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O Brasil que habita minha poesia


O Brasil que habita minha poesia

Ana Paula Arendt*

Mensagem em primeira pessoa ao VI Encontro Mundial de Escritores Brasileiros no Exterior, na Fundação Saramago, sob a coordenação de Prof. Else Vieira, Andrea Zamorano e Ronaldo Cagiano, em Lisboa, 21/02/2019.


Agradeço enormemente à Professora Else pela honra de seu convite a participar deste notável encontro de escritores e poetas brasileiros expatriados, uma ideia que me pareceu formidável e que precisa ser prestigiada. Presto minha homenagem e agradecimento ao Exmo. Dr. Ronaldo Cagiano, coordenador desta Mesa sobre Paisagens Literárias e aos ilustres participantes Everardo Norões, Michele Viana e Nara Vidal. Antecipei à Prof. Else e ao amigo e poeta Fred Maia a impossibilidade de estar presente, pois fui convocada a comparecer a evento na cirscunscrição em que fui designada a serviço, Lomé, por ocasião do Dia Mundial da Poesia, data que coincide com o encontro. De maneira que encaminho a reflexão que faria durante a minha participação, algumas palavras que escrevo sobre escrever, espero possam trazer ânimo ou ser de alguma utilidade aos colegas de ofício.

A esse propósito me recordei de um soneto de um poeta brasileiro que acabou de estrear seu primeiro livro, mas nem por isso menos marcante. Ele tem um nome complicado, mas seu pseudônimo é fácil, Hermes Silenus, autor de Impuros Lamentos. Transcrevo:

A Carapuça

Moço letrado que da gente zomba, Desculpe-me este jeito de roceiro: Não sou blasé, não fumo hollybomba, E inda me pesa a falta de dinheiro.

Confesso que sou meio pirangueiro, Mas que farei depois de adulto, pomba?! Muito menos francês que brasileiro, Troco o sarau pelo forró e a arromba.

Mas não é só a ausência de finesse, Nem o sotaque, nem a barba rala Que me tornam um membro d'outra espécie.

Pior é não escrever sobre escrever E não soar como quem nada fala Nuns poemetos difíceis de entender.

G., 20/12/18

Escrever sobre escrever, falar sobre o Brasil que habita minha poesia e falar sobre a própria obra me pareceu uma atividade gloriosa, algo que prescreve, diante do qual torcem o nariz os colegas de bar e de pluma. Contudo a poesia é a ciência da alma. Faz parte também dessa ciência refletir sobre a melhor maneira de captar o diálogo imenso entre o poeta e o mundo, que acontece nos versos e também refletir sobre esse diálogo. Como fazer isso superando a servidão dos desejos egoístas? É preciso dar vazão a um espírito criador que nos animou em todos os tempos, e preencher esses caminhos e possibilidades que vão surgindo, porque isso dá prazer.

Um ego gigante é uma prerrogativa do homem político, dizem, como o terno e a gravata, mas será que ficaria bem em uma mulher? Eu não suponho nada a ser encontrado em minha poesia, que acabo de começar a escrever... Propus à Prof. Else seria mais fácil falar sobre o Brasil que habita a poesia e a escrita dos diplomatas e poetas brasileiros, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Vinicius de Moraes e, até certo ponto diplomática, a Clarice Lispector… Fantasiar sobre o que foram, o que sentiram e apreciar o que transmitiram como herança de si mesmos. Penso que a reflexão seria útil, para sabermos que tipo de Brasil os diplomatas informam e representam, a fim de conhecer para qual Brasil negociam; qual Brasil transparece espontaneamente no solo sagrado em que o poeta e diplomata escreve.

Mas então a querida Professora Else fez uma contra-proposta, para não desgastar os nomes já conhecidos: se prefiro expandir a ideia de pensar sobre o Brasil que habita a minha poesia, que eu escreva então do Brasil que habita a poesia das mulheres diplomatas.

Pesquisei, para ver se o que eu sei é mesmo certo: me dei conta de que ainda não encontrei mulheres poetas e diplomatas no Itamaraty que assim se identifiquem (1). Geralmente no Itamaraty, todo diplomata publica um ou dois livros, pois é uma expectativa que nós correspondamos ao título, esbanjando moderadamente o produto de uma cultura refinada que logramos cultivar. Mas como bem observou um colega, poucos são os que prosseguem escrevendo ano após ano, livro após livro, de modo a se identificar com o vocativo de poeta, ou que tenha sido de tal modo dominado pela paixão de escrever a ponto de se apresentar como escritor. Eu mesma sou recém-chegada, embora ocasionalmente escrevesse: meu primeiro livro de poemas publicados é de 2014. De modo que, talvez até mesmo por ignorância e por ser uma amadora, não consegui me recordar de uma colega diplomata do sexo feminino que tenha prosseguido após o segundo livro, nem que participe de encontros literários, onde encontro outras mulheres poetas belamente esculpidas pelo tempo de dedicação ao ofício.

Eu me recordo, não obstante, de duas colegas contemporâneas que amam poesia e inspiram sensibilidade: a Janaína Lourençato e a Ligia Garofalo. Creio seriam duas excelentes poetas e diplomatas, caso viessem a mergulhar no afazer como autoras. Convidei-as para participar da Itapuan, a revista bilíngue que gostaria de apresentar neste encontro de escritores brasileiros expatriados, <www.anapaulaarendt.com/itapuan>, um espaço para divulgar nossa poesia no mundo francófono e em demais países lusófonos, e estou certa de que se encaminharem algo isso certamente despertará o interesse do leitor. O que espero, outros escritores presentes neste Encontro também possam fazer, encaminhando seus textos para revista.itapuan@gmail.com. A Revista pode ser acessada gratuitamente e seria um prazer divulgar o trabalho dos escritores brasileiros que se encontram nessa mesma condição de saudade do Brasil e dos amigos.

Mas quanto aos colegas diplomatas e poetas que eu admiro, foi com muita surpresa descobri haver uma porção deles que também encontrou na poesia uma resposta para ignorar o cinismo que enseja a burocracia e transmitir algo bom de si. Eu me recordo como o Embaixador de Taunay publicava (e ainda publica) poemas em sua mídia social. Lia vagarosamente linha por linha do que escrevia, era como ver as vagas do mar, e pensar no que há de bom no mundo. Pensei comigo que a poesia pode ter efeitos mais profundos do que simplesmente o de assimilar e analisar algo que foi escrito. Tem um efeito direto sobre o estado de ânimo, sobre a forma como vemos os problemas com que nos deparamos. Ver as pessoas celebrando e festejando os versos também me impressionou. A poesia linda tem efeitos lindos. Isso inspira. Transcrevo um verso fresco de sua autoria:

Infinidade

Raul de Taunay*

O que há de mais belo na vida de um poema é a clareza da infinidade. Sua nobreza não está em dominar um povo, mas em ser seu diapasão, seu ritmo, dinâmica e pulsação. Como não se lembrar que o poema é água pura e regeneradora, a escorrer musicalmente? Tão longe é o exílio, tão pesada é a pena, que o trovão explode na mata, A convulsão dissolve e mata, A pequena folha cai e geme, O sangue ruim escorre e acende, O coração compreende e treme.

(Brazzaville, 21 de fevereiro de 2019)

*Poeta e Embaixador do Brasil junto à República Democrática do Congo.

Leio também todos os sábados a prosa do Davino Sena, também a serviço na África. Ambos são poetas e diplomatas muito difíceis de se classificar e de se explicar, mas fato é que eles reúnem certas forças e formas que aliviam, como se missionários fossem em resgatar a paz num nível mais profundo que o dos acordos e consensos. Fiquei também muito impressionada com a poesia do Fred Maia. Ele não é diplomata, mas noto que com uma frase se pode formular e reformular tudo. Uma frase e aí se disse tudo sobre o que é o Brasil, aí está uma nova perspectiva. Penso fabuloso. Afinal, o escritor que vive fora do País também representa e informa ao seu País: por mais que não lhe tenha sido atribuída formalmente uma função diplomática, nem seja o escritor obrigado a isso, ele exerce o ofício de representar o Brasil, porque é um poeta brasileiro no exterior.

Quanto aos narradores, no Itamaraty, creio, há muitos, mas não domino a ficção literária a ponto de ter uma opinião sobre ela. Seus livros leio e respeito.

Mas tenho certeza que virão poetas e diplomatas mulheres no futuro, brasileiras não sei, espero que sim e sempre honrando nossa Pátria, que talvez leiam e se interessem pelo que uma delas disse quando tudo era mais selvagem e árido, porque era bicho não visto ainda. Não terá sido a primeira carta do passado que escrevi para o futuro, na ausência de alguém a quem me dirigir.

O que dizer então do Brasil que habita a poesia que faço, considerando o universo diplomático que habitamos, para atender ao convite? Talvez fosse mais fácil falar da poesia que habita o Brasil, pois não será o Brasil maior que a minha poesia? Com certeza meu País é maior do que a poesia que eu faço, e faz parte do amor ser grande o suficiente para caber tudo nele. O meu pseudônimo em chinês optei por “Xiao muqin”, que significa “Mãe pequena”. Sou pequenina, na natureza, meio ao universo, a minha poesia é que está dentro do Brasil e do mundo, perdida em alguma estante, num mundo com 7 bilhões de pessoas... Arrisquei escrever um ou outro verso enquanto começava a aprender essa língua, que me pareceu muito sintética e flexível, ensejando formas de pensar muito elegantes e interligadas à natureza. Eu não me importo muito com os meus próprios erros enquanto estou aprendendo uma língua. Às vezes também se acerta. O que tem a ver tentar escrever em chinês com o Brasil? Tudo. O Brasil é um país que está sempre tentando estabelecer o diálogo com todo mundo.

Conto um causo: enviei um poema que arrisquei em latim que se chamava “Civitate Dei” a um conhecedor de latim. Ele me respondeu, todo contente, “amo Santo Agostinho, tudo o que ele disse é verdade. Linhas magníficas”. Daí expliquei: “Não. Fui eu que escrevi. Enviei para você dar uma olhada, porque você sabe latim melhor do que eu”. Então o especialista em latim apontou vários erros, felizmente... Afinal, o meu objetivo não é acertar. Nem penso que acertar seja o objetivo da poesia… A poesia é essa ponte que nos leva a construir coisas do outro lado. Por outro lado, talvez eu esteja fazendo algum progresso em francês, mas meu estudo dessa língua tem sido árduo, embora eu ainda não consiga pensar da mesma maneira que os franceses. Em espanhol, peno para não cometer nenhum erro gramatical, em que pese as diferenças regionais. Mas mesmo tendo sido curados os erros gramaticais, a Circe Maia bem observou que o que escrevo não é ainda espanhol, mas a música de uma outra língua… Gosto muito de arriscar escrever poemas diretamente na língua do interlocutor com quem eu desejo estabelecer um diálogo.

A minha poesia em português vejo como uma atalaia insignificante, de onde eu me posto a observar, sonhar, pensar e rezar. Eu ainda não encontrei, suponho, palavras grandes que repercutiram, como as dos poetas brasileiros mais famosos, em várias línguas, de modo que eu mesma me vejo na posição de me inventar nelas e tentar inventar novas linhas, esperançosa de alguém posteriormente fará uma boa revisão, se vierem a ser publicadas. Nem acho que fiz grandes descobertas poéticas durante os meus estudos, embora quem me incentive queira que eu acredite e insista nisso. É preciso acreditar nisso para seguir adiante. Mas de fato a língua portuguesa penso ser muito rica, o suficiente para qualquer pessoa que passe alguns meses laborando encontre matéria fértil para produzir algo que lhe apeteça. Fui explorando caminhos e territórios linguísticos, livros antigos, ficando um pouco à toa, tentando expandir e melhorar minha capacidade de dizer, e me maravilhei ao reler grandes autores que buscaram fundar o Brasil na literatura. Foi muito agradável reler a carta de Caminha e o Caramuru, de Santa Rita Durão, sem a obrigação de estudá-los, apenas porque eu não tinha nada melhor para fazer. E me deparar com o complexo labirinto do trabalho de Antônio Houaiss nos verbetes, e visitar grandes escritores universais, catando aqui e acolá algumas ideias. Carlos Alberto Nunes é interessante, e comecei a pensar em algo que poderia encantá-lo. Meio a papagaios e mapas e retratos antigos, no subsolo do Itamaraty, havia um almoxarifado... Boa parte dessas leituras que fui fazendo foi nesse ambiente um pouco mágico e misterioso de descobrir o que o Itamaraty guarda.

Eu não vejo, contudo, por que devamos nos orientar por um contexto linear construído historicamente: Ovídio pode me trazer tanto deleite e produzir tantas novas descobertas quanto o Gabriel García Marquez e Anna Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça. Essa é a graça da literatura e da poesia, penso, não segue a mesma lógica que um discurso de conhecimento voltado para o poder de dominar assuntos. Recuso-o, deixo o pequeno poder de lado, e curiosa fico, como cientista política, sobre essa lei que parece aplicar-se ao mundo, de que, quanto menor o poder, tanto mais invariavelmente será exercido. O poeta não deve buscar o poder, mas a beleza das coisas.

Ao tentar me observar, vejo que não escrevo em um estilo fixo, se uma ideia ou musicalidade me ocorre. De fato eu me ponho a escrever, a visitar memórias e a buscar palavras sem muita reflexão sobre o método. Notei que outros autores fizeram o mesmo e deles não reclamaram. Às vezes as palavras surgem, e me ponho a escrevê-las com urgência, e isso pode ser um problema para conciliar, quando há outras atividades paralelas acumuladas. Eu gosto de anotar o que me vem com uma certa sacralidade, pois a poesia é um espaço sagrado para mim. E qual é o poeta que, ao deixar para anotar depois, não se arrependeu e se frustrou por semanas, ao perder o ritmo que queria? Não porque fossem palavras insubstituíveis, mas porque... Todo escritor sabe o porquê. As palavras são como as cerejas: vêm umas atrás das outras. Escrever é como um rio, e a água que está na frente precisa correr no seu leito para vir mais água da fonte. De onde vem a água da fonte? Eu não sei. Dos lençóis subterrâneos? Da chuva? Que por sua vez vem do rio, que vem da fonte?

Hoje se valoriza a poesia popular, que se vale de referências da cultura pop, e há matérias que comemoram a poesia que não apela a uma estética épica [anacrônica] que tradicionalmente goza de maior reconhecimento.

Mas quando, desde a Semana de Arte Moderna, foi a estética de clássicos e de épicos louvada no Brasil? Não me recordo disso. Qual jornalista cultural já leu Os brasileidas, do Carlos Alberto Nunes? Nunca ouvi ninguém falar: “Os brasileidas, de Carlos Alberto Nunes, é a obra de referência da poesia brasileira”. A estética poética no Brasil é muito diversa, mas não me recordo de ver livros que apelam a rimas e que se valem de estruturas formais consagradas, como sonetos, serem colocados em primeiro lugar nos concursos, ao menos hoje, nem os vejo como lançamentos das grandes editoras nas estantes: há uma prelazia da diversidade e iconoclastia do moderno, sobretudo de temas relacionados a minorias políticas e ao que a vanguarda produz, nas premiações e no ambiente cultural brasileiro.

A poesia de época é valorizada apenas no cubículo reservado a ela: os poetas que conformam os grandes nomes da literatura. A eles é permitida a estética épica, e as formas consagradas, sem ser rapidamente encarados como esforço banal, desde que ecoados e resenhados os clássicos. O restante é descartado como farsesco. Portanto uma poeta que se encante em sintetizar não terá muita opção, se não a de me contentar em ler e reler esses poetas no cubículo de sempre.

De modo que me parece que a valorização dos romances sertanejos, dedicados destarte à realidade e dilemas do quotidiano e imaginário do povo, são aqueles devotados aos problemas sociais, inaugurados pela linha de Euclides da Cunha, e das décadas recentes, na obra de Graciliano Ramos, Jorge Amado e Guimarães Rosa. Essa linha segue, a meu ver, inabalada. Que eu saiba, até mesmo a geração de 45, que teria buscado recuperar o rigor da linguagem, manteve em certa medida as roupas do verso moderno, como podemos constatar lendo o formato irregular dos poemas e as temáticas da atualidade, na obra do Carlos Drummond de Andrade. “Morte e vida severina” tem rimas muito assinaladas, mas o próprio João Cabral de Melo Neto dizia que essa era uma obra menor dele, e evidente está a referência ao canto repentista regional típico, do nosso tempo presente.

Passada essa terceira geração do Modernismo, na qual os autores que escreviam desde o Itamaraty desempenharam um protagonismo e projeção notáveis, hoje prosseguem os livros mais vendidos produzindo poesia concreta e versos curtos, em rima branca, com jogo de palavras, significados e ressignificações. O Tropicalismo de escrita acessível e seu molejo é que são a referência; e os filmes brasileiros sérios se dedicam a problemas sociais e históricos, às temáticas da terceira geração. Houve uma reação cultural popular conservadora, muito recente, à bandeira dessa vanguarda, mas até o momento esse movimento ainda está seguindo seu curso incipiente, e ainda me parece cedo para enxergar até onde irá essa reação, rechaçada por muitos, muito embora se note pelos eventos nas livrarias que há iniciativas de transposição de um novo conservadorismo ao universo literário e intelectual.

E esse então é o Brasil que consta na minha poesia, o Brasil que vem sendo retratado e construído na vocação que se instalou desde a Semana de Arte Moderna, de produzir algo nativo e original, de combater os clássicos, diminuir os épicos e abominar referências a mitologias gregas, romanas e alienígenas?

O Brasil está presente em tudo que faço, certamente, porque eu vivo no Brasil, por mais que eu não resida nele. Carrego a minha identidade brasileira junto comigo. Não tem como tirar a minha identidade no final do dia, como os sapatos.

Mas apesar de escrever hoje, suponho que é um Brasil meio antigo que eu carrego junto de mim, o dos antiquários. Aprendi a datilografar aos 12 anos, e eu sou dessa geração dos anos perdidos da década de 1980, que não produziu nenhum avanço estético, só puro exagero, nenhum crescimento, só dívidas. E isso era normal, porque isso era ser brasileiro, gozar da comodidade do fracasso.

Veio o computador, a internet, mas meu entusiasmo se dissipou depois de alguns anos. Tinha de atender a expectativas novas, para as quais eu não fui criada, na qual a nova geração é fluente, sobretudo em imagem e em competição; mas vim de outro tempo e de outro espaço, em que era preciso cultivar uma severa cultura moral para resguardar o mundo da guerra nuclear e da aniquilação completa. Na vida amorosa, veio o acúmulo: ter de conviver com o feminismo supostamente consolidado e reivindicado no mundo imaginário das revistas femininas, mas ao mesmo tempo ter de lidar, na realidade, com as cobranças do século XIX que ainda caracterizam boa parte do Brasil profundo. Eu sou católica praticante. A Igreja católica segue exigindo hoje das mulheres o que exigia no século XIX. Eu não reclamo! Pelo contrário. Apenas me indago como fazer isso hoje.

De todo modo, busco observar na minha poesia um Brasil cheio de contradições para o qual, penso, as mulheres ainda não reorganizaram muito seu papel, nem o que esperam de si mesmas. Muitas somos chamadas a um papel criativo. Raras somos desoneradas de nosso papel doméstico. E queremos ser desoneradas de nosso papel doméstico? Eu busquei atender a esse chamado criativo. Mas eu não quero ser desonerada de meu papel doméstico. Ser mãe ainda é um papel relevante, e qual mulher dispensaria lavar as roupinhas de bebês, esterilizar papinhas, cumprir coisas invisíveis, ver filhos dormindo e admirar seu sono, deixar de viver o que existe de mais humano e essencial para a vida? Nesse mundo em que é possível exercer a minha criatividade como mãe, inventando histórias, passeando e vendo passarinhos para os filhos, brincando e ouvindo música, fazendo bolos, inventando versos, é onde basicamente tenho escrito e onde me isolo, o lugar da mulher comum, ainda que venham as tendências tentar a me retirar dele sob uma justificativa espúria qualquer.

É um Brasil doméstico que eu carrego, coisas que sei que as mães brasileiras fazem, em alguma medida, ou deveriam fazer. Mas me parece que seria inadequado fazer disso algum motivo para o louvor. Trago o Brasil comigo, no seu nível do micro-universo reservado às mulheres?

Eu não ousaria me comparar às grandes poetas que admiro, que já falaram de doces e de passarinhos com melhor maestria. Não seria novidade. E observo que algo me escapa: como jamais encontrar nos poemas das grandes poetas brasileiras algo muito obscuro, considerando que a vida de uma mulher, mesmo no micro-universo reservado a ela, é algo necessariamente difícil? O marido de Cecília Meireles se suicidou e ela teve que criar sua filha sozinha. Mas os poemas, ao menos os que ficaram, foram versos sempre pura e lindamente destilados, de uma lírica sem defeitos e sem desafetos. Eu amo sem dúvida nossas poetas que carregam no peito uma realidade brasileira como viveram, ou quiseram viver, mas fico pensativa sobre o que as levou a entender a poesia como um espaço sublimado de uma realidade cheia de conflitos.

Já hoje as poetas que vejo de nosso tempo, que exigem e obtêm imediato reconhecimento, escancaram o contrário. Uma realidade brasileira negativa, cheia de ônus, águas perturbadas a valer. Eu tampouco nego minhas águas. Mas algo me leva a hesitar em fazer com que um juízo da realidade seja um motivo para admirar um verso. Se um verso é bom, não é porque ele conseguiu convencer o leitor de que trouxe uma alegação válida a ser universalmente aceita, nem provou um sentimento indiscutível. Mas porque conseguiu dizer algo que nos tocou de modo profundo.

Gosto de ser ingênua, porque talvez ser poeta seja ser em alguma medida alguém ingênuo, aberto a esperar que as coisas saiam de um modo diferente do pior esperado. Busco fazer uma poesia que me agrade, que venha a tocar profundamente a meus filhos quando eu não puder atender ao chamado deles, que partilhem minhas memórias, e creio coloquei em alguns versos o que precisava de algum modo expressar, mas que não poderia ser feito de outra forma. É difícil dizer se o que eu trouxe toca de um modo profundo, porque isso depende exclusivamente de quem lê. Esse estágio de leitura e análise não pertence ao poeta. Mas todo poeta sabe quando uma linha foi escrita para obter aprovação, e quando uma linha, por mais mal disposta seja, lhe tocou profundamente.

E o que é o Brasil profundo? O que há de diferente em nós, brasileiros, que nos toca? Deveríamos pensar nisso. Isso me importa indagar, e penso que para os colegas escritores brasileiros, também importa, porque queremos levar o Brasil adiante e nos orgulhar dele... E se não temos ainda o Brasil que queremos, precisamos inventá-lo.

Para sermos admitidos no Instituto Rio Branco devemos antes de mais nada estudá-lo. Saber de cor o que é o Brasil na visão das grandes autoridades no assunto, de um modo analítico: Sergio Buarque de Hollanda, Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre e Caio Prado Junior. Portanto o brasileiro é o homem cordial e a sua harmonia advém de uma favorável junção das culturas e das qualidades dos povos europeus, africanos e indígenas. Posteriormente no povo brasileiro incluídos os imigrantes, conciliados sob um estilo próprio de vida, que se relacionam por meio de códigos sociais amenizados pelo parentesco, numa terra cheia de riquezas. Aprendemos que o Brasil dispõe de uma economia em desenvolvimento, lugar de muitos defeitos, mas de grande complexidade e de alvissareiras perspectivas...

Só que cada tempo e contexto vão definindo quais são as diferenças que vamos exaltar para nos apresentar de um modo especial, no contexto popular. As nossas especialidades, o carnaval, o samba e o futebol, se somam à evidente e alegre beleza feminina da brasileira, nos estereótipos que pouco evitamos, e também à nossa culinária e paisagens sui generis e diversas. Houve um tempo em que se falava em Brasil e se evocava de imediato as figuras de Carmem Miranda, Grande Otelo, a bossa nova, em seu auge, a Garota de Ipanema... Em outros, a ousadia de Ayrton Senna e os craques dos esportes. Agora somos também o país de onde veio a bronzeada e virtuosa Gisele Bündchen e a craque Marta. Até o Presidente da FIFA agora fala de mulheres jogadoras em suas visitas e palestras na África. E estamos em manchetes do mundo inteiro graças ao novo Presidente, e estivemos também sob holofotes durante o auge de Lula, cuja história foi oferecida ao mundo como um espetáculo de ópera do início a um alegado fim...

Mas eis que brasileiros são vistos como algo exótico não apenas por esta ou aquela figura política recente, mas penso também que de um modo geral, pelo menor conhecimento dos estrangeiros sobre o nosso País. Empresto uma citação de uma poeta, Embaixatriz Carmem Lícia Palazzo, que aliás publica regularmente, em sua mídia social, versos sobre suas viagens, a quem tenho incentivado publique seu primeiro livro de poemas. Falando do jesuíta Matteo Ricci e de sua experiência na China, ela que é docente e acadêmica recordou um trecho de Mondher Kilani, de seu livro “Sur l’invention de l’autre”: “O exotismo não é a reconfiguração do Outro a partir do mesmo, pois isto seria certamente a sua perda, mas o reconhecimento fascinado de sua distância”.

Que percebemos no Brasil ao nos distanciar dele, no exterior? O brasileiro, parece-me, é aquele ser que se destoa por uma conduta alegre e barulhenta, ao mesmo tempo que sustenta uma ambição comedida, limitada por um pessimismo que contrasta com a fábula que aprendemos da longa extensão e das abundantes riquezas. A esse propósito, o Lévi-Strauss discorreu sobre o nosso estado de espírito característico, sobre a nossa melancolia coletiva. Mas sabemos, brasileiros que somos, que faltou a Lévi-Strauss captar um otimismo que guardamos intacto nas nossas considerações que deixamos de expressar, mas que orientam a nossa conduta persistente. Isso talvez fascine e mantenha o interesse do outro sobre a maneira ambígua como exercemos a nossa brasilidade.

Contudo como é possível que sejamos reconhecidos no exterior por uma certa efusividade, ao mesmo tempo que nos distinguem pela melancolia, sendo esses dois aspectos tão opostos? O próprio Vinicius se apresentava como um poeta que se deixou consumir pela paixão, apesar das melodias melancólicas. Talvez ambas características tenham origem numa alma passional, em almejar uma certa originalidade, ainda que fugidia, ao invés de nos apresentar por meio de algum traço característico, por meio de uma coleção de tradições, como fazem os alemães e franceses na sua expressão poética característica. E quando frustrados em nosso intuito, pois ninguém pode ser original para sempre, talvez se siga a isso a melancolia, um estado de espírito necessariamente negativo subsequente, diante da impossibilidade lógica de concretizar tudo que desejamos. Mas a melancolia me parece ser apenas uma parte observável do que somos, a parte inferior da equação de uma onda que se propaga adiante tanto por picos de otimismo, quanto pela decepção de nossas expectativas. A luz é assim, uma partícula rumando adiante pelo universo no traçado de uma onda, em velocidade inacreditável. Talvez também assim se mova a poesia e a alma dos brasileiros.

Nós estamos olhando para o Brasil de uma forma analítica, mas será que para a poesia apreender com êxito o Brasil, não deveríamos olhar para ele sob a estrita ordem dos sentimentos?

E como não recordar a figura do malandro, tão bem descrita pelo Roberto Damatta, como um ideal heróico arquetipicamente brasileiro que paira sobre a nossa coletividade? É o mito do brasileiro que conseguiu driblar a melancolia e realizar o que pretendia, dizendo o que não disse, deixando de dizer o que disse, dando a volta pelos fundos ou encontrando soluções novas, não necessariamente pré-estipuladas, mas sempre afetivas. Escrevi um breve livro de versos, com o qual não fiquei satisfeita, sobre a menina e o malandro, a combinação brasileira que o Chico Buarque tão bem captou. Hoje em dia não há tantos malandros, ou talvez se escondam? Foi um trabalho difícil que não me agradou, mas talvez alguém que venha não apenas a escrever, mas também pesquisar em profundidade, consiga resgatar a importância dessa figura para a auto-estima do brasileiro.

Fato é também que deixamos que outras pessoas digam quem somos. Brasileiros, somos muito maleáveis e susceptíveis ao que pensa o outro a respeito de nós mesmos. De modo que acredito que existe um Brasil que nós formulamos para os outros, um país que busca se distinguir acentuando seus aspectos e disso colhendo como resultado uma qualidade exótica, com a finalística utilitária, de ao simulá-lo, vendê-lo; e um Brasil que discernimos e que existe para nós mesmos. Deste Brasil estamos muito seguros, decorre espontaneamente do que somos, se mostra na nossa poesia, é cheio de falhas e sobre ele amamos reclamar conjuntamente. É o Brasil de que o Ariano Suassuna achou graça, que não dá muita importância para ambiguidades. As coisas que as pessoas pensam nas varandas das casas, que o Carlos Drummond de Andrade bem captou...

Em certos poemas fui captando o que via, o que sentia, desde esse ponto de vista da moça brasileira na varanda. Em outros, tentei criar sintetizando metais num verso que ainda não existe, fui ler livros de Jung para tentar descobrir a minha alma brasileira.

A meu ver, lamentavelmente, nos falta ainda um grande pensador, ou grande pensadora, nesse domínio psicológico de Freud, Jung, Lacan, gregos, latinos... Todos eles se debruçaram sobre o ser humano, mas inseridos desde um ponto de vista de civilizações outras. Fico imaginando um brasileiro que fundasse uma linha de psicanálise fundamentada na caótica razão de ser sob 40 graus, sem basear sua obra sobre referências das grandes escolas, que inventasse algo novo. Com certeza o luxo das plumas, o brilho das lantejoulas e o ar condicionado desempenhariam um papel motivador mais importante que o estômago e o sexo, e o complexo não seria o de desposar a mãe, mas deixar de enxergar, na sua mulher, Maria.

Junto a esse Brasil que formulamos para nós mesmos, acredito haver nele algo do que nós nos orgulhamos, apesar de muito recôndito, numa localidade de muito difícil acesso na alma brasileira, difícil de apreender e de se deixar definir. Tenho sonhado em buscar de algum modo me dedicar a essa dignidade humana que nos sobra depois do pior, ainda que nada de particular ou extraordinário haja em ser assim brasileiro, e me parece que talvez latente enquanto escrevo esteja a convicção de a dignidade humana, para ser completa, precisa ter uma certa característica brasileira de sobrevivência. Temos uma contribuição a dar para o mundo, ainda que seja a nossa alegria, a nossa melancolia, o nosso otimismo oculto, a nossa amizade. Penso perfeitamente factível supor que a literatura mundial não estará completa sem uma obra brasileira que paire no ar, observando aspectos que escaparam ao esforço dos grandes escritores.

Eu enxergo algo no orgulho que temos de Machado de Assis. Quem se importa se ele foi traduzido ou não para a Biblioteca em Washington? Ele é Machado de Assis, e isso nos basta. Coroou a ironia, o ceticismos com que apreciamos algo estrangeiro depois que se esvai a novidade... A autossuficiência em aceitar o que aprouver, isso é coisa do Brasil, são virtudes de sobrevivência. Há uma certa brasilidade no respeito amável com que falamos de nossos juristas de grande prestígio, desde Joaquim Nabuco e Rui Barbosa, das nossas águias de Haia, há algo quixotesco em como nos satisfazemos conosco. Hoje o jurista Cançado Trindade, juiz da Corte Internacional de Justiça é a nossa grande referência. E, por que não? Também noto uma expectativa implícita de sermos donos senão da melhor diplomacia do mundo, da diplomacia mais confiante de si mesma, responsável pela ausência de guerra em nosso continente durante séculos, capaz de assumir qualquer erro, dispondo-se a revirá-lo, consertá-lo e, na impossibilidade disso, postergar litígios. Nós elegemos um diretor da Organização Mundial de Comércio, dispondo apenas de 1% de participação no comercio mundial; resolvemos muitas crises e somos pentacampeões no futebol de campo e, ainda, heptacampeões no futsal. Por que não conseguiríamos realizar grandes feitos na literatura mundial, se nos decidirmos a isso?

A figura do Zé Carioca talvez tenha sido a resposta a esse arquétipo coletivo, representou muito bem a elegância com que gosta de se apresentar o brasileiro, em dizer o passo das próprias coisas, em diminuir a relevância dos tempos de cólera. Falamos de imperialismo e rechaçamos prontamente o que vemos de nós transparecidos no olhar do outro... Mas será que o outro não captou um aspecto nosso que, para nós, pode ser itinerante e invisível, mas que aos olhos dele e, até certo ponto, verdadeiro? De outro modo, porque encontraria em nós ressonância, ainda que negativa? Por que evitar a possibilidade de integração ao mundo, assumindo o modo como ele nos qualifica, quando ele vira os olhos para nós?

Vejamos o Breviário do Brasil, da Agustina Luís-Bessa. O Estadão publicou em 2017 a seguinte notícia sobre o livro, resultado de impressões da autora registradas ao longo de uma viagem pelo País, patrocinada pelo Centro Nacional de Cultura, de Portugal. Escreve o jornalista que, “dado o caráter diplomático da visita, a comitiva era sempre recebida com pompa por autoridades locais, o que conferiu uma marca de solenidade ao périplo da portuguesa”; que “o Brasil que se descortina diante dos olhos de Bessa-Luís é revelado ao leitor com muita sutileza, através, principalmente, das referências da literatura brasileira (...) e da história, sempre compreendida por ela como uma extensão da lusitana”. E ainda nos conta que, “como ocorre nos livros do gênero, as impressões de Bessa-Luís são parciais, chegando a incorrer em indesejáveis exotismos”. Talvez o jornalista tenha trazido não apenas elogios à iniciativa, mas também estas críticas que reproduzo, pela notável autora portuguesa ter dito do Brasil que “(...) essa democracia galhofeira e artesanal julga que abolir distinções é criar rasgos de comportamento”.

Ou talvez simplesmente a crítica do jornalista buscasse relativizar o mérito de suas conclusões, talvez tenha se sentido obrigado a encontrar algum porém e adversatividade para poder elogiá-la, pois é natural da presunção de muitos homens e mulheres o direito de encontrar defeitos quando o assunto é algo no qual se julgam mestres. Mas me parece que, sim, é possível encontrar e compreender o Brasil mesmo desde um ponto de vista diplomático e estrangeiro, por que não? Será possível que um visitante, ainda que em ilustre comitiva, não irá de imediato perceber como abundam pessoas negras e pardas nas ruas, e faltam nos salões e repartições públicas? E isso não será uma característica verdadeira sobre o Brasil de hoje? E não falamos e escrevemos em português, não herdamos habilidades literárias do aprendizado que veio de Portugal? Que mal haveria reconhecer que estendemos o que se começou lá, a despeito de todas as transformações operadas em solo nacional terem produzido algo novo e independente? Afinal, quando terá passado o tempo de o Brasil se autoafirmar, como o fez quando deixou de ser colônia, e se quando voltará para Portugal como um parceiro que poderá nos dizer, com grande eficiência, as diferenças que poderemos desenvolver em nós mesmos? E quem conhecerá plenamente tudo o que somos? O máximo que qualquer escritor pode fazer é arriscar dizer o que pensa. Mas eis que se compromete pela raiz um vínculo que poderia se iniciar entre o leitor e a autora, que poderia abrir caminho para um mundo de coisas extremamente novas e satisfatórias do universo luso, reconciliar mundos, pois depois de cada crítica vem o tempo de projetar características boas.

Ou talvez tenha o efeito contrário, no limite? A crítica me levou a querer conhecer mais a obra de Luís-Bessa. Também a repulsa e indiferença à nossa herança dos antigos escritos, sobretudo lusos, me anima a acolhê-los no seio. Como entender o esforço vocabular a que me dedico de outra forma? Gosto do ânimo de Cecília Meireles com que defende o arrebique das palavras novas, e imersão em textos antigos portugueses me fazem sentir orgulho da língua que mantemos em comum. Uma leitora me reclamou jocosamente de ter realizado muitas consultas ao dicionário e ainda assim não ter entendido um livro meu mais recente. Ainda bem, porque era uma Senhora, e se tratava de um escrito um pouco erótico. Lembrou-me ela de Bentinho, o personagem de Machado de Assis: começa elogiando a jovialidade de Capitu, mas porque excluía a hipótese de se relacionar com mulheres que o obrigavam a buscas no dicionário. A seu ver portadoras de um defeito, querer ser almas mais velhas do que efetivamente são... Mas a jovialidade e os braços de Capitu não trouxeram melhor destino à personagem, e duvido que tragam para as mulheres, de um modo geral. Não temos escapatória sendo mulheres, de todo modo. Então ao menos vou me dedicar ao que gosto, garimpar coisas antigas que me parecem ter valor, é o que me parece melhor a se fazer, desenvolver as paixões que temos.

Mas explico meu gosto por palavras fora de uso. Quando uso a palavra “afremosentar” em um poema qualquer, não é porque não tenha encontrado melhor rima, nem porque quisesse parecer mais velha e me ver dispensada da obrigação de obter a aprovação dos homens recorrendo à beleza... Mas porque estava lendo sobre a Perfeição da Vida Monástica e da Vida Solitária, de S. Lourenço Justiniano, escrito em 1531, traduzido pela infanta D. Catharina e lá, achei o termo “Christo afremosentado”, e achei linda a imagem. Aliás, livro que a gente só consegue acessar com facilidade na biblioteca de Harvard, por incrível que pareça, apesar de ser em português. Soube que os Reais Gabinetes irão agora finalmente digitalizar seus acervos. Gosto muito dessas bibliotecas que eram produzidas e incentivadas pelos próprios monarcas e pelas cortes, de excelente qualidade, Camões é parte delas. Elizabeth II, por exemplo, traduziu a Consolação da Filosofia, de Boécio. Pareceu-me de excelente bom gosto. Eis que nesses repositórios de época estão as sementes do que seria um pensamento de ampliar fronteiras ao desconhecido, coisa que me parece, muito interessa ao espírito da poesia.

E que dizer então do Brasil, depois desse garimpo de coisas antigas? Eu ainda não publiquei ideias sobre o Brasil, sobre o País nos seus detalhes suponho, nas suas generalizações, nas suas possíveis narrativas, apesar de ter escrito dois ou três romances. Talvez algum dia volte a trabalhar e eventualmente tentar publicá-los. Não fiquei satisfeita, porque o resultado foi mais do mesmo. Daí busquei escrever algo na poesia. Por outro lado, não sei se alguma ideia do Brasil está definida nos meus versos. Existe um Brasil ficcional, que eu tentei abordar, e sob o ponto de vista feminino básico e, portanto, sem muito mistério, mulher-em-busca-de-um-homem. Talvez haja um pouco da loucura do Brasil num rascunho que fiz da Criação de Pindorama, uma tentativa que passa longe de atingir seu propósito. Mas de resto, a poesia que escrevo ainda está sendo construída, é confessional, acho, e portanto ainda me parece cedo demais para falar do Brasil que tenho confessado e sairá retratado nela. É lógico que tenho, como todo poeta, aquela imposição de me dizer algo em versos, quando me apresentam algo que lhes choca no Brasil, e de encontrar linhas para reagir a uma realidade brasileira. Quantos de nós já não fizemos isso? Às vezes até me pedem versos para aliviar a realidade que leem. Mas o que sairá disso? Não digo quais são os fatos que me oprimem nas orações que estou escrevendo. Sem embargo certamente maior parte deles são brasileiros.

O Saint-John Perse, francês, acredita em uma missão da poesia de tornar o mundo um lugar mais agradável, mais tolerável, de aliviar o sofrimento humano. Talvez eu concorde, apesar de encaminhar esta reflexão a um encontro de escritores numa Fundação que leva o nome de um ilustre português que se caracterizou, sobretudo, por um certo ceticismo quanto ao propósito da existência.

E à luz do que precede não sei se é sustentável, um casamento entre diplomacia e literatura, no qual a literatura se submeta à diplomacia, que tem em comum também essa atividade necessária de mediar conflitos e dissipar angústias, antes que alcancem a agressão. Sei que existe uma expectativa de seguir o modelo dos grandes poetas e diplomatas, de mantê-las ambas as vocações lado a lado, de aceitar ser necessária e buscar a repercussão, de simular com roupagens nacionais o que somos, para vender o Brasil lá fora. E eu não sei se pertenceria a essa casta, ciente de si e de seu papel, a ponto de se permitir tornar-se algo raro. Realmente sigo totalmente disponível e me comportando como o brasileiro médio, jogando conversa fora sobre política e estou escrevendo porque escrevo, e nem tudo que escrevo, me parece, é bom, nem tudo é para ser avaliado.

Acaso li Mallarmé? Alguma coisa... Li que o Mallarmé, muito bem sucedido em sua saga de trazer grandes nomes ao seu convívio, e também de produzir belas páginas, teria queimado vários de seus escritos, antes de ir para o leito de morte, a fim de que ninguém visse os piores, e de se eternizar como um grande nome... Acho isso uma loucura. Escrever boa poesia demanda uma sinceridade no peito e se deixar perscrutar por si mesmo. As pessoas vão selecionar naturalmente o que for melhor, ou o que porventura prestar para alguma coisa, se é que vão ler e selecionar. De modo que penso que essa preocupação de posteridade é boa, para selecionar rumos, para conformar um lecionário nacional que cada país compõe para se constituir e se dizer quotidianamente... Mas isso cada Academia irá cuidadosamente seguir construindo escritos e dilacerando ligeiramente, e novamente recompondo e ajustando à época, como os tijolos que vão se colocando um a um até se chegar a algo que se possa dizer: isto é a literatura brasileira. Mas não penso que essa deveria se tornar uma preocupação do escritor. Poucos têm cacife efetivamente em sua obra e investimentos suficientes em personalidade para se dar ao luxo de ser tão profissionais quanto Mallarmé... Não me parece ficar bem esta roupa em quem venha a assimilar uma certa brasilidade em seus escritos.

Não obstante: penso que se vamos nos preocupar com isso, sob a justificativa de alcançar o que ainda não foi alcançado, nada é mais legítimo que cada um de nós queira fazer o melhor para produzir uma grande obra inesquecível. Se vamos nos dar ao trabalho de sonhar, vamos sonhar grande. Sonhar faz parte de ser escritor por profissão, a meu ver uma das poucas vias de se permanecer saudável no ofício. Mas talvez justamente nesse esforço devêssemos nos preocupar menos em rotular e dizer o que é um livro desejável, e mais em desfrutar dele. Talvez os jornalistas e críticos pudessem contribuir para isso, somando-se a um escopo coletivo, dando mais espaço à voz do autor que a si mesmos e às suas ponderações definitivas. Talvez igualmente os autores brasileiros possam deixar menos espaço e criar menos expectativas de que o jornalista ou crítico se aproprie de sua obra, para divulgá-la.

Poderíamos imaginar poucas coisas mais contraproducentes que as matérias congratulatórias, com vistas a tirar conclusões que o público leitor deveria tirar por si mesmo. Com a finalidade de divulgação eu concordo, pois é preciso transpor o obstáculo do desconhecimento e da falta de familiaridade para estabelecer uma comunicação com o leitor, construir a relevância e o sentido do que se escreve, suponho. Mas não poderíamos construir algo melhor que isso? Eu sinto que em todo encontro de escritores, os quais bem sabem do trabalho e esforço que demanda publicar um livro, existe latente este propósito conjunto, com vistas a melhorar as circunstâncias nas quais escrevemos. Ainda que por solidariedade, é possível proporcionar melhores paisagens à nossa escrita. Muito melhor que nos entregarmos à roleta do mundo que nos deseja apenas em função do que comercializa é participar de encontros.

E que dizer então de nosso trabalho, nos registros que fazemos uns dos outros? Conto que li um artigo técnico assim, numa de minhas páginas favoritas: “[1945] é também a data do I Congresso Brasileiro de Escritores, que ocorre em São Paulo e atesta a maturidade do sistema literário brasileiro. (...) Nas revistas e jornais, a crônica vive fase brilhante ». Trecho da Enciclopédia Itaú Cultural, que tem sido uma referência para encontrar informações.

Fiquei pensando se essa seria a melhor forma de preservar e divulgar a literatura brasileira recente. Em primeiro lugar, para quem estamos dizendo isso? Se está escrito em português, é para nós mesmos, porque americanos, ingleses, franceses e espanhóis raramente leem em português. Ao expor o valor de uma obra e de uma era escondendo quão ingrato foi o esforço de produzi-la, por um lado deprivaremos o leitor do gosto de ler sobre os detalhes da tragédia alheia. Em segundo lugar, tornaremos o intuito inexequível, porque novos autores de pronto terão construído expectativas irreais sobre a tarefa: não vão encontrar o respaldo que esperavam e disso deduzirá que melhor seria desistir. Se vendemos como “anos dourados” um período no qual grandes escritores eram acusados, acossados e até mesmo demitidos, em que escrever era uma profissão de risco, que dizer então da fase espinhosa da indiferença do público que enfrenta a poesia de hoje?

E por que dizer de nosso triunfo para nós mesmos e nos louvar em registro? E em relação a quê? A geração de 45 alcançou maior maturidade que os sermões de Padre Antônio Vieira, obteve melhor resultado que Gregório de Matos, que as Cartas Chilenas..? E por muito tempo as produções dessa própria geração de 45 não foram divulgadas nem conhecidas, antes dos medalhões recebidos, de modo que relatar uma realidade de perfeição inequívoca para legitimá-la não me parece produzir um efeito favorável de interesse no leitor e autor, interesse indispensável para produzir avanços e tirar os escritores da inércia.

Sem dúvida aquele tempo de desdém ostensivo foi superado, e o resultado para a nossa paisagem literária foi vivacidade e desenvolvimento poético, a pluralidade foi colhida nas décadas subsequentes. Mas cultivar o Brasil que temos para nós mesmos, a meu ver, não é a mesma coisa que simulá-lo. Para encontrar essas conclusões de que uma fase atestou a maturidade, ou alcançou algum resultado definitivo, será preciso entrar no mérito e trazer, ainda que resumidamente ao leitor, a evidência disso, e não simplesmente repetir os grandes nomes como algo autossuficiente, cultivando uma cultura literária ao redor de egos. Ao menos me parece que procedem de maneira diversa e mais exitosa as autoridades e críticos literários que atendem à vocação de garimpar e encontrar achados na rica produção de seus compatriotas, fazendo desses trabalhos anteriores uma valiosa matéria-prima a ser trabalhada pelas gerações seguintes.

Faria sentido dizer que a obra de Shakespeare se caracteriza por uma grande maturidade? Acaso Shakespeare em algum momento poderia ser imaturo? Não faria o menor sentido. Mais sentido faria expressar o gosto, simplesmente: “Shakespeare é maravilhoso”. “Amo Shakespeare”. E citar, transcrever os trechos e textos que provam isso. Mais simples, porém sincero. A poesia e a literatura que fazemos para nós mesmos têm de ser apresentadas com os aspectos particulares que correspondam ao tempo em que foram preparadas, suas qualidades que nos agradem, que nos digam algo, que nos inspirem. Assim maior chance de que produzam a surpresa que queremos partilhar com os olhos dos outros.

E quanto a encontrar vínculos e comparações com a literatura estrangeira? Talvez o Brasil tenha o enorme potencial inspirativo, não apenas pelas praias que sua menção evoca, nem só pelas suas qualidades exóticas que decorrem da identidade caleidoscópica que o Brasil advoga perante o mundo, mas porque encontramos na nossa cultura uma sensibilidade ao outro muito fina. Convidamos com facilidade e somos convidativos. Contudo nos valorizamos talvez pelas razões erradas. Parece-me que melhor aproveitaríamos o tempo ficando satisfeitos com o que fizemos, usando e dizendo do seu resultado, contando de um ou outro achado que nos pareceu singular, sem necessariamente comprovar que algo em nossa obra guarda correspondência com a obra de um outro grande autor, ou que faz sentido por estar inserida em um curso de acontecimentos relevantes e conclusivos, distante no tempo e no espaço do leitor. Pois a satisfação será muito maior sinal de valor intrínseco da obra, e tanto maior quanto mais presente na realidade de quem lê. Suponho desse gosto melhor sairá sua tradução e, enfim, poderá trazer melhores frutos, suponho.

Isso me faz pensar sobre o problema de prevalência que nos aflige: corre o jornalista a ler e a reconhecer o que o grande escritor estrangeiro, que supostamente atingiu uma maioridade opinativa, recomenda e julga ser relevante na poesia brasileira; e por sua vez, a celebridade estrangeira que atende ao pedido gosta de ler no espelho sua opinião prevalecida e reproduzida. Foi o caso, por exemplo, da geometria de Octavio Paz a respeito de nosso Drummond, ou de Borges, sobre Neruda. Grandes referências também se equivocam, mas no Brasil, grandes nomes estão sempre certos e não podem ser questionados… A geometria dos grandes autores aqui parece ter dificuldades para produzir seu propósito de propulsão e contraste.

Como evitar que o outro prevaleça e nos diga o que é a verdade, de maneira a prevenir uma política da literatura, uma política da poética, um contrassenso da liberdade que deve pautar a criação poética e a sua leitura? Essa abordagem particular de atribuir o heróico papel de civilizador ao outro, sobretudo por parte das editoras, ao invés de perscrutar a obra do autor, descobrir potenciais e tentar encontrar finalidade intrínseca e sentido em si mesma, não me parece conduzir a uma literatura que valorize a nossa cultura, porque dificilmente o estrangeiro encontrará razões para enxergar nas nossas particularidades algo a ser defendido ou celebrado, salvo tenha pretensões de vir ao Brasil, ou de a ele se dedicar como brasilianista.

Paradoxalmente, parece ser inevitável buscar matéria-prima nos olhares que se voltam para as obras universais, e pensar pelos seus parâmetros, em uma fase de confecção, porque atingiram resultados que não atingimos ainda no Brasil. Acho importante observar o que pode ser considerado um achado poético, e encontrar caminhos de construção para inspirar e montar uma poética própria, que não seja exclusivamente baseada nas características pessoais e da história de vida do poeta, como habitualmente se tentam produzir celebridades literárias recentemente, mas na obra em si e nos seus atributos que lhe tornam especial e interessante.

No Brasil teremos rumado excessivamente a enxergar pessoas e trajetos, criando personalidades, ao invés de buscar um conteúdo que seja incorporável ao acervo de um povo? Penso que sim, porque talvez nos falte termos no Brasil uma grande obra mundial reconhecida – Portugal tem Os lusíadas, a Inglaterra tem Shakespeare e Milton, a Alemanha tem Fausto, a Argentina tem Borges, Chile, Neruda e Mistral, a Espanha, Cervantes, a Rússia tem Dostoievsky, a Noruega, Ibsen, Colômbia, Garcia Marquez, a República Tcheca, Kafka, para não falar nos irlandeses... Estamos ainda em busca de encontrar uma obra que possa produzir um diálogo universal, ou pelo menos ocidental, com o leitor, de um modo permanente.

Talvez Paulo Coelho tenha conseguido isso, ainda que momentaneamente, dado que nos festivais literários, ele é o primeiro nome a ser lembrado pelos leitores, críticos e escritores estrangeiros, o que causa estranheza, suponho, naqueles brasileiros que conhecem em maior profundidade nossa literatura, e que esperam uma resposta de reconhecimento a um autor brasileiro que seja mais próxima à erudição de Machado, à pureza de Bilac, ao ensimesmamento de Drummond. Fama não corresponde necessariamente a êxito, é verdade. Mas me parece de todo modo melhor que ficarmos repetindo comparações com os grandes autores estrangeiros como referência do que é bom, e ao mesmo tempo guardando a sete chaves, conosco, os nossos autores, supondo de modo pessimista que escrita tão ressonante em português talvez apenas possa ser preservada intacta na própria língua.

É lógico que uma oportunidade de produzir uma obra prima que viesse a servir de referência para localizar o Brasil no mapa, seus aspectos e sua cultura, teria produzido um salto de diplomacia cultural inestimável, e creio foi o que tentou Vinicius, à sua maneira, e conseguiu, com a música da Garota de Ipanema, com pouco ou nenhum apoio. Pelo contrário, sob o forte peso das críticas. Até hoje ele é pouco reconhecido. Alguns dizem que não é a mesma coisa, e que um só poema, ainda que musicado de modo brilhante, não se pode comparar ao destaque de uma obra-prima que desperte emoções mais complexas e uma visão panorâmica do Brasil. Eu digo isto com muita cautela, pois quando li o mesmo dito por Octavio Paz, de que é preciso buscar inspiração em obras universais, soou-me uma traição à própria originalidade e à riqueza de sua cultura mexicana, um motivo que não aquele característico de sua cultura, de seu país. Logicamente se pode beber de ambos, e ser seletivo quanto a ambos, o universal e o particular.

Quais aspectos do Brasil poderiam ser favorecidos na literatura brasileira que estamos fazendo? A díade da inocência ou culpabilidade de Capitu talvez não seja o tema mais favorável para que as mulheres nos demais países importem o livro, ao menos no tempo em que vivemos. Não digo isto por uma tendência à hipervalorização do politicamente correto, mas porque imagino que fora do Brasil a centralidade de um enredo sobre a reputação de uma dama, exclusivamente sob a perspectiva de uma masculinidade subdesenvolvida, talvez cause desconforto ou desinteresse no público feminino, que é em muitos casos maioria. O público feminino mundial parece desejar ser valorizado, enxergar novos horizontes. De questionamentos sobre nossa reputação feminina não prescindimos no dia-a-dia, e talvez encontrar o mesmo problema na literatura, apresentado novamente sob perspectiva masculina, não agrade, mas agrida. É apenas uma elocubração, porque nunca aprofundei tese sobre a razão pela qual Dom Casmurro é um grande clássico que todos conhecem no Brasil, mas que no exterior é conhecido apenas por especialistas. Por que o poema sobre uma pedra no meio do caminho é genial, no Brasil, mas talvez não seja tão conhecido no exterior? É apenas falta de divulgação? Há leituras em várias línguas pelo Instituto Moreira Salles. Mas quem divulgou O corvo, de Edgar Allan Poe, no Brasil de hoje? Deixo a indagação aos doutores. Seria conveniente buscar lançar algo novo? O Presidente anterior da Academia lisboeta contou achar que nos faltam grandes tradutores. Concordo: o que seria de T. S. Eliot no Brasil sem Ivo Barroso? É preciso investir em intelectuais que se interessem em aprofundar estudos de português e em adquirir uma parte relevante do repositório literário mundial que mantemos.

Penso que esta discussão seja importante para os escritores brasileiros que atendem a este encontro, porque, além das preocupações de ordem material e objetiva, para o Brasil se inserir na poesia e na literatura mundial, há de se preocupar também com as ideias mais amplas que temos de nós mesmos, para que sua divulgação produza uma impressão própria e duradoura. Nesse contexto penso que sim, necessário encontrar elementos raros, que marquem uma diferença, como sugerem os acadêmicos, mas que ao mesmo tempo sejam fruto da construção de um universo próprio, de reflexões prazeirosas e presentes nas diferentes realidades de quem lê, que insiram o Brasil nesse fabuloso tecido de humanidade que vem sendo construído pela poesia ao redor do mundo.

O escritor brasileiro que se encontra no exterior, me parece, está em uma posição extremamente favorável a descobrir nele próprio elementos que constrastam com o seu novo ambiente estrangeiro, e também em um lugar privilegiado para estabelecer conexões que permitam sonhar e experimentar sentimentos que possam ser universalmente compreendidos. Por essa razão julguei muito oportuno fazer essa provocação aos colegas nesta condição de expatriados, que atenderam a este convite de Prof. Else, pois quem sabe haja uma missão redentora e perene de nossos escritores, em se dedicar a um esforço novo e dessa dimensão, o qual me parece, seria um pleito legítimo: produzir uma obra brasileira de valor universal.

Procura-se no poeta a genialidade de que o mundo prescinde, meio à fúria e aleatoriedade dos acontecimentos. Mas fato é que as palavras que o poeta vai construindo vêm de sentimentos, e sentimentos e percepções surgem das interações com as pessoas, e com os eventos, fenômenos, ideias. Por isso penso que um escritor brasileiro no exterior está convidado a ser um pára-raios desses fluxos que circulam compulsivamente, talvez um retalho de algo que se repete aqui e acolá, atalho de entendimento, e não necessariamente uma personalidade que foi sendo repetida e construída institucionalmente até se tornar renomada. Talvez parte desse esforço consciente de incluir o Brasil na nossa escrita inclua necessariamente o diálogo, mas numa dimensão em que disso não resulte uma mercadoria, uma utilidade, nem convencimento. Não existem fórmulas definitivas. A literatura verdadeira tem de ser algo inútil, um lazer no qual realizamos descobertas inusitadas e desenvolvemos nosso aprendizado sobre as pessoas e sobre as coisas, uma luz sob a qual o leitor evoca suas experiências próprias para preencher o enredo, para que o seu efeito curativo e encantador sobre a alma possa se produzir.

Leio Fernando Pessoa e me parece que ele alcançou algo que representa de algum modo um avanço de pensamento, um avanço para a humanidade, a resolução de um problema latente, ou a colocação bem exitosa de certas questões pertinentes à nossa existência, eu suponho. Leio José Saramago e não preciso encontrar adjetivos para constatar que sua escrita alimenta o desejo de ler mais dele. O valor está na obra. Finis coronat opus.

Por que me preocupo com isso e partilho essa preocupação? Porque creio que é uma necessidade humana que se progrida, pois se não alcançamos novos avanços, criam-se espaços para muita discussão e críticas sobre críticas, os discursos regridem, vamos a lugar nenhum. Ficamos condenados. Causa-me espécie constatar que hoje querer avançar com novas ações seja algo criticado como “progressismo”, sobretudo quando o progresso de se ter inventado a roda, a imprensa, o tratamento da água, são evidentes para o nosso próprio bem-estar. A poesia é uma invenção civilizacional. Ocorre que, tendo em vista poucos saltos de progresso substantivo nos anos recentes, criou-se o espaço vazio que foi ocupado por um discurso de volta ao passado. O lema “ordem e progresso” contudo ainda consta em nossa bandeira, há estrelas, há muitas coisas que sonhamos de nós mesmos... Por que não encorajar novas descobertas por escritores e poetas brasileiros? E talvez não haja tanta razão para nos preocupar, ou nos opor, pois essas descobertas bem podem estar no passado.

Einstein dizia que a arte, mais do que a ciência, pode desejar e esforçar-se por atingir o aperfeiçoamento moral e estético. Que a compreensão de outrem somente progredirá com a partilha de alegrias e sofrimentos, que a atividade moral implica a educação destas impulsões profundas... “Sem cultura moral, nenhuma saída para os homens”... O que é moral? Não deveríamos confundir com moralismo. O diplomata e filólogo Antônio Houaiss nos conta ser um conjunto de valores, individuais e coletivos, considerados universalmente como norteadores das relações sociais e da conduta das pessoas, a disposição do espírito para agir com maior ou menor vigor diante de circunstâncias difíceis. O progresso moral da existência social e individual da arte depende. Da literatura, da poesia. Ser brasileiro, nesse sentido aqui transcrito, é ter muita moral.

Eu me entrego a lirismos sem problemas. Talvez o lirismo ao qual me entrego de algum modo esteja relacionado a uma ideia de mito paradisíaco no Brasil, que transparece nos temas, nos lugares de fala... Ao ler a obra de outros poetas que vejo escrever, contemporâneos, eu tendo a crer que sim, que cada poeta tem convicção de uma certa verdade, e cada poema é uma tentativa de expressar essa verdade, uma ideia que se tem, mas cujo êxito de se expressar jamais parece ser completo. Eis aqui então uma reflexão. Se bem sendo sincera ainda não consigo me ver nitidamente no espelho, não sei se teria algum espelho, nem sei se deveria. Raras vezes releio ou retorno ao que escrevi, pois vou pensando no poema seguinte. Os poetas mais velhos, meus professores, me ensinaram assim. Foi o que me disse a Kori Bolivia: não perca tempo. Guardei isso. Qual seria a verdade brasileira que busco expressar? Deixo aqui então estas indagações sobre o Brasil que me habita e que habita meus sonhos, sobre meus ideais de beleza e de sublimação poética, de defesa do seu mito paradisíaco. E me pergunto qual seria o Brasil que habita a poesia e a escrita de vocês.

Minibiografia

* Ana Paula Arendt é o pseudônimo de R. P. Alencar, uma homenagem a Hannah Arendt. Poeta e diplomata brasileira, autora de “O Constituinte” (Só Livro Bom, 2016) e de “As veneráveis virtudes do homem” (Chiado, 2018), ambos galardoados, dentre outros livros e escritos. Editora da revista Itapuan, uma publicação bilíngue em português e francês sobre poesia. www.anapaulaarendt.com .


(1) Acrescento à lista de mulheres diplomatas que escrevem poesia a Embaixadora Dora Vasconcellos, autora de três livros publicados: Palavra sem eco (Edições Hipocampo, 1952), Surdina do Contemplado (José Olympio, 1958) e O grande caminho do branco (José Olympio, 1963). Apud Friaça, G. J. R. "Mulheres no Itamaraty". Brasília, Funag, 2018.

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