições, tampouco funcionou, porque é justamente contra isso que se movem essas massas. Como essas respostas não foram suficientes, apenas restou como opção o enfrentamento; e escolhido o enfrentamento, abriu-se o caminho para o conflito. O apaziguamento foi um erro; mas enfrentamento tampouco ofereceu uma resposta compatível com o bem público, induziu a uma guerra. Como ainda não temos a resposta sobre como saciar essas massas do que lhes falta, seguimos observando a deterioração do sossego.  Mas deveríamos ao menos observar o que não funcionou no passado, nem poderia funcionar, para não alastrar o problema, nem perder nosso tempo. 


* Cientista política, poeta e diplomata. www.anapaulaarendt.com . 




 
 
 

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